Este conto (único) foi escrito em 1972 e, impressionado com sua crueldade, mostrei-o ao Antônio Carlos Vilaça, testemunha ocular da história, que me disse ter sido ele “escrito pelo seu demônio”. Engavetando por 20 anos, li-o em público, em Lisboa, em 1992, pela primeira vez, por ocasião de uma palestra que fiz sobre o conto brasileiro. Sabendo de sua existência, Didier Lamaison (o genial tradutor de Carlos Drummond de Andrade para o francês) traduziu-o e publicou-o na prestigiosa revista Caravanes, das Éditions Phébus, Paris 2003, e está sendo atualmente traduzido para o alemão por Curt Meyer-Clason. Na apresentação do conto, Lamaison fala que o grande receio do autor era de que um dia sua ficção pudesse se transformar em realidade. E foi o que, em parte, acabamos de ver com os recentes acontecimentos das ruas de São Paulo.
Em Bangkok (ou Nova York, não sei) há uma rua chamada Sarkanda, que significa Esgoto. Quando um mendigo é apanhado esmolando pela cidade ou um bêbedo caído nas ruas centrais, a polícia o carrega para lá. Um guarda, junto ao portão de arame farpado à entrada da rua, impede os párias de fugir. O confinamento dura em geral até a morte por inanição ou extermínio.
Se o segregados gritam durante o dia, os moradores dos sobrados que dão para a viela atiram sobre eles garrafas vazias ou baldes de água quente. À noite, os mais recalcitrantes são calados a pauladas, pois a população obreira do bairro precisa de repouso para o trabalho da manhã.
Por alguns dólares os turistas podem se divertir com esse curioso espetáculo: montes de lixo humano que se movem e uivam. É cobrada uma taxa especial a quem quiser fotografar. Se durante a visita os mendigos ficam parados e a cena se torna monótona, o guarda do portão permite aos meninos das vizinhanças entrar em bando pelo beco desferindo pontapés nos corpos caídos. As vítimas já quase não ligam aos chutes nem reagem ao mijo quente que as crianças lhes acertam nos ouvidos. Alguns sangram e cantam quando os meninos os golpeiam com latas vazias de leite em pó amarradas a um fio de barbante, gritando: Canta! Canta! Os turistas sorriem ao guarda e dão pequenas gorjetas às crianças. Os que vêm do interior ou de outros países para conhecer a cidade e podem ficar por mais tempo preferem almoçar num dos restaurantes que funcionam nos sobrados com varandas abertas para o beco. A princípio costumavam jogar comida lá de cima para ver como os mendigos reagiam. O garçom explicava que não se devia jogar muita, pois o objetivo não era alimentar os pobres, mas vê-los disputar as migalhas. Nessas disputas, na ferocidade dos avanços e dos repelões, não raro morria algum. Na manhã seguinte, o lixeiro levava o cadáver para jogar no rio. Nas poucas noites frias, era possível cremá-los em fogueiras feitas de cavacos, restos de caixas, jornais e outras matérias combustíveis que os vizinhos piedosos jogavam das janelas.
Os dois restaurantes, situados um de cada lado da ruela, sempre empenhados em animar a vida do bairro, buscam atrair novas levas de turistas para comer e desfrutar o espetáculo. Mas há problemas a contornar. Como a tendência dos mendigos é a de se aglomerarem a um canto, ocorre à vezes que os clientes do restaurante à direita se divertem mais que os do lado esquerdo. Além disso, a preguiça e a debilidade tornam os miseráveis quase imóveis. Com poucas migalhas se satisfazem; comem e se acocoram para dormir, ou, o que é pior, se escondem embaixo de folhas de jornal para evitar a luz dos fortes holofotes que ambos os restaurantes despejam sobre eles. Daí o acordo tácito entre as duas casas: os clientes não podem mais atirar diretamente à rua os restos de seus pratos. A comida que passou a ser lançada consistia de pequenas almôndegas que continham ou não fortes doses purgativas ou veneno. Os mendigos apanhavam as bolas e as cheiravam antes de comê-las; mas nem pelo odor nem pelo gosto era possível distinguir as que tinham das que não tinham veneno. Com a mortandade diária os restaurantes prosperaram. Mas um pequeno grupo conseguiu sobreviver fazendo a seleção alimentar por um critério extra-sensorial. Os espertalhões perceberam que o restaurante mais afastado de onde estavam tendia a atirar uma quantidade maior de almôndegas puras para atraí-los em sua direção.O que gerou uma espécie de dança, para cá e para lá, pouco interessante para os clientes de ambos os restaurantes, que preferiam como dantes ver os mendigos se estrebuchando ou se esvaindo em fezes quando tentavam comer. Surgiu assim um novo problema para os pobres proprietários dos restaurantes: como os mendigos comem pouco, estava se tornando impossível abrir a casa para as duas refeições diárias. Se conseguiam engolir algumas bolas inócuas na hora do almoço, não tinham fome por ocasião do jantar e ficavam rindo-se do esforço dos garçons para atraí-los. Claro, os clientes se retraíam: não haviam ido ali para ver mendigos sorridentes. Alguns fregueses saíam contrafeitos ou frustrados, prometiam vir para o jantar ou o almoço do dia seguinte, mas não voltavam mais. Daí terem os donos recorridos experimentalmente ao regime do jejum absoluto: nenhuma comida em hora alguma, com ou sem purgantes e venenos. Mas com a fome, o grupo tendeu a encolher-se ainda mais, a permanecer abúlico, e cada manhã os lixeiros tinham mais trabalho — só que o trabalho dos lixeiros não interessava a ninguém. Além disso, arriscava-se a uma dizimação improdutiva da mão-de-obra integrante do espetáculo.
Surgiu a idéia brilhante de pendurar-se os alimentos em longas varas de pescar, sobre a rua, fora do alcance das mãos. Iscavam-nas com algumas almôndegas puras e boas, a recender ainda fumegantes e iradas diretamente dos pratos dos clientes para afastar qualquer dúvida por parte dos mendigos. A princípio deu certo. O espetáculo voltou à animação dos primeiros dias: a massa informe movia-se, quase ficava em pé. Os recém-recolhidos, novatos com algumas semanas ainda de vida, conseguiam mesmo pular na tentativa de alcançar as iscas. Alguns se aproveitavam dos corpos dos companheiros caídos para subir-lhes por cima.
Mas a alegria do público foi logo esmorecendo. Quando um deles, no extremo do sacrifício de arrimar à almôndega, chegava próximo da isca, os gritos de advertência dos espectadores faziam com que os garçons levantassem as varas, criando a sensação de uma pescaria às avessas, que consistia em evitar que o peixe ferrasse o anzol. Enquanto isso, os garçons do lado oposto baixavam seus caniços para atrair os peixes famintos, e como a distância entre uma varanda e outra era muito reduzida, os oponentes passaram a esgrimir-se com as varas numa tentativa de evitar que o adversário facilitasse a pesca dos mendigos. A prática foi abolida no dia em que, entre urros, ameaças e impropérios, as iscas de carne tombaram no beco em razão da contenda. Os miseráveis apossaram-se delas e foram comê-las tranqüilos em seus cantos, divertindo-se com a disputa dos garçons. Houve protestos gerais, alguns clientes saíram reclamando, outros chegaram a falar em devolução do dinheiro.
A solução do impasse pendia dos mais antigos habitantes do bairro: os ratos. Mas não se mostrou evidente no primeiro instante. Aconteceu por acaso. Eles apareciam apenas à noite, rondavam por baixo das varandas quando as luzes dos restaurantes se apagavam; era-lhes fácil farejar as últimas migalhas que os mendigos enjeitavam; quando até mesmo essas rações começaram a rarear, os animais subiam ao longo das paredes de palha, alcançavam as varandas, raspavam do chão das salas suspensas os salpicos de sopa. Depois, saciados, desciam, voltando céleres aos esgotos.
Quando se instituiu o uso das bolas purgativas, com pouco os ratões proliferaram, grande era a sobra que os mendigos deixavam receando a escolha. Os ratos devoravam todas as almôndegas aparentemente sem sofrer efeitos secundários. Mas quando os garçons começaram a carregar nas doses para ver os mendigos gemendo e defecando em público, revolvendo-se sobre o fel de suas próprias entranhas, os ratos também sofreram com isso. Eles que vinham, os de pêlo gasto e curtido, já agora acompanhados de outros mais espertos e claros, que corriam sem temor pelo centro da rua — os ratos passaram a guinchar em plena caça e a morrer às dezenas, à entrada dos esgotos, sob o efeito do tóxico. Os que restaram esconderam-se em galerias mais profundas, passaram tempos sem aparecer. Quando voltaram à superfície, estava em plena moda a prática do jejum absoluto e, logo depois, a das iscas suspensas por varas. As ratazanas vasculhavam os cantos, riscavam os muros, roíam as varandas e fugiam famintas. Depois que os andrajosos exauriram o que lhes restava de engenho nas grotescas tentativas de alcançar os caniços, e a prática das varas foi abolida, os ratos voltaram ao desespero da fome, em declarada guerra. Começaram a farejar as sombras, o fétido dos corpos caídos que tresandavam a excremento, e corriam por entre os molambos molhados, roendo os restos de merda das roupas. Uma noite, alguém, insone, que veio com um pau aplacar os gemidos dos mendigos, viu a faina dos ratos, e, como as idéias nascem de acasos, a solução se fez.
Os restaurantes mandaram armar grandes gaiolas de tela de arame para as quais atraem os ratos com torresmo e raspas. Com pouco, fazem várias criações em seu interior e, defronte às varandas, ali onde antes pendiam as varas, vêem-se agora gaiolas suspensas. Há um cuidadoso revezamento delas, e a que pende a cada dia encerra ratos que estão com três dias de regime.
Quando se aproxima a hora do espetáculo, a fome dos bichos é tamanha que seus guinchos vão se ritmando, cada vez mais agudos, e os focinhos sangram de gana esgueirando-se entre as grades.
Tudo o que os garçons têm a fazer agora é atirar sobre o grupo um bocado de molho e puxar o cordel que abre a ratoeira em cima. Os ratos caem das jaulas aos saltos e avançam atraídos pelo cheiro do molho. O grupo, atacado, se acovarda e esperneia, e o espetáculo atinge seu auge quando os bichos arrancam primeiro os lábios e os lóbulos. E depois, quando as crianças entram armadas de porretes e começam a matar sobre os corpos dos mortos os ratos já fartos.
Por uma questão de ordem, ajustou-se que um dos restaurantes só funciona para o almoço e o outro para o jantar.