Romance-Folhetim: Poeira: demônios e maldições (2)

Capítulo 2 do folhetim "Poeira: demônios e maldições", de Nelson de Oliveira
Ilustração: Tereza Yamashita
01/12/2006

4
Às vezes o bibliotecário parava de falar por um longo tempo, um tempo longo demais, e passava a olhar o vácuo esticado entre a ponta do seu nariz e a do nariz do outro, como se estivesse lendo no vazio um relatório muito importante escrito em javanês.

Ou uma carta em aramaico. Ou um livro em chinês.

Nessas horas suas bochechas enrubesciam, seus olhos cresciam mais ainda atrás das grossas lentes e todo o seu rosto adquiria um tom colérico.

Livros. Só pode estar pensando nisso, conjeturava entediado o visitante.

Daqui a pouco ele vai retomar a velha ladainha de sempre, conjeturava entediado o visitante sem mover uma pálpebra sequer.

É melhor eu pensar rapidamente em alguma coisa pra dizer, caso contrário já já estaremos mais uma vez andando em círculos, conjeturava entediado o visitante, percebendo agora a unha de um calafrio tocando sua espinha.

Preciso desviar sua atenção dos malditos livros, conjeturava entediado o visitante, procurando desesperadamente nas profundezas do seu próprio rol de pensamentos um, sim, um único e desprendido pensamento que pudesse ser trazido sem dor à tona, um pensamentozinho que de preferência não dissesse respeito a nada impresso e encadernado.

Não encontrou nenhum.

Porém, para sua sorte, foi Estela quem acordou primeiro:

Tudo isso é demais pra minha cabeça.

O bibliotecário, como se tivesse acabado de ouvir o estalo de um par de dedos imaginários, saiu do transe em que havia se metido, balbuciando, oh, hum… hã?

Eu passo a maior parte do meu tempo na cozinha e quem é que vive falando em panelas? Você.

O quê?

Você e essa sua infindável história das panelas.

O que é que tem a minha história das panelas afinal?

Daqui a pouco você vai começar a recitar o capítulo Como escolher, medir e armazenar panelas d’O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. Ó Senhor, poupe-nos.

O visitante mudou de posição na cadeira. Sentia como se estivesse sentado em cima de um ralador de queijo.

As bochechas do bibliotecário pegaram fogo. Seus olhos se encheram de lágrimas. As narinas inflaram. Mas ele não disse nada. Limitou-se apenas a mexer nos óculos e sorrir.

Sorriu.

Panelas, panelas, panelas, repetiu ele sem muita vontade, começando a dar mostras de que em breve iria se afundar mais uma vez no texto invisível que pairava à sua frente, impresso na superfície de outra dimensão.

Porém, antes de submergir por inteiro, acordou de maneira abrupta e soltou em seguida uma boa gargalhada, uma gargalhada quente e rubicunda.

Panelas.

Todos tornaram a rir.

Nos pratos, restinhos de alcachofras com molho Béarnaise, fiapos de coq au vin, sobras de batatas ao forno com casca, gotinhas de salada de alface e tomate, farelo de pão francês, lasquinhas de queijo tipo Camembert com pêra. Nas taças, uma fina e fútil camada de vinho tinto seco.

Não há muito espaço, não, não há, mas aqui se come bem.

Café?

Aceito, sim.

Os dois homens ergueram-se e foram até o canto da sala, onde uma bandeja com várias xícaras e uma garrafa térmica os aguardavam. O bibliotecário segurou a bandeja e o visitante, a garrafa térmica.

Trouxeram tudo para perto da mulher a fim de que ela os servisse servilmente.

Sentaram.

Açúcar?

Não, obrigado.

O delicioso tlintlim de colherinhas. Depois o silêncio.

Não há muito espaço, como já deve ter percebido. Mas aqui se come bem todos os dias.

De fato.

Estela tornou a rir:

Acho que eu já disse isso antes, não?

Pelo amor de Deus, Estela. Comida. É só nisso que você pensa o dia todo?

Arroto discreto, reprimido em parte pelas costas da mão.

Batidas na porta.

Entra, caralho.

Seu Frederico pelamor de Deus vem rápido seu Frederico a sua mesa está cheia de livros seu Frederico vem logo vem.

O bibliotecário levantou de supetão.

Filhos da puta.

Levantou e saiu da sala, seguido pela velha faxineira.

Não liga para o que ele fala. Merda, caralho, filhos da puta. Apenas isso. Numa frase curta, numa frase de, digamos, doze palavras, pode apostar que você vai encontrar dois caralhos e três merdas. É sempre assim. Talvez até uma buceta. Pode apostar.

O visitante também se pôs de pé.

Que diabos, resmungou.

Estela observou-o embevecida.

Esse que diabos, solto assim sem mais nem menos por alguém que insistia em não quebrar nenhuma regra da boa educação, por um cavalheiro que fazia questão de dar mostras da mais esmerada polidez, deixou-a muito mais à vontade na sua velha, grande e confortável imitação de uma cadeira Luís XV.

Que diabos, hein?

O visitante enrubesceu.

Perdão, eu não quis, eu, bem… Que diabos!

Ambos tornaram a rir.

Todo esse inabalável bom-tom, toda essa insuportável subserviência a tudo que dissesse respeito às normas de etiqueta e de boa conduta não passavam de um blefe, é, não passavam da mais pura encenação, concluiu Estela.

É melhor você sentar, meu caro. Esta vai ser uma longa noite.

O visitante, porém, permaneceu em pé.

Não estava mais rindo.

Me conta um pouco mais dos salões de festa da capital. Do glamour. O que é que as adoráveis senhoras costumam usar nessas ocasiões?

O visitante, um pouco desatento ao que ela dizia, continuou em pé, mesmo quando a velha cadeira de encosto vermelho foi recolocada com muita delicadeza ao seu lado.

Estela, sem se levantar, puxara com muito cuidado a cadeira para perto dele. Puxara com o pé. O visitante, todavia, não se apercebeu disso.

O cúmulo da grosseria.

Pior, minutos depois ele ainda pigarreava e cofiava a barba, em pé, como se estivesse no centro de um estádio de futebol completamente deserto, fora deste mundo.

Estela, de qualquer maneira, fingiu não perceber esse pequeno deslize por parte de quem, à mesa, dera mostras da mais esmerada educação.

Nem esse nem os demais, deslizados candidamente durante o jantar. De fato ela não queria quebrar o clima de entendimento que pela primeira vez, nas últimas vinte e quatro horas, havia se instaurado entre ambos.

Ele viaja nos próprios pensamentos, ela concluiu.

Depois ficou se perguntando, santo Deus, onde estará? No vácuo? O que poderia haver a um bilhão de anos-luz daqui?

Não soube responder a si mesma e a cadeira continuou vazia por mais algum tempo.

Em algum lugar dentro da noite um telefone tocou.

Tocou insistentemente.

O visitante estava intranqüilo. Parecia metido num cipoal intransponível, desses só encontrados em certas regiões do planeta. No norte da África, por exemplo. Ou na Amazônia.

Parecia também acossado por sentimentos contraditórios e terríveis, por um desejo de morte ao mesmo tempo ritmado e silencioso, oculto atrás da batida do seu coração. Oculto atrás do toque-toque singular, sempre presente, que dia após dia subia do peito para a garganta.

Ou talvez atrás do toque-toque danado que acontecia nos degraus de uma escada carcomida pelos anos. Talvez. Nos degraus martelados por afoitos saltos de couro.

Desceram as escadas aos pulos, apoiando-se no corrimão. As escadas do refeitório. O bibliotecário e a faxineira, aos pulos.

Desceram.

5
Noite.

Noite profunda e perigosa.

Noite estereotipada como todas as noites urbanas.

Nela pessoas sensatas brigam, pessoas sensatas riem, pessoas sensatas fazem amor, pessoas sensatas lêem, assistem à tevê, telefonam para os amigos e para os parentes, tornam a brigar, tornam a rir, tornam a fazer amor, tornam a ler, a assistir à tevê e a telefonar.

Tudo muito comum, tudo muito trivial, tudo muito sensato.

Pessoas sensatas procuram a luz e o aconchego. Pessoas sensatas evitam os corredores sujos e fedorentos, as salas empoeiradas e úmidas, os forros e os sótãos antigos e abandonados.

Mas, porra… Quem foi que disse que o mundo é habitado apenas por pessoas sensatas?

Não há nele também os que não são sensatos? Não há nessas noites profundas e perigosas também os que não pessoas?

Neste exato momento mãos afoitas arrancam as tábuas podres que vedam portas e janelas, pés peludos sacodem os pisos pré-históricos, narinas extenuadas sorvem o ar quente dos cômodos abandonados. Neste exato momento criaturas corpulentas atropelam arquivos e antiguidades mergulhados na escuridão.

No andar de baixo as pessoas sensatas param de comer, ou de fazer amor, ou de assistir à tevê. Param de fazer o que estavam fazendo, olham sensatamente umas para as outras, depois para o teto, intrigadas. Que barulho foi esse?

Ratos, alguém vai dizer com um sorrisinho preocupado.

Sempre os ratos.

Tudo muito comum, tudo muito trivial, tudo muito sensato.

Como se nas noites urbanas só os ratos fossem capazes de roer a roupa do rei de Roma. Ah, sim, nessas noites estereotipadas só os ratos arrancam as tábuas podres que vedam portas e janelas, só as patinhas peludas dos ratos sacodem os pisos pré-históricos, só as narinas extenuadas dos ratos sorvem o ar quente dos cômodos abandonados, só o corpanzil minúsculo dos ratos atropela arquivos e antiguidades mergulhados na escuridão.

Tudo muito civilizado, tudo muito humano, tudo muito sensato.

Mas, caralho… Quem foi que disse que o mundo é habitado apenas por pessoas sensatas e por ratos profundos e urbanos?

Ilustração: Tereza Yamashita

6
As portas do refeitório davam acesso a um corredor bastante estreito, que um dia havia sido uma viela.

Esta, por sua vez, tinha sido havia muito tempo uma rua larga com calçadas de ladrilho hidráulico e meios-fios pintados de amarelo.

Antes disso, uma avenida corria nesse local. Muito antes disso.

Hoje, um corredor.

Alguém mexeu neles depois que você abriu a porta?

Sinsenhor quero dizer não ninguém não mexeu não nunsenhor.

Fora do prédio as estrelas pipocavam ao redor da lua cheia, chacoalhando a noite com seu odor sutil, primevo, sedutor.

Sirius. Antares. Canopus. Alpha Centauro.

Pipocavam perfurando as nuvens.

Estela está perdendo um espetáculo magnífico, pensou o bibliotecário sem sequer se dar conta disso.

Onde estão desta vez?

Em cima da sua mesa seu Frederico lá mesmo em cima da mesa.

Merda.

Um batalhão de faxineiras ocupava boa parte do corredor, aguardando ordens. As mesmas monótonas faxineiras de sempre. Esperavam em pé do lado de fora do prédio, esperavam por uma palavra de comando, por uma ordem firme e veemente. Só dariam início ao turno da noite depois de conseguirem o que tanto esperavam.

Ninguém sai daqui, está entendido? Você, velha, você vem comigo.

No hall de entrada, vassouras, baldes cheios d’água, várias tiras de pano, uma lata de cera incolor, alguns litros de água sanitária, dois ou três de álcool, cinco garrafas pequenas de desinfetante, tudo isso no hall de entrada. O bibliotecário se enroscou nos trapos, num balde e numa vassoura, porra, por que você não deixa as tuas tralhas longe da porta, praguejou.

Desculpa seu Frederico é que eu o senhor sabe foi o senhor mesmo quem disse pra eu correr quando os livros aparecessem de novo eu fiquei muito assustada um monte de livros em cima da mesa agora toda noite é a mesma coisa.

A mulher falava sem parar, desembestando ais e uis.

Frederico sentiu o recorrente ímpeto de calar a idiota com um safanão.

Não o fez.

Havia fogo demais nesses olhos flagelados, nessa boca desdentada saída dos cafundós-do-judas. Um incêndio capaz de incinerar todo o quarteirão. Um golpe só, por mais forte que fosse, não seria suficiente para extingui-lo. Isso mesmo, fogo em excesso.

Ontem você trancou bem a porta antes de ir pra casa?

Tranquei sinsenhor.

Trancou mesmo? Você às vezes esquece de trancar várias portas, insistiu ele.

Tranquei sinsenhor.

E a janela?

A janela?

É, sua múmia, a janela! Esqueceu que agora a sala tem uma janela novinha em folha? Esqueceu?

O bibliotecário bateu as mãos nas ancas flácidas. Cacete! Então percebeu que a lâmpada da escada estava acesa. Percebeu que ela estava acesa havia muito, muito tempo mesmo.

Isso aumentou ainda mais o seu aborrecimento.

Luzes acesas por toda parte, resmungou enquanto subia os degraus.

A velha não se animou a segui-lo.

Enquanto subia os degraus algo dentro do peito dele parecia bater como se fosse um martelo. Um, dois, um, dois, sem parar, sem mudar, sem doer.

O bibliotecário não podia fazer nada a respeito disso. Não era uma batida muito alta.

Não. Não era nada muito barulhento. Nem muito doloroso. Era apenas um ruído abafado.

Um, dois, um, dois, como alguém batendo nas grades de uma prisão, como alguém num lugar secreto, bangue bangue bangue, tentando se libertar.

Tudo o que ele fazia — apalpar o casaco, arremessar os braços pra frente e pra trás, pigarrear, praguejar — não era suficiente para dar um basta no ruído.

Pára, pára, pára, pára!

O bibliotecário começou a correr enraivecido.

A luz do escritório também estava acesa. Tanto a das luminárias do teto quanto a das arandelas. Apenas o abajur permanecia apagado no fundo da sala.

Você pede que apaguem todas as luzes onde não há ninguém, você pede, torna a pedir, repete, torna a repetir, não deixem a luz acesa onde não há ninguém, você diz todo santo dia, mas ninguém dá ouvidos, ninguém.

Apagou a luz das arandelas, deixando apenas a das luminárias do teto, e começou a inspecionar o cômodo.

Livros. Muitos deles.

Uns duzentos, mais ou menos. Divididos em seis pilhas, todas em cima da mesa do escritório.

Merda.

Um cachorro não teria latido melhor. Merda.

No topo da primeira pilha, um delicado livro infantil de capa dura, muito colorido e atraente.

O bibliotecário abriu-o ao acaso.

Era um livro bonito e bem impresso, de letras grandes e serifadas. Enormes ilustrações em tons pastel, ricas em detalhes, ocupavam boa parte de suas páginas.

O bibliotecário folheou-o durante muito tempo sem dizer palavra.

Folheou sem se deter em nenhum trecho.

Não. Por nada no mundo pararia nesse instante para ler um parágrafo sequer.

Seus dedos coçavam como se estivessem prestes a adquirir garras afiadíssimas e devastadoras.

Repugnava-o esse texto bem-composto, essas ilustrações maravilhosas, esse encantamento. Repugnava-o principalmente o absoluto cuidado com que o livro havia sido confeccionado antes de vir parar nas suas mãos.

Fechou-o enfim.

Eu seria capaz de comer esta porcaria, sussurrou em seguida.

Então aos gritos, oh, Senhor, acredite, eu seria capaz de comer inteirinho esta merda, é, página por página.

Depois eu vomitaria, é, eu vomitaria em cima do meu tapete, depois sem pestanejar eu tornaria a comer pra voltar a vomitar, por Deus, sim, sobre este tapete desgraçado.

Aos berros.

No prédio ao lado a mulher do bibliotecário e o visitante interromperam a conversa. Os dois pararam para escutar. Havia uma série de ondas familiares no ar. Uma série de ondas de raiva e frustração.

A mulher debruçou no batente para ver melhor. Queria rir mas não podia.

Quantos desta vez?, ela gritou para fora.

Um caralhão, um caralhão deles!

O visitante, agora sentado, tremeu levemente na cadeira.

Então levantou.

Da janela do refeitório, ambos, a mulher do bibliotecário e o visitante, assistiam a tudo sem dizer nada. Assistiam a tudo porém de maneira oposta. Ele, cheio de apreensão, como um afogado. Ela, valsando na borda das estrelas, embevecida.

O bibliotecário jogou o livro no chão. O delicado livro infantil. Jogou-o no chão e chutou o coitado para um canto da sala.

Em seguida abraçou a primeira pilha e num rompante de euforia e ódio atirou-a contra a parede mais próxima, produzindo um som comprido, abafado, profundo.

A parede estremeceu mas resistiu bem ao impacto. A sala adjacente não se desfez numa mixórdia de aço e pedra nem o escritório veio abaixo, ao som das trombetas do apocalipse, como ele esperava.

Isso o motivou a se jogar sobre a mesa, sobre as pilhas restantes, como um mergulhador, espalhando livros pelos quatro cantos da Terra, distribuindo sopapos míopes (os óculos haviam voado longe), aparentemente possuído por uma entidade ensandecida.

Não seria melhor a gente ir até lá? Parece que seu marido está encontrando certa dificuldade pra se manter imune a tudo o que vem acontecendo.

O Fred? Bobagem. Não conheço ninguém mais cuca fresca do que meu marido.

De qualquer maneira vamos até lá.

Se você faz tanta questão. Pega o meu casaco, sim?

O visitante pegou não apenas o casaco de couro preto, com grandes botões prateados, mas também a bengala de mogno envernizado, rubra, fina, esmerada e elegante, com empunhadura de bronze cuidadosamente trabalhado.

Estela, com a ajuda do acompanhante, vestiu o casaco, escondendo parcialmente o exagerado decote do vestido. Em seguida, apoiando-se na bengala, abriu com agilidade e vigor a porta do refeitório antes mesmo que o outro tivesse tempo de fazer isso.

Próximos capítulos

Nos próximos capítulos, Renata, filha de Estela e do bibliotecário, chega de São Paulo no meio da noite. Ela e o marido, Rodrigo, trazem notícias inquietantes sobre como o governo está reagindo à séria crise dos livros: muito mal. Enquanto isso novos e  misteriosos sinais vão sendo espalhados pela cidade.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho