Salvo pela morte

Conto de Waldir Araújo
Waldir Araújo , autor de “Confessionário de bolso”
01/10/2006

Carlos Nhambréne vinha de mais uma viagem à cidade de Bissau, onde tinha ido tratar de uns negócios ligados à venda de gado. No caminho para a sua região natal, a cidade de Bafatá, sentou-se confortavelmente na pequena carrinha Toca-Toca(1) que levava cerca de duas dezenas de fatigados passageiros. Abriu cuidadosamente o jornal que ainda não tinha tido tempo de ler e, como sempre faz, foi directamente para as páginas da Necrologia. Era um hábito, um vício ou qualquer outra coisa que o valha, mas o certo é que era um ritual. Tão bizarro quanto fatal. Mal abria um jornal, Carlos Nhambréne ia directamente para a página dos mortos. Tinha um estranho prazer em ver aquelas páginas, saber quem deixou o mundo dos vivos. Apreciar a foto escolhida pela família do defunto para, pela última vez, mostrá-la a todo o mundo. Todos os dias, pela manhã, à hora do seu mata-bicho, mandava o pequeno Bubacar comprar o Djamburéré(2) e, já com o jornal na mão, repetia o seu ritual iniciático de leitura. Ia de imediato para as páginas das cruzes e só depois lia a informação geral espalhada no jornal. Sem nunca antes deixar de apreciar todos os dados dos mortos diariamente anunciados. Conhecia bem os nomes e os estilos necrológicos das agências funerárias. Apreciava os textos: “A Família Enlutada Informa…”; “A todos os amigos e conhecidos a agência funerária Deus i Garandi informa do desaparecimento de…”; “A empresa Glória da Guiné informa aos clientes e amigos que o seu digníssimo gerente deixou o mundo dos vivos”…

Naquele dia de regresso à casa depois de mais um lucrativo negócio, abriu o Djamburéré e foi directo às páginas do seu deleite. Carlos Nhambréne não queria acreditar!!! Mal começou a ler gelou de espanto. Numa coluna em destaque, com uma foto que lhe era bastante familiar leu: “Faleceu Carlos Nhambréne — A Família enlutada e amigos informam que o seu ente querido faleceu no passado dia 15 de Abril de 1992. O corpo encontra-se na câmara ardente da Igreja Matriz de Bafatá”. Nhambréne perdeu o fôlego. Era a sua foto estampada na página da necrologia do Djamburéré, o jornal mais lido em toda a região Leste da Guiné. Voltou a ler a mensagem ilustrada com um retrato que tirara havia pouco mais de um mês na Foto do Leste, do seu vizinho Djibril Mané. Fechou a página impulsivamente e, sorrateiramente, olhou de soslaio para o restante dos passageiros que seguiam no Toca-Toca. Quatro deles liam o mesmo jornal.

Carlos Nhambréne foi subitamente invadido por uma ira fulminante, um sentimento de ódio indescritível. Quem teria feito uma brincadeira de tamanha bizarria? Quem teve a coragem de provocar um dos homens mais temidos da região? Anunciar a morte de alguém que nunca se sentiu tão vivo? Enquanto o transporte, já cansado de muitos quilómetros galgar, percorria as massacradas estradas do interior, o comerciante mais proeminente de Bafatá e arredores preparava em silêncio ardente o plano de vingança. “Ah, mas quem fez isto vai pagá-las ou não me chamo Nhambréne Mon di Ferro”. Alcunha pelo que era conhecido em toda a região Leste da Guiné-Bissau: Nhambréne Mon di Ferro. Por ser um patrão rude e ditador. Por ser um sovina de primeira água. Por se gabar de resolver tudo a pulso. E — por último, mas não menos importante — por ter uma prótese de metal que lhe completa o braço esquerdo subtraído em consequência do acidente que sofrera em 1969, quando o camião militar que conduzia pisou uma mina do Colón(3), junto à localidade de Candjambari, nos idos e gloriosos tempos da “Luta pela Liberdade da Pátria”. O acidente salvou-lhe a vida. Foi graças a esta desgraça que o “triunfante partido do povo” lhe atribuíra o almejado estatuto de “Combatente da Liberdade da Pátria” e um chorudo subsídio vitalício, o que lhe permitiu abrir um negócio de gado numa enorme Ponta(4) que comprou e ainda três fábricas de gelo espalhadas pelas ardentes regiões de Bafatá, Bambadinca e Gabú.

Nhambréne dobrou sorrateiramente o jornal e guardou-o na pasta preta que trazia sempre consigo. Pôs-se a conjecturar. Sabia que inimigos não lhe faltavam. Amigos, só mesmo aqueles que as circunstâncias lhe emprestavam. Era mais fácil começar pelos últimos tempos. Quem teria motivos para pregar uma partida fúnebre como esta? Começou a ter dificuldades em ordenar as ideias. É que se trata de tarefa difícil encontrar uma acção deste homem que não tenha magoado fulano ou ofendido sicrano. Não que fosse um homem rude, mas o seu temperamento traía qualquer gesto. Exímio gestor dos seus bens, Nhambréne Mon di Ferro era também excessivamente exigente e descaradamente ambicioso. Dormia apenas quatro horas por noite e o resto do tempo aplicava-o a tratar de enriquecer. Não se lhe conheciam filhos nem mulher ou companheira “oficial”. Dormia com as empregadas e fazia tudo convencido de que ninguém sabia das suas desventuras nocturnas. Das mulheres que tivera por algumas horas ou noites, apenas uma marcou o homem. Aminata Sadjó, uma belíssima comerciante de Bambadinca, localidade a escassos quilómetros de Bafatá. Aminata conhecera Nhambréne numa das viagens de negócios de gado. O homem ficou fascinado com a beleza da mulher de etnia mandinga. Uma beleza reforçada por uma notória inteligência e capacidade de comunicar. No encontro, Aminata levou a melhor ao conseguir comprar mais cabeças de gado deixando Nhambréne estupefacto e enfeitiçado. O envolvimento entre os dois seguia-se dias depois por apenas e só uma noite. Aminata Sadjó nunca mais quis ver Nhambréne de perto. Enquanto isso a paixão do comerciante de Bafatá por esta linda e misteriosa mulher de Leste não conhecia limites. Mas estava de parte a hipótese de ser a Aminata a autora da fúnebre mensagem. Isto porque a mulher tinha mais que fazer. Detestava a arrogância de Mon di Ferro, mas votava-lhe ao desprezo. Aliás, o nome de Aminata Sadjó apenas surgiu na mente ferida do homem porque é talvez a pessoa mais importante — ou será menos irrelevante? — da sua desinteressante vida.

Depois pensou no seu mais acérrimo rival. Samba Dabó, comerciante de cabeças de gado, dono de duas concorridas lojas em Bafatá e respeitado por toda a comunidade muçulmana de Leste. Nhambréne e Dabó cresceram juntos. O ódio de um pelo outro também. Com o passar do tempo, cada um foi à sua vida e voltariam a encontrar-se anos depois. Os dois feitos comerciantes. Tirando os sinais exteriores que o tempo lhes foi deixando no corpo, mantinham o mesmo carácter. Samba Dabó, sério, trabalhador e pragmático. Carlos Nhambréne, trabalhador sim, mas pouco sério e muito menos pragmático. Nhambréne fez tudo para que o negócio de Dabó fracassasse. Até foi ter com o Homi Garandi(5) Serifo Camará, conhecido Marabu da zona leste. Pediu ao velho que utilizasse os seus dons de murundadi(6) para atrasar a vida do seu inimigo de estimação. Mas saiu de lá com uma grossa descasca. O velho Serifo Camará repreendeu-lhe e disse que não utilizava os seus poderes para fazer mal a um homem bom. Enquanto isso Samba Dabó continuou a viver em Bafatá ignorando por completo a existência de Carlos Nhambréne. Sabia dos truques e dos constantes actos que este fazia com intenção de lhe prejudicar, mas em troca Samba apostava em manter o seu bom nome, era a sua melhor defesa. Com tantos afazeres e até pela pouca importância que passou a dispensar ao seu concorrente de negócios, Samba não tinha assim grandes razões para constar da lista dos suspeitos. Bem, assim sendo, só se fosse o novo Governador da região. Jovem recém-nomeado e humilhado por Nhambréne desde o primeiro dia que assumiu o novo posto. Toumane Embalo tinha sido nomeado recentemente para substituir um antigo Governador que entendeu que chegara a hora de largar tudo e ir dormitar com as concubinas nas propriedades que foi acumulando ao longo dos anos do poder. Toumane vinha cheio de energia, com ideias de mudar as coisas, instalar o rigor e desenvolver a região. Sonhos. Mal chegara, enfrentou a teoria de conspiração instalada e fomentada por Carlos Nhambréne. Os habitantes mais influentes, comandados pelo Mon di Ferro, começaram logo por questionar a capacidade do jovem, a troçar com a sua tenra idade e curto currículo. Porém, Toumane tentou não se deixar intimidar, mas teve dificuldades em dar início aos trabalhos. Os seus subordinados olhavam-no com um ar de desconfiança e fingiam não entender a sua linguagem de dinâmica e mudança. Cedo, o jovem administrador identificou o alvo número um, o obstáculo-mor do seu trabalho: Carlos Nhambréne. Mas sempre soube que a melhor solução não era hostilizar o homem. Apesar de toda a arrogância e maldade, Nhambréne Mon di Ferro era, sem sombras de dúvidas, dos homens mais poderosos e temidos de Bafatá.

A estratégia de Toumane era ter o homem como um aliado, pelo menos nos primeiros tempos. Carlos Nhambréne começara, aliás, a reconhecer o esforço do jovem, que lhe facilitava todas as burocracias relacionadas com o negócio e que lhe convidava para todas as cerimónias oficiais, apresentando o Mon di Ferro como “o nosso mais exímio comerciante e dos mais brilhantes cidadãos da região”. Toumane Embalo estava fora da lista dos suspeitos.

Enquanto procurava idealizar outro suspeito voltou a abrir sorrateiramente a página que anunciava a sua morte. Desta vez fixou bem a notícia. Não conseguia relacionar o estilo da escrita necrológica com nenhuma das agências funerárias da região. Fixou a sua fotografia e começou a pensar na sua vida. Afinal, quem era Carlos Nhambréne? Um homem duro e só. Por momentos vislumbrou toda a sua infância. As dificuldades que enfrentara desde os primeiros anos. A morte da mãe e a fuga do pai. Mais tarde a separação dos dois irmãos que decidiram partir para o Senegal à busca de melhor futuro, mas onde acabariam por encontrar a morte. Um tio austero acolheu-o educando sob a lei do chicote e da exploração, mas ensinando-lhe também toda a arte da pastorícia e dos negócios do gado. Foi esse tio que viria a deixar tudo em nome de Nhambréne. Uma herança que honrou, fazendo crescer o negócio. Mas o duro passado moldou-lhe a alma e toldou-lhe o sentimento. A dureza passou a ser a palavra de ordem e guia dos seus actos. As relações com as pessoas que o circundavam era meramente mecânica, de puro interesse. Pensou nas maldades que fez sem se aperceber. Nas pessoas que procuravam despertar-lhe o sentimento da amizade, do amor e a quem ele sempre respondera com desprezo. Nos empregados que lhe serviram com dedicação e a quem ele sempre pagou míseros tostões. No pequeno Bubacar que lhe foi entregue para criação, por um casal desfavorecido que julgava que assim protegeria o futuro do rapaz, mas que não passa de um sujo e maltratado moço de recados.

Pensou em tudo mais e só lembrava de actos menos dignos, momentos de maldade de uma vida vazia em virtudes. Sentiu-se invadido por um sentimento de remorso do tamanho do mundo. E, de repente, aconteceu algo de incrível. Começou a chorar. Carlos Nhambréne a chorar de remorsos! Chorou compulsivamente ignorando as pessoas que iam sentados a seu lado.

Pouco depois, sentiu-se um homem novo, de alma lavada e coração aberto. Imaginou pela primeira vez como seria tudo diferente se ele desse um pouco de si aos outros. E sorriu. Carlos Nhambréne sorriu por ter bons pensamentos! E finalmente, quando o cansado Toca-Toca parou em Bafatá, Mon di Ferro reparou que era o único passageiro a descer naquele destino. Voltou para trás e viu apenas mais quatro passageiros sentados na carrinha. Eram as quatro pessoas que também vinham a ler o Djamburéré. Ainda tinham os jornais abertos a tapar-lhes a cara. Já de lado de fora do Toca-Toca, olhou de novo para dentro da carrinha e reconheceu a sua mãe, o seu pai e os dois irmãos. A carrinha desapareceu por entre as poeiras das estradas do Leste da Guiné. Nhambréne abriu de novo o jornal na página da necrologia. Já lá não estava a sua morte. Carlos Nhambréne nunca mais foi o mesmo nem a sua vida. De homem miserável e sem amor ao próximo passou a ser um sensível e compreensível cidadão. Ninguém entendeu a mudança mas também ninguém perde tempo em perceber, não vá o destino mudar de novo o feitio ao homem. Ainda hoje quando compra o diário Djambureré, vai directo às páginas da Necrologia, à busca da sua morte. Ou da oportunidade de voltar a ver os quatro passeiros do Toca-Toca que mudaram a sua vida.

Notas

(1) Toca-Toca: Transporte colectivo muito popular, também designado por Candonga.
(2) Djamburéré: Pirilampo
(3) Colón: Diminutivo de colonialismo ou colonialista. Termo pejorativo.
(4) Ponta: Propriedade rural, Quinta.
(5) Marabu: Personalidade respeitada na comunidade muçulmana e a quem é atribuído um certo poder espiritual.
(6) Murundadi: Bruxedo

 

Waldir Araújo

Nasceu em 1971, em Bissau, Guiné-Bissau. Em Portugal, fez os estudos secundários e iniciou o curso de Direito, que trocou pelo Jornalismo. Desde 2001, atua como repórter da RDP-África, em Lisboa. Em setembro de 2004, foi-lhe atribuído uma Bolsa de Criação Literária pelo Centro Nacional de Cultura português, para a investigação sobre uma comunidade em Cabo Verde. É autor do livro de poesia Confessionário de bolso e finaliza um romance que retrata as várias convulsões sociopolíticas que seu país tem vivido.

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