Ruminações felizes de um boi

Conto inédito de Rubem Mauro Machado
Ilustração: Matheus Vigliar
30/03/2019

Perto de mim ninguém fala mal dos Homens, não admito. Se alguém ensaia cometer essa injustiça, dou logo dois mugidos longos e profundos, que é para advertir o incauto do meu desagrado, fazendo com que se cale. Fosse em outros tempos, eu lhe daria é um bom par de coices e até uma chifrada, que esse é o prêmio que todo ser ingrato e mesquinho merece. Mas desde que fui capado perdi esses meus ímpetos de agressividade.

Muitos acham uma maldade terem me capado. Sei que foi para o meu bem. Quem fez isso pensou em me proporcionar uma vida tranquila, sem as pressões e angústias dos impulsos reprodutivos, sem as dilacerantes lutas irracionais dos machos. Perdi a possibilidade de imortalizar meus genes através de uma descendência, é verdade, não pude desfrutar dos prazeres instantâneos e fugazes do encontro das carnes. Em compensação ganhei a acomodação diante das perturbações da existência, a resignação permanente, a placidez com que olho a agitação mundana — e assim posso ficar pastando em total paz de espírito, engordando sem preocupações, sem inquietações que a nada levam, livre da tão propalada angústia existencial. Não à toa ouvi falar certa vez em “felicidade bovina”. Hoje posso me gabar do meu estado zen.

Muitos não entendem essa minha devoção aos Homens. Mas como não ser devoto de quem devotado é a nós? A raça humana é o maior bem que poderia ter acontecido no universo. Nenhuma outra se iguala a ela em grandeza, desprendimento, generosidade. Disso posso dar testemunho. Desde que nasci, meu dono preocupa-se o tempo todo com o meu bem-estar, minha saúde, a satisfação de minhas necessidades. Ele meu deu um nome, Filó, mostrando assim apreço por minha individualidade. Fez questão de deixar em cada um de nós a sua marca, para mostrar que fazemos parte de uma grande e fraterna família. A seca prejudicou o pasto? Ele logo transfere a mim e a meus irmãos para um campo de boa aguada, mais verdejante. Nos vigia, com seus peões, para que não nos extraviemos ou sejamos atacados por algum animal feroz. Mostra satisfação à medida que ganhamos peso. Providencia nas ocasiões apropriadas remédios de todo tipo e o sal e demais complementos de que necessitamos. Quando o berne faz um buraco em nosso couro espesso, ele nos trata, faz sair de dentro de nós o maléfico verme, libertando-nos assim de um tormento. Enfim, seria infindável a lista dos cuidados que os homens sempre nos dispensaram, tornando impossível que não os amemos. Tudo lhes devemos, anjos protetores que nos protegem de todos os males.

Hoje a manada amanheceu mais inquieta do que o habitual, pela chegada à fazenda de homens desconhecidos em grandes caminhões, com carrocerias que são como vagões de trem abertos. Nossos peões começaram a nos tocar para dentro deles. Alguns bois mais irrequietos agitam-se, mugem, empinam-se, tentam evitar subir a prancha, como se farejassem algum perigo.

Quando chega minha vez, subo tranquilo para o caminhão, sem mugir, sem protestar. Se nos levam daqui, com certeza será para um lugar melhor. Por que iria eu desconfiar de meu dono, que sempre me tratou com carinho e me deu do bom e do melhor? Por que iria eu desconfiar dos Homens, seres de uma bondade inata, livres de egoísmo, incapazes ao que eu saiba de fazer mal a si mesmos e aos outros seres do nosso planeta? Por quê, podem me dizer?

Rubem Mauro Machado

É escritor, jornalista e tradutor. Autor de livros como A idade da paixãoO executante e Lobos.

Rascunho