Romance-Folhetim: Poeira: demônios e maldições (7)

Capítulo 7 do folhetim "Poeira: demônios e maldições", de Nelson de Oliveira
Ilustração: Tereza Yamashita
01/05/2007

28
Olhinhos curiosos observam atentamente os pequenos blocos de metal fundido espalhados sobre a imunda mesa de madeira.

Dezenas de olhinhos curiosos. Milhares de blocos de metal.

Guarrinhas assanhadas acariciam os sinais tipográficos em alto relevo espalhados sobre a mesa imunda.

Boquinhas espantadas murmuram palavras de surpresa diante da aura sagrada e do poder ilimitado dos tipos móveis espalhados sobre a mesa.

Quietos, calem a boca, alguém ordena.

Alguém mais experiente. Alguém mais velho. Alguém que já não se encanta mais com a aura e o poder dos antigos tipos.

Silêncio.

A brisa mofada incomoda levemente as luminárias do teto, agitando com delicadeza a sombra gráfica que preenche os interstícios do metal fundido.

Olhinhos curiosos, garrinhas assanhadas e boquinhas espantadas agora prestam atenção na silhueta mais experiente, mais velha e menos encantada, que discorre monotonamente sobre sua especialidade: o projeto gráfico de livros.

A escolha correta do tipo… Tosse… A escolha correta do tipo, do sistema de composição em que os caracteres serão gravados… Pigarro… A escolha do papel onde essa composição será impressa… Tosse… A escolha do papel e… Tosse… E finalmente o cálculo prévio da quantidade de páginas que o livro terá… Pigarro… Tudo isso constitui o âmbito do projeto gráfico.

Silêncio.

Olhinhos curiosos deixam de prestar atenção na silhueta mais experiente, mais velha e menos encantada e voltam a observar os pequenos blocos de metal fundido espalhados sobre a imunda mesa de madeira.

Os tipos móveis saltitam sobre a superfície cheia de ranhuras. A terra treme e a poeira se desprende das luminárias, das vigas no teto e das paredes.

Olhinhos curiosos, garrinhas assanhadas e boquinhas espantadas esperam o tremor passar.

O tremor passa.

Alguém mais experiente. Alguém mais velho. Alguém que já não se encanta mais com a aura e o poder dos antigos tipos recomeça a sua aula:

O universo… Tosse… O universo da tipografia… Pigarro… É capaz de produzir… Tosse… Inestimáveis obras de arte.

Os tipos móveis voltam a saltitar sobre a superfície cheia de ranhuras. A terra volta a tremer e a poeira volta a se desprender das luminárias, das vigas no teto e das paredes.

Olhinhos curiosos, garrinhas assanhadas e boquinhas espantadas esperam o tremor passar.

Mas agora o tremor não passa.

O tremor aumenta.

Os pequenos blocos de metal fundido caem da mesa e pipocam no chão, entre os pés peludos e verruguentos, misturando maiúsculas e minúsculas, ricocheteando, desaparecendo nos ralos, as reticências e os pontos de exclamação mergulhando no vazio.

O tremor aumenta mais ainda.

No segundo seguinte o grito do bando histérico multiplica-se, transformando-se em arabescos que se espalham pelos corredores azulejados.

29
O visitante subiu os degraus que levavam ao escritório e encontrou o bibliotecário curvado sobre a escrivaninha, terminando de datilografar uma carta para a Câmara Brasileira do Livro.

Terminada a carta, Frederico assinou, fechou o envelope com lúdica lentidão e, com os cotovelos apoiados na superfície de mogno envernizado, ficou durante algum tempo olhando pela janela, para o vazio que se descortinava para além da janela, para a disposição geométrica dos tijolos do prédio em frente.

Com a carta na mão, ficou assim, sentado, alheio a tudo o que ocorria ao seu redor, o rosto sempre voltado para a janela.

Ao cumprimento do visitante o bibliotecário mal conseguiu responder com um olá esmaecido. Parecia ausente, enraivecido com qualquer coisa cujos detalhes nem mesmo o seu corpo reclinado deixava transparecer.

Então, num ímpeto, enfiou a carta no bolso do jaleco com energia e vigor e levantou aos berros, não, não, não!

Correu até um grupo de assistentes que se ocupavam em tirar de dentro de uma caixa uma miscelânea de obras recém-chegadas, de autores e escolas literárias completamente diferentes.

Não, não, não!

Os rapazes arregalaram os olhos, dando um passo para trás, ficando em posição de defesa.

Não se deve pôr o livro de um autor junto do livro de outro autor de quem ele não gosta! Quantas vezes tenho que repetir a mesma coisa?

Depois, num tom não menos áspero e insuportavelmente professoral, apontou, vejam, prestem atenção, Luís Antônio Amaral aqui, Mônica Villa-Lobos ali, Maria Cordélia Vasconcelos lá, bem longe, na outra ponta. Compreenderam?

Enquanto falava, o bibliotecário notou a presença do visitante.

Mas o que é que você está fazendo aí quieto como uma estátua de gesso? Vamos, entra de uma vez.

Vejo que não cheguei numa boa hora.

Deixa de nove-horas. Entra logo.

Em seguida, voltando-se para os assistentes, a título de admoestação repetiu imperfeitamente os termos de uma das apostilas do curso de biblioteconomia, já nem se lembrava mais de qual delas:

Prestem atenção, panacas, arranjar uma biblioteca, ordená-la, mantê-la firme e coesa, é exercer, de modo modesto, a técnica literária. Isso não quer dizer, de maneira nenhuma, que vocês precisem ler os livros. Não. Mas precisam estar sempre atentos ao significado de cada um. Quero dizer, ao significado do que cada autor pensou ter posto neles. Estão entendendo? Jamais se deve colocar o livro de um escritor junto ao livro de um inimigo seu, ou junto ao livro de alguém que certamente não teria lhe agradado. Sim, é isso. Tomem muito cuidado, ok?

Sim, é isso, repetiu mais para si mesmo do que para qualquer outro idiota presente, como se tentasse se convencer pela enésima vez de algo que nunca estivera muito claro na sua cabeça.

Afastou as mãos de cima dos livros, diminuindo a violência dos gestos, e se voltou mais uma vez para o visitante, e vosmecê? O que o traz à minha humilde ponte de comando?

Preciso que me dê uma mão com um pequeno problema.

Pode dizer. O que é agora?

Dois livros. Eu os vi por acaso, três ou quatro vezes, enquanto andava por aí a trabalho. Não consigo me lembrar onde foi que os vi.

Livros? Com os diabos! Posso ver no fundo dos seus olhos que você tem um grande interesse por tudo o que diz respeito aos livros. Perfeito, você veio ao lugar certo. Temos milhões deles aqui. Quantos vai querer? Só dois? Não faça cerimônia. Sirva-se de mais alguns. Vai levar ou vai comer agora?

Não seja sarcástico, por favor. Não hoje.

O bibliotecário passou por trás da escrivaninha gingando os quadris, esboçando alguns passos mal definidos de balé, fazendo piada com a própria pança.

Ok. Tudo bem. Vamos ver se posso ajudar.

Caminhou até o arquivo vertical de seis gavetas, cinza-escuro e barulhento, existente num canto do escritório e abriu ruidosamente a gaveta mais alta, muito bem, é só ir dizendo os nomes.

O visitante emudeceu de repente.

Seu rosto adquiriu a típica expressão de alguém subitamente consciente de estar prestes a fazer uma grande bobagem. De alguém que, vendado durante uma brincadeira infantil, decide tirar a venda centímetros antes de cair num despenhadeiro.

Ah, bem, é, hum, é que, bem, balbuciou.

A fim de ganhar tempo ele repetiu com as mesmas palavras o que já havia dito a respeito da maneira casual com que entrara em contato com as referidas obras.

Tudo bem. Mas você precisa me dar os nomes, senão fica muito difícil, compreende?

Devagar o visitante foi conseguindo controlar o próprio embaraço e como única saída, talvez a mais inteligente, optou por dizer os dois primeiros nomes que lhe vieram à cabeça.

Coisas do tipo: Elefantes batiam-se a golpes de marfim e Uma vez mais, uma vez mais.

O bibliotecário ficou olhando para a cara do outro sem dizer palavra.

Por fim perguntou, que merda é essa?

São duas antologias de poesia russa moderna.

Poesia russa? Tem certeza? Não sabia que você gostava de poesia.

Pois é. Poesia, sim. Às vezes. Claro, às vezes eu sinto certa curiosidade. Certo interesse por esse tipo de literatura. Quando adolescente, quando havia muito tempo de sobra, eu costumava ler os poetas. Lia de tudo, sem restrição.

Cada qual com sua loucura. Tem certeza de que os títulos são esses mesmos?

Como também não tinha nenhuma certeza quanto a isso o visitante balbuciou de novo, baseado num fio de memória e de intuição, várias possibilidades de título para cada um dos que havia dito.

Infantes de marfim, Elefantes banhavam-se no mar sem fim, Mais uma vez, Maya, Uma vez mais, amada minha e coisas desse tipo.

30
O bibliotecário foi direto à letra P.

Abriu uma pasta. Poesia.

De dentro dessa pasta tirou a segunda. Poesia Russa.

De dentro da segunda tirou a terceira. Poesia Russa Moderna.

Um lista gigantesca saiu de dentro da pasta com essa designação.

Quinze minutos depois o primeiro título apareceu. Estava correto. Elefantes batiam-se a golpes de marfim. Ao seu lado havia apenas a inscrição PRM999-06.

O bibliotecário desviou-se do arquivo, foi até o outro canto da sala, repetindo várias vezes em voz baixa para não esquecer, PRM999-06, PRM999-06, PRM999-06, e tirou de dentro de uma mapoteca velha e descascada um caderno enorme, medindo quase um metro de altura por meio de largura, de capa preta, gasta e encardida, com a inscrição PRM999-06 gravada em prata.

Tirou o caderno, curvando-se um pouco, e o colocou em cima da escrivaninha.

Devia pesar tranqüilamente uns vinte e cinco quilos.

O bibliotecário abriu o caderno exatamente no meio, onde um marcador de pano, desses que ficam costurados na lombada dos dicionários e das enciclopédias, demarcava o exato limite entre as iniciais LEM e LEN. Em seguida passou em revista algumas páginas e só se deteve ao chegar à página ELE.

Tanto essa página quanto a anterior, ELD, estavam preenchidas de alto a baixo por um desenho monocromático, abstrato, extraterrestre, formado apenas por uma série de tracejados finíssimos, como numa gravura de metal feita com um buril.

Mas não se tratava de um desenho. Era uma seqüência muito compacta de minúsculas linhas de texto, quase sem nenhum intervalo entre uma e outra, compostas por caracteres tipográficos de dimensões insignificantes.

Todos os livros existentes no país estavam catalogados aí e em mais uma infinidade de outros cadernos semelhantes a esse.

Nessa lista constavam também, depois de cada título, todos os edifícios, pavilhões, departamentos, salões, armários e nichos, todas as estantes onde haviam sido armazenados os livros sobre poesia russa moderna. Ao lado de cada endereço um número telefônico e o nome do profissional responsável sussurravam sua presença.

Até mesmo as caixas de papelão postas em lugares pouco convencionais, como banheiros e cozinhas, corredores e jardins, estavam registradas na lista.

Essas mesmas caixas de um metro por um metro, com o logotipo da prefeitura e o do governo estampados numa das faces, espalhadas pela cidade toda, onde numa hora de emergência alguém tinha colocado provisoriamente um livro sobre o tema em questão, apareciam nessa folha.

Estavam todas registradas na lista.

Esse afinal era o motivo de orgulho de toda a equipe de bibliotecários: o registro preciso, absoluto e certeiro de tudo o que existia na forma impressa e encadernada, no território brasileiro.

Exatamente, Elefantes batiam-se a golpes de marfim existe de fato. Mas não pertence a esta jurisdição. Muito estranho que você tenha visto um exemplar dele por aqui.

Como assim?

Temos apenas três exemplares desse livro, da edição de novembro de 1976. Mas todos estão na Biblioteca Mário de Andrade.

Compreendo. Creio que estou sendo traído pela minha memória.

É melhor ir esquecendo esse aí. Seria uma mão-de-obra danada tentar transferir um exemplar para o meu território. Além disso não estou nem um pouco a fim de ficar devendo favor ao pessoal de lá.

Tudo bem. Já está mesmo na hora de cuidar de coisas mais importantes, sorriu o visitante se despedindo.

Só um minuto. Como é mesmo o nome do outro?

Frederico voltou à primeira lista do arquivo vertical cinza-escuro, vamos ver, Poesia Russa Moderna, vamos ver. Sim, aqui está. Uma vez mais, uma vez mais. Santo Deus, que título mais infame.

Ao lado do título, uma nova inscrição: PRM123-02.

Deixou o arquivo, foi até a mapoteca e retirou outro caderno de uma de suas gavetas. Outro caderno em tudo igual ao primeiro, exceto pelo novo código na capa: PRM123-02.

O bibliotecário correu o dedo pela página e notou que o carimbo vermelho com as iniciais AJE (Alea Jacta Est) estava ao lado dos dados referentes ao livro.

Mal sinal. O livro existe realmente, mas no momento se encontra em trânsito, estocado provisoriamente num canto qualquer.

Provisoriamente?

É. Não é uma coisa do outro mundo, não. Isso ocorre sempre que necessitamos evacuar uma das nossas salas, devido a problemas elétricos, infiltrações, ratos, coisas desse tipo. É isso. AJE. O livro fica separado no banheiro, no corredor ou embaixo da escada, até que sua estante esteja novamente disponível.

O visitante já não conseguia mais dissimular seu aborrecimento com essa patacoada toda. Movia-se de um lado para o outro, ora parando na frente da janela, ora se desviando do bando de secretários que zanzavam pela sala com as mãos cheias de papéis, poesia russa moderna, arquivos, cadernos, códigos, AJEs, como é que eu fui me meter nisso, oh, Senhor?!

Por fim voltou a se despedir, agora com mais veemência, vamos deixar tudo isso pra lá, está bem?

O bibliotecário, contudo, não deu ouvidos.

Uma vez mais. Que título de merda. Vamos precisar de um pouco de sorte com este aqui. É. Às vezes acontece de os livros serem transferidos para o outro lado da cidade por falta de espaço, ele disse ao visitante tirando o telefone do gancho.

Tirou o telefone do gancho e ficou assim, imóvel, matutando.

É, há uma chance, murmurou.

Se o visitante estava mesmo dizendo a verdade quanto aos encontros acidentais com o tal livro, este só podia se encontrar nas imediações.

Após descartar de cara todos os endereços situados fora do bairro — locais por onde o visitante certamente jamais havia passado, ou pelo menos não com a mesma freqüência com que costumava visitar as repartições próximas — o bibliotecário escolheu um, o mais provável de todos, e com a ponta da caneta discou várias vezes o mesmo número até uma voz rouca e sem emoção atender do outro lado.

A ligação estava péssima.

Deram início então a uma conversa de loucos.

O bibliotecário gesticulava muito enquanto falava, como se através da sua pantomima sem sentido pudesse se fazer compreender com maior rapidez pelo funcionário desinteressado e impaciente, que o escutava com indisfarçada má vontade.

Num determinado momento da conversa o bibliotecário disse: Uma vez mais, uma vez mais.

O funcionário entendeu que o bibliotecário estava pedindo que repetisse uma vez mais o que havia dito antes.

O bibliotecário por sua vez disse, não, não é nada disso, Uma vez mais, uma vez mais é o título do livro que nós, daqui, queremos localizar.

O funcionário tornou a dizer o que havia dito antes, porém agora com a voz alterada, frisando cada palavra de maneira ríspida e prepotente.

Só então ele se deu conta do que Uma vez mais, uma vez mais queria realmente dizer: era o título de um livro!

A ligação estava péssima.

Uma conversa de loucos, concluiu o visitante.

Ficaram nesse pingue-pongue durante um bom tempo. A cada nova pausa nas suas explanações o bibliotecário anotava furiosamente, seguindo as dicas de seu interlocutor, um sem-número de dados numa ficha azul pega de dentro de um fichário também azul.

Ao desligar, parecia excitadíssimo.

Voalá!, bradou se dirigindo de maneira efusiva ao visitante, bingo, conseguimos, a maior parte dos exemplares, seis ou sete, se encontra em Goiânia, mas temos três aqui na cidade, um deles bem perto de nós.

O visitante recebeu a ficha azul, o certificado indiscutível da sua total imbecilidade, sem sequer tentar dissimular o tédio que sentia. De fato, por razões próprias ele não estava tão comovido quanto o bibliotecário.

Poucos minutos depois já se encontrava na rua.

Eu bem que mereço isso, entredizia cerrando os dentes.

Andava de cara amarrada sob um sol furioso, suando em bicas. Apesar de levar no bolso a tal ficha com o endereço anotado a lápis no verso, andava sem destino, sem vontade, apenas para se afastar do maldito escritório, do maldito arquivo, das malditas pastas.

Próximos capítulos

O visitante devagar vai perdendo o controle da situação (se é que alguma vez ele o teve). Momento de solidão e introspecção. Cai a chuva, sopra o vento. Ensopado, isolado e segregado, o visitante não consegue deixar de pensar em Estela, a mulher do bibliotecário. Também não consegue deixar de pensar no Atlas celeste e no Dicionário de astronomia e astronáutica.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho