Sangue de poeta

Conto de Marcio Renato dos Santos
Ilustração: Marco Jacobsen
01/07/2007

Ei, você, leitor, leitora de poesia?

Não sei se você sabe, mas tem muito poeta e muita poetisa em Curitiba.

Sabia?

Mil? Dois? Três mil?

Ninguém sabe ao certo quantos, quantas são.

Mas eles e elas, realmente, se fazem presentes.

— Ei, você, dá licença?

— Pois sim.

— Gosta de poesia?

— Não.

Já reparou?

Olhe ali, na esquina.

Tem um poeta.

E no ônibus?

Também tem poeta.

E lá, naquele bar?

Ah, naquele bar deve ter uns vinte.

Nas ruas?

Tem muito poeta pelas ruas. Poetisas também.

Os poetas, e as poetisas, estão em quase toda Curitiba.

Presentes?

Onipresentes.

— Ei, tem um minuto?

— Claro.

— Gosta de poesia?

— Não.

Você, leitor, você, leitora: você circula pelas ruas de Curitiba?

Pelo centro, pelo centro histórico, pelos bares?

Não?

Sim?

Sim?

Então já deve ter visto, já deve ter ouvido, já deve ter presenciado:

— Oi.

— Oi.

— Gosta de poesia?

— Não.

“A poesia está na moda em Curitiba.”

A frase foi manchete de um caderno de cultura.

De um jornal paulista.

De circulação nacional.

— “Berinjelas/ voam/ pelas janelas.”

— Gênio!

— Gênio!

— Gênio!

Tem academias de poesia em Curitiba.

Tem centros de poesia em Curitiba.

Tem associações de poesia em Curitiba.

Tem ONGs de poesia em Curitiba.

Tem fundações de poesia em Curitiba.

Tem, acima de tudo, declamações de poesia em Curitiba:

— “Bananas/ são tão/ bacanas!”

— Gênio!

— Gênio!

— Gênio!

Curitiba tem, inclusive, e não poderia deixar de ter, um rei. Um rei da poesia. Rei para quem todos os poetas e as poetisas locais acendem velas. A toda hora. Todos os dias. Com, ou sem, motivo. Há, até mesmo, ora direis, ouvi haicais, uma festa anual em homenagem ao eleito.

— “Ananias/ come, até mesmo,/ melancias!”

— Gênio!

— Gênio!

— Gênio!

Gazeta de Curitiba informa: Mais um corpo foi encontrado nas imediações do Cemitério Municipal de Curitiba durante este fim de semana. A exemplo dos outros oito corpos desovados no mesmo lugar durante este último mês, o sujeito também teve a língua decepada. O departamento de polícia anunciou que o cadáver, igualmente aos outros oito mortos, escrevia poesia. O nome do falecido não está sendo divulgado a pedido da família. A onda de mortes assusta a população da capital do Paraná. Sobretudo porque todos eles, as vítimas de ataques fatais, queriam escrever e participar de inofensivos saraus de declamações realizados em um bar localizado nas imediações do centro histórico. Além de verbalizar palavras, nenhum dos nove mortos apresentava problemas com a polícia.

João Horácio segue. Acorda às seis horas. Passa café. E bebe. Come pão com manteiga. Toma banho. Veste-se. E caminha até uma autarquia estadual, no Centro Cívico, onde passa oito horas de segunda a sexta-feira. É funcionário público concursado. Volta para o apartamento, situado no centro histórico, às 19h30. Fica acordado até as 22h30. Nos fins de semana vai a estádios de futebol ou a algum bar, onde bebe cerveja e conversa com amigos, colegas de trabalho e conhecidos. Não tem namorada. Nem vícios. Nem inimigos. Não tem hobbies. Apenas ver futebol, beber cerveja e conversar com amigos, colegas de trabalho e conhecidos.

Gazeta de Curitiba informa: Ontem, outro corpo foi encontrado nas imediações do Cemitério Municipal. Com este, são dez os assassinados com requintes de crueldade em Curitiba. Todos esses dez tiveram as suas línguas cortadas. Outro detalhe comum é que essas dez vítimas eram pessoas que se dedicavam à declamação de versos em saraus realizados em um bar localizado no centro histórico da capital. A Academia Paranaense de Poesia emitiu nota de pesar, exigindo que o departamento de polícia tome providências e encontre o mais rápido possível o autor, ou autores, desses crimes.

João Horácio passou a sofrer de insônia. Faz uns seis, sete meses. Numa das noites da semana, toda semana, ruídos invadiram, ainda invadem, o apartamento onde ele, João Horácio, vive. Eram, são vocalizações. Seguidas de aplausos e gritos. Inicialmente, João Horácio supôs que estava em meio a um pesadelo: “Alfajôr/ Eu sigo assim/ do jeito que for”. Imediatamente, aplausos, gritos: “Gênio, gênio, gênio”. João Horácio não sabia se estava sonhando. Ou se já havia acordado. “Animal, animal/ eu sou genial/ bebo cerveja com gardenal.” Urros. Aplausos. Até gemidos: “Gênio, gênio, gênio”. João Horácio não sabia o que estava acontecendo. “No supermercado, encontro uva/ isso foi ontem/ um dia de chuva.” Mais gritos. Mais aplausos. “Gênio, gênio, gênio.” João Horácio acorda. E não consegue dormir até as 6 horas do dia seguinte.

Gazeta de Curitiba informa: Agora são onze. Ontem a polícia encontrou mais um corpo nas imediações do Cemitério Municipal. É o décimo primeiro cadáver sem língua localizado em Curitiba. O jovem, que tem a identidade preservada a pedido da família, praticava poesia, a exemplo das outras dez vítimas assassinadas neste mês.

João Horácio voltou a dormir. Mas tem os sonhos interrompidos por pesadelos. E passa os dias a bocejar na repartição pública. Às vezes, dorme no banheiro. E ninguém percebe as suas ausências. Nem o seu chefe. João Horácio comprou uma nova geladeira. E também adquiriu garrafas de vidro. Duas dúzias. Os ruídos do estabelecimento vizinho ainda invadem o apartamento de João Horácio numa das noites da semana. E ele ri.

O departamento de polícia mobilizou diversos setores em busca do responsável, ou responsáveis, pelos crimes recentes. O setor de inteligência foi acionado. Escutas telefônicas ativadas. Espiões e agentes secretos infiltrados. Blitze realizadas. E, apesar de todas as ações, os crimes continuaram. Mais corpos foram encontrados, sem vida, e sem língua, nas imediações do Cemitério Municipal. As vítimas, todas elas, mulheres e homens, praticantes de poesia, freqüentadores de saraus poéticos realizados em um bar localizado no centro histórico. Suspeitos foram presos. Alguns até assumiram a autoria. Mas os crimes seguiram.

E as declamações de poesia foram suspensas. Os saraus poéticos também. Cancelaram diversas sessões de autógrafos. E lançamentos de livros de poesia. Os poetas que comercializavam poemas na Rua XV sumiram. Sumiram também os sujeitos que faziam verbalizações de textos supostamente poéticos. Gráficas desistiram de imprimir livros supostamente poéticos. Livrarias retiraram livros supostamente poéticos das vitrines e até das prateleiras. E outros corpos de supostos poetas e de supostas poetisas continuaram a ser encontrados, sem vida, e sem língua, nas imediações do Cemitério Municipal de Curitiba.

João Horácio abre a porta. Cinco pessoas entram em seu apartamento. Três mulheres. Dois homens. Desconhecidos que se tornaram conhecidos, amigos talvez. Todos se sentam nos sofás da sala. O aparelho de som a soar o mais recente álbum do Terminal Guadalupe. E, então, João Horácio sugere:

— Vamos beber?

Todos sinalizam sim.

João Horácio vai até a cozinha. E volta para a sala com duas garrafas de tinto seco. Os copos e o saca-rolha estão em cima de uma mesa.

Garrafas abertas. Vinho nos copos. Os seis brindam.

Os convidados riem. Das histórias. Das anedotas. Das piadas. Das idéias. Da articulação. E dos gestos de João Horácio.

Até que uma das mulheres, ao rir, mira João Horácio e:

— Você tem algo que os homens não têm mais.

— Algum problema?

— Pelo contrário. Você é uma raridade

— Nada. Sou um cara normal.

— Não se apequene, João Horácio. Você é um raro.

— Gentileza sua.

— João Horácio, você é um lírico.

— Exagero, exagero seu.

— João Horácio, você tem sangue de poeta.

— Como você sabe?

— Tá na cara. Você é um lírico, tem sangue de poeta.

— Bom, lírico eu não sou. Mas sangue de poeta…

— Confesse, confesse, não custa nada. Como é que é? Não é lírico mas tem sangue de poeta?

— É. Não sou lírico. Isso não. Nunca. Deus me livre. Mas sangue de poeta eu tenho sim. Não nego. Preciso confessar. Querem ver? Querem ver? Eu confesso. Confesso sim. Preciso falar. É só dar uma olhada na geladeira. Está lá. Está lá. Deve ter uns dez litros de sangue de poeta. Ou mais.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho