Salò gótica

O menino dá as costas ao rei e o sangue mistura-se à areia
Ilustração: Luciano Mota
01/05/2004

Eu estava num mundo morto, quando resolvi partir com as minhas legiões, na companhia dos soldados, dos rapazes de olhar duro, sem vícios cristãos.

Vieram me trazer a couraça, o elmo de ouro — que pesava debaixo do sol.

Um menino de bela tez (que parecia a moça magra, de rosto anguloso, cujo fantasma pisava de leve em meus sonhos) em seguida apareceu, saído da comitiva de cortesãos e sacerdotes, para me anunciar os presságios das vísceras das aves. Não dei atenção ao adivinho persa, nem ao padre de Ravenna, mal tolerados.

Toquei com a ponta dos dedos na face fresca da criança, depois de ouvir que os augúrios eram bons. E lhe dei uma moeda de ouro, com o meu perfil grosseiramente cunhado (ainda nos faltam mestres moedeiros, desde que o Império foi dividido como se parte o queijo de cabra nas casas dos camponeses).

Ajeitei o peitoral, e me preparei para subir no cavalo que me conhece, Áxion, branco como as espáduas do menino que, então, se retirava — dando-me as costas. Eu não havia posto o pé no estribo, quando me dei conta daquilo, daquele relaxamento da etiqueta, na hora em que todos observam e é importante manter a liturgia do poder, conforme diria um bispo adornado de ouro, com a barba perfumada como o colo de uma mulher.

Relaxamos nisso. Fomos deixando de ensinar às crianças certas regras da corte (e de qualquer lugar, diante de reis).

A bela criança era do mundo morto, eu também pensei. E em outra hora, eu talvez irrelevasse a falta (e até esquecesse o assunto), sorrindo para os generais ansiosos. Quem sabe, apenas fosse dizer, mais tarde, ao mordomo-mor, que ele precisava ensinar o menino de belas espáduas, treinar a criança se afastando sem perceber que eu tirava a espada, com vagar.

Ele devia ter pai e mãe no palácio, longe da poeira transformada em lama que sujara o meu calçado novo, feito do couro de um animal raro da África, cujo nome eu esqueci.

Naquela hora, entretanto, resolvi não esquecer a pequena afronta (involuntária?) do doce portador de bons presságios, e ergui o braço direito (sou canhoto, o esquerdo era o braço que terminava na espada desembainhada), num sinal para que trouxessem o menino de volta (ele já havia imiscuído-se entre os panos coloridos das roupas das mulheres pintadas, os eunucos e da criadagem portando flores).

Ele veio, sem temor.

Eu devia ser um rei ameaçador para seus olhos escuros e úmidos como os de alguns cavalos do Ponto. Era uma bela criança.

Mandei que virasse de costas, como havia feito momentos antes. Ele virou. E eu pensei: quando cravar a minha espada entre as belas espáduas desse inocente, todos ficarão chocados, mas erguerei o braço esquerdo, para esclarecer:

“Eu quis ler o que dizem as vísceras desse anjo”…

E assim foi feito. Meus lugares-tenentes retiraram a espada fundamente enfiada nas costas do mensageiro, e voltei para a minha tenda, a fim de esperar pelo resultado do exame das tripas quentes da pobre vítima humana, o menino caminhando de costas para Mim, o Deus vivo que pretende sair do mundo morto que matou os deuses antigos.

Era um dia claro, que o sangue da criança maculara. Vieram limpar a mancha na areia, uma forma de cristais de areia vermelha, vaga demais para alguém decifrá-la, próxima das minhas sandálias trançadas com fios de ouro, cujo conforto veio substituir, por momentos, o couro desconfortável do calçado do animal raro.

Mandei desapertar também a couraça do peito, ligeiramente afligido pelo choro baixo das mulheres, que, ordenei, se calassem. Nunca tinham visto um menino morrer, ou ser morto? Acontecia a toda hora, em todas as guerras…

Fiquei esperando, sentado na cadeira na qual só eu posso sentar, em campanha ou na paz das caçadas (ela é antiga, veio da Núbia, do antigo reino dos faraós pretos de Méroe).

Passou-se a meia hora longa das tendas debaixo do sol alto, e, então, no meio da modorra, vi um outro menino — que tremia, o coitadinho, com lágrimas de pavor no rosto molhado — ser empurrado na direção da minha tenda (ainda armada diante dos soldados impassíveis, os jovens puros das minhas legiões encouraçadas).

Ergui-me, como deve se erguer um rei — com toda a dignidade, sem pressa, das majestades — e vi e ouvi, quando menino conseguiu se acercar, a bandeja e o seu gaguejar dos mesmos bons da hora anterior, se não ainda melhores, nesta nova hora sombria, no mundo de injustiça no qual eu estava tão morto quanto o mundo do menino anterior, o pequeno ser que eu matara não para saber qualquer coisa adivinhada das jovens vísceras, mas porque voltara as costas para um rei, como agora estava a fazer o segundo mensageiro de pouca idade, com a bandeja pesada que hoje não irá parar, pelo visto, de me ser exibida por crianças assassinadas…

Quando eu poderei partir?

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho