Romance-Folhetim: Poeira: demônios e maldições (3)

Capítulo 3 do folhetim "Poeira: demônios e maldições", de Nelson de Oliveira
Ilustração: Tereza Yamashita
01/01/2007

7
No corredor quase não se enxergava nada.

Cuidado com o primeiro degrau, é sempre o pior, ela avisou.

Apóie-se em mim.

Tudo bem. Sei o caminho de cor. Conheço estes corredores e estas espeluncas há quinze anos.

Compreendo. Mesmo assim, segure o meu braço.

Desceram devagar, devido mais à deficiência dela do que à falta de iluminação adequada.

O que houve com as lâmpadas do corredor?

Estão todas aí, creio eu.

Não seria má idéia manter todas acesas, pelo menos à noite. Deus, podemos quebrar uma perna descendo estas escadas assim no escuro!

Não concordo. Veja só isto.

Estela passou à frente do visitante e no hall abriu para ele não a porta mais larga sobre a qual estava escrito refeitório, por onde o bibliotecário e a faxineira tinham passado, mas outra, a que havia no extremo oposto. Uma portinhola de madeira, sem graça e insignificante.

Abriu-a de supetão a fim de que a luz que vinha de fora pudesse golpear sem nenhum aviso seus próprios olhos e os olhos do visitante.

As estrelas invadiram o hall, desimpedidas como fogos-fátuos soltos num descampado. Invadiram o hall do refeitório e em poucos segundos desfiguraram as paredes e os objetos, o homem e a mulher. Ah, as estrelas! Tudo em que tocavam passava a brilhar por si só, contaminado por essa radiação fantasmagórica.

Fora do prédio, no céu, acontecia uma batalha terrível.

Brahma, Odin, Zeus, Jeová, Alá, no céu.

Não. Não em toda a abóbada celeste, porém apenas numa pequena fatia visível dela.

Somente na faixa estreita enquadrada pelo topo dos edifícios, sendo cada prédio um dente na boca de um precipício artificial.

Você primeiro, colega.

O visitante estava meio apalermado. Murmurou ãh, sim, e saiu.

Ele está morto de medo, pensou Estela. Mas do que exatamente ele tem medo? Desses livros misteriosos? Apenas disso? Não. Não tenho tanta certeza assim.

O estreito pátio que separava o refeitório do prédio seguinte, e ambos da infinidade de outros prédios, todos dispostos ao redor do que antes, muito, muitíssimo antes havia sido uma pequena praça bastante arborizada, esse pátio estava em chamas, ele ardia e fulgurava. Sua superfície ondulava sob uma insistente rajada de faíscas, rajada que caía em círculos, fritando o corpo e a bicicleta de alguns ciclistas que passavam por aí.

Você está com sorte. Esta, se não me engano, é a noite mais longa do ano. E também a mais radiante. Vê?

Sim.

O visitante arriscou uma olhadela na direção do céu, mas logo abaixou a cabeça constrangido.

Não seja esnobe. Entrega os pontos e olha para o alto. O maior número de estrelas visíveis a olho nu está aí, hoje, sobre a tua cabeça, sobre a minha cabeça.

Compreendo.

Deram a volta no prédio. Deram a volta, mas sem entrar no corredor escuro que separava o refeitório do escritório. Daí podiam ver muito bem a janela do primeiro andar, a janela aberta, e um pedaço do cômodo às claras.

Parece até que estão assassinando alguém aí, o visitante comentou.

É melhor a gente esperar aqui, Estela disse segurando de leve seu cotovelo.

O bibliotecário surgiu à janela. Tinha recuperado os óculos. Imediatamente uma enxurrada de livros começou a despencar, formando uma catarata instantânea e fugaz.

Divina desobediência civil, O estandarte do fortalecimento, A conquista dos impérios do sul, Percepção erótica e experiência monástica.

Os livros batiam no concreto, chacoalhando os alicerces da Terra, fazendo tremer as estrelas.

Não se assuste. Quando está irritado ele passa uns bons minutos espalhando muito papel ao seu redor. Ele faz isso indiscriminadamente. Mas depois da tempestade ele perde semanas reorganizando as estantes, prateleira por prateleira, livro por livro. Dá pra acreditar numa coisa dessas?

Isso não é lá muito produtivo, não é mesmo?

Ela deu uma gostosa gargalhada, não, meu senhor, não é mesmo.

As faxineiras, ainda esperando do lado de fora do edifício, foram obrigadas a se afastar. Caso contrário seriam rapidamente soterradas pela fúria desse louco. Os sete volumes das Manifestações das hierarquias constitucionais por pouco não atingiram a cabeça de várias delas.

Porém uma edição de bolso do maçante Decadência e domesticação voou tão longe, que terminou por acertar o peito do visitante.

Raios.

Vários ciclistas, cinco, seis, sete deles, entraram no corredor em fila indiana, cada qual tocando sua campainha, fazendo grande alarido.

Passaram levantando poeira sobre os livros espalhados no chão e desapareceram numa curva no final do corredor.

O visitante, que agora já estava fora do alcance dos disparos do bibliotecário, se afastou mais um pouco para não ser atropelado.

Você não acha que seria melhor, ele ia dizendo quando se deu conta de que estava falando sozinho.

A mulher do bibliotecário voltara ao prédio do refeitório usando dessa vez a porta principal e agora trazia de lá, com certa dificuldade, uma grande caixa marrom.

Trazia a caixa sob o braço livre, apoiando uma das quinas na coxa da perna boa, é, na coxa da perna que quando ela era criança não havia sofrido nenhum acidente.

O visitante ouvia vozes. Ajude-a, dizia-lhe o grilo falante que parecia existir dentro da sua cabeça. Não fique aí parado, ajude a mulher, imbecil.

Estela voltou pelo corredor, passando pelo visitante, e seguiu na direção do pátio.

Rapaz, que figura grotesca, pensou ele completamente alheio aos sussurros do grilo, enquanto acompanhava só com os olhos o vulto sobrenatural, claudicante, da mulher.

Me ajuda com isto aqui.

De dentro da caixa surgiram os muitos componentes empoeirados de um telescópio, muitos mesmo. Quantos deles havia aí? Vinte, trinta, cem? O visitante não sabia dizer.

Ela os retirou cuidadosamente, um a um, sempre com reverência, sempre passando um lenço na sua superfície a fim de remover a sujeira. Depois uniu-os clique-cleque-claque com uma agilidade incrível diante do visitante que, durante todo o tempo, limitou-se apenas a segurar a tampa da caixa.

Que tal?

Era uma engenhoca feita de peças toscas e desproporcionais, na certa construída por ela mesma havia bastante tempo. A objetiva estava um pouco riscada e as pernas do tripé, levemente tortas.

Observada contra o fundo negro da noite essa engenhoca parecia um lança-granadas ou uma metralhadora apontada para o prédio residencial mais próximo.

Estava apontada para a janela de um apartamento.

Olha só isso, murmurou Estela curvada.

Você tem o hábito de ficar bisbilhotando a vizinhança?

Só quando estão na cama. Vem ver.

Pelo amor de Deus!

Não seja otário. Vem. Prometo que você não vai se arrepender.

Definitivamente não. Detesto invasão de privacidade.

Ela ergueu-se risonha.

Vem, pô! Eu estou só brincando. Ninguém está fornicando, não, seu idiota.

É difícil entender algo tão simples? Você não compreende que eu não quero olhar através da janela alheia? Tenha paciência, sim?!

Idiota.

Estela curvou-se mais uma vez e mais uma vez ajustou o foco da objetiva. Em seguida, abandonando as janelas próximas, começou a riscar vagarosamente a paisagem à procura de algo que pudesse despertar seu interesse.

Não acredito que você seja capaz disso, resmungou o visitante enfiando as mãos nos bolsos.

Você não sabe o que está perdendo.

De repente o telescópio parou de girar. Estela estava estática.

Veja só isso.

De jeito nenhum.

Vem ver, rápido.

Deus, não!

Rapaz, que coisa inacreditável.

Ela continuava imóvel, sem falar nem respirar. O único ruído audível era o da sola dos sapatos do visitante, o reque-reque do seu arrastar antipático. Ele, muito constrangido, andava de lá pra cá a procura de uma saída de emergência.

Rapaz, ela sussurrou excitada, prolongando bastante cada sílaba.

Parecia olhar qualquer coisa que estava acontecendo num prédio a uns cem metros de distância.

Então se ergueu de supetão e puxou a gravata do visitante dizendo, tolinho.

Ele, pego de surpresa, deu um passo para trás.

Estela sorriu, é brincadeira, seu bobo.

O quê?

Não dá pra se ver nada com este traste. A não ser durante o dia, e olhe lá.

Fabuloso, ele resmungou.

Estela agachou-se mais uma vez. A perna doente a incomodava um pouco quando forçada a se dobrar assim.

Eu mesma montei este trambolho, peça por peça, quando era estudante. Nunca funcionou. As lentes vieram primeiro, elas estavam entre as páginas de uma enciclopédia muito velha, guardada no sótão da cozinha.

Lugar esquisito pra se guardar lentes.

Concordo. Mas estavam lá. E mais: elas têm na borda a marca em baixo relevo da Oficina Franz Grünewald, de Viena, a melhor do seu tempo. Foi só por isso que decidi usar essas lentes.

Compreendo.

Vem ver. De qualquer maneira as estrelas ganham um brilho novo quando vistas com isto aqui. Principalmente nesta época do ano.

O visitante não disse nada. Suspirou, contrariado. Ficou de cócoras e segurou sem muita convicção a extremidade do telescópio.

Um casal gigantesco se esfregava quase sem roupa — ele com a boca no peito dela — no quarto de um hotel.

Estela explodiu em risos.

8
O bibliotecário vinha devagar, saindo do corredor e entrando na trilha de pedregulhos que seguia até o pátio.

Vinha medindo as pegadas, pesando as paredes laterais, como quem procurasse em vão um pensamento num jardim onírico, entre arbustos e roseiras invisíveis.

Vinha, os olhos cheios de vento, as mão cheias de livros, curioso para saber qual era afinal a graça.

Estela controlou o riso e não disse nada. O visitante, menos ainda.

Era só o que me faltava, Fred resmungou ao ver o telescópio em pé no cimento, se dirigindo mais aos próprios botões do que às pessoas presentes.

Vocês não perdem por esperar, Estela sorriu safada.

A mulher saltitou ao redor do visitante, depois ao redor do marido, com uma exclamação provocadora nos lábios. Ergueu o telescópio, segurando pelo tripé, e o pôs alguns centímetros mais à direita, apontando para o topo de uma elevação.

Apontou para o único ponto, num giro de trezentos e sessenta graus, em que não existia absolutamente nenhuma construção, nenhum edifício, nada. Uma faixa estreitíssima, de mais ou menos meio metro, através da qual via-se o tal morro.

Apontou para lá.

Ajustou o foco mais uma vez, sempre fazendo sinais com as mãos para que os dois se aproximassem.

Juro pela minha mãe como isto aqui é do caralho, ela disse ao visitante, procurando conter o riso.

Juro pelo meu cachorro que não é, ele respondeu sarcástico.

O bibliotecário trazia nas mãos quinze, talvez vinte livros, equilibrando-os como podia, tentando não deixar nenhum cair. Aproximou-se do visitante e empurrou delicadamente toda a carga para as mãos dele.

Toma. Aceita isto como um presente de boas-vindas.

?

Não fica aí parado com essa expressão palerma nas fuças. Anda logo. Todo mundo pra dentro.

Mas… Que é que eu vou fazer com estes livros? Onde é que devo guardar?

Na sua estante, é óbvio. Você não tem uma estante em casa?

Pára com isso. Você sabe muito bem que sim. Todo mundo tem estantes em casa.

Abarrotadas, não é mesmo? Estantes cheias de livros, cobrindo todas as paredes do seu quarto, da sua sala, do banheiro. Livros saindo pelo ladrão, não é?

A merda é exatamente essa: não há espaço.

Estela ajustava o foco, porém sem perder uma palavra do que o marido dizia, pelo amor de Deus, Fred, não começa com a mesma ladainha de sempre, ok?

Vá à merda, está bem?!

Depois, voltando-se mais uma vez para o visitante, é pra isso que você está aqui, pra avaliar e resolver esta grande questão, não esqueça de avisar os teus superiores de que não há mais nenhum espaço, está compreendendo, não há mais espaço!

A objetiva rastreou novamente a paisagem, mas dessa vez se detendo apenas no que havia além das nuvens, nas estrelas.

Estela observava as estrelas.

Alpha Crucis. Arcturus. Vega. Castor.

Depois de algum tempo seu olho direito começou a arder. De repente também não conseguiu mais ouvir o que o bibliotecário e o visitante conversavam. Tudo começou a ficar embaçado, nuvens, estrelas, palavras.

Tá bem, chega por hoje, ela enfim disse a si mesma.

Nessa hora duas estrelas gêmeas se descolaram do cenário fixo e começaram a descer.

Que diabos!

Estela, curiosa, acompanhou-as o quanto pôde. Seu olho lacrimejava e a sensação de desconforto ficava cada vez maior.

As estrelas finalmente tocaram o planeta, pousando num ponto muito distante do pátio, no alto do morro, transformando-se, para o alívio da observadora, nos faróis de um veículo que se aproximava.

Um jipe entrou no desfiladeiro de edifícios, entrou devagar, sem levantar muita poeira. Os faróis mancharam as portas do refeitório, primeiro, depois o rosto do visitante e o do bibliotecário, antes de se apagarem.

Boas-noites, meus queridos. Ainda há um pouco de vinho pra dois exploradores maldormidos?

Rodrigo e Renata.

Estela abraçou a filha, aspirando com força o odor das estradas, o agradável perfume dos lírios.

Esperamos vocês para o jantar. Por que se atrasaram tanto?

Desculpa, mãe. Não deu pra avisar. O trânsito estava péssimo.

Como foi a viagem? Algum problema?

Sim. Acabamos pegando um engarrafamento-monstro a uns duzentos quilômetros daqui. Conta pra eles Rodrigo.

Ah, deixa pra lá. Se eu contasse vocês não iam acreditar no tamanho da encrenca. A fila que se formou…

O que foi que aconteceu? Algum acidente grave? Um engavetamento? Uma ponte caída?

Não, sogrinha. Nada tão espetacular assim. Tudo porque algumas cabines do último posto do pedágio, acho que umas seis ou sete, não estavam operando. Uma merda.

Santo Deus. E você, filha? Passou muito mal?

Não, nada de mais. Senti só um pouco de enjôo. Daí o Rodrigo parou pra mijar no acostamento. Pra nossa surpresa o pôr-do-sol estava tão espetacular que acabamos cochilando na grama.

Opa, quase chutei o tripé… Vejo que vocês estavam se divertindo observando as estrelas. A noite realmente promete.

Então, vocês dois? Trazem boas novas?

Oi, Fred. Que cara é essa?

Seu pai teve mais um de seus chiliques. Não entra no escritório, está bem?

Rodrigo, meu secretário. Renata, minha filha.

Encantado.

O senhor deve ser…

Pedro Penna, às suas ordens. Muito prazer.

Na verdade, o senhor é quem nos deve boas novas, não é mesmo, senhor Penna.

Renata!

Ela está certa, dona Estela. O senhor Penna é, acredito, o técnico de estoques do qual nos falaram em São Paulo.

Exatamente.

Traga seus preciosos livros, senhor técnico, resmungou o bibliotecário puxando o visitante pela manga do paletó. Você também vem, Rodrigo. Quero os dois comigo, vamos ao prédio dos arquivos. Agora! Temos muito o que conversar.

Mas a esta hora? Tenham a santa paciência, pô!

Deixa, mãe. Eles têm mesmo muito o que conversar.

Até quando esta palhaçada vai continuar? Isto está me deixando maluca.

Deixa pra lá. Sobrou algo do jantar?

Vamos lá pra cima. Deixei um prato pra você no forno.

9
Subiram as escadas do refeitório às apalpadelas, apoiando-se uma na outra, Estela lendo com a ponta da bengala os degraus, Renata roçando na parede a bolsa que trazia a tiracolo.

Não sei como ninguém nunca quebrou uma perna aqui.

Renata entrou bufando na sala de jantar, vejam só, estavam usando a porcelana inglesa, hein?!

Encostou a bolsa num dos pés da mesa e se atirou, exausta, na velha cadeira de encosto vermelho.

A cadeira gemeu. Renata gemeu.

O prédio todo pareceu se curvar, como se por um minuto pudesse sentir o fardo orgânico: o sangue de Renata depositando-se nas extremidades do corpo, o peso que ela trazia dentro de si, dentro da sua cabeça, toda a opressão das estradas do sul.

Estela esquentou a comida no microondas mais rabugento do bairro.

A filha comeu tudinho.

Minha bunda dói, minhas pernas doem, minha aura dói.

Por que não vai tomar um banho, pôr seu pijama, se deitar? A viagem foi muita cansativa.

Não tenho forças pra sair daqui. Estou moída.

Tira os sapatos. Te faço uma massagem nos pés.

Renata deslizou facilmente um dos pés pra fora do sapato. Em seguida com a ponta do pé livre libertou o outro.

Gemeu.

Mas por falta de espaço não conseguiu esticar completamente as pernas.

À sua frente havia uma estante forrada de livros.

Havia estantes também às suas costas e nas paredes laterais. Todas cheias, do chão até o teto.

Quando um caminhão ou mesmo um automóvel dos grandes passava nas imediações, a poeira acumulada durante anos sobre os livros escorregava para fora das estantes, indo cair — no chão? não — sobre uma infinidade de outros livros que, por não caberem nas prateleiras, aguardavam um destino melhor em cima de cadeiras, de engradados e da própria mesa de refeições, ou pelo menos de boa parte dela.

Esse talento para a camuflagem era assustador e antigo. Estela espantou-se com a abrupta presença dos volumes de capa dura e das brochuras que, temos que reconhecer, quando queriam sabiam passar despercebidos. Durante todo o jantar ninguém notara os intrusos. Subitamente, aí estavam eles. Terrível mimetismo.

Você tem tomado suas vitaminas?

Tenho sim. Comprei mais duas caixas hoje de manhã antes de pegar a estrada.

Roupas? Comprou algo novo?

Não, mãe. Nada.

Alguma bijuteria?

Nenhuma. Não tive a menor vontade de ir às compras. Não mesmo.

Por um minuto as duas mulheres, sentadas tão próximas uma da outra, em silêncio, ficaram tão semelhantes fisicamente que foi como se dois manequins, desses que se vêem nas vitrines das lojas esnobes, tivessem sido postos um ao lado do outro no canto da sala.

Estela quebrou o silêncio pegando uma xícara e a garrafa de café.

Café?

Quero.

Depois não fechou mais a boca.

Durante todo o tempo em que passou diante da porcelana inglesa, Renata ouviu a mãe falar a respeito de uma infinidade de coisas sem graça e banalíssimas.

Ouviu-a falar a respeito dos pratos que havia preparado para o visitante, do vinho e da sobremesa.

Ouviu-a falar a respeito da cadeira velha que estava reformando, das novas cortinas que pretendia colocar no escritório, dos livros havia pouco atirados pela janela e do jardim que planejava cultivar nos fundos do prédio assim que a Secretaria do Meio Ambiente desse a permissão.

Ouviu-a falar sobre tudo isso e sobre muito mais.

Uma dúzia de bobagens postas à mesa como se fossem as maiores novidades na face da Terra, como se a filha não soubesse de nada disso, como se houvesse se passado seis meses desde a última vez em que tinham se visto, e não apenas três dias.

Caramba, como tagarela, ela está exausta, Renata concluiu.

Próximos capítulos

No meio da noite o bibliotecário, seu genro e o visitante visitam o prédio dos arquivos, onde é revelado ao visitante (e ao leitor) o burocrático funcionamento da catalogação de livros. Estela submerge na onda de queixas que a rotina matrimonial sempre traz à noite, enquanto durante o banho Renata é arrastada pelo fluxo de pensamentos e sensações místicas provocadas pela água quente.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho