Romance-Folhetim: Poeira: demônios e maldições (17)

Capítulo 17 do folhetim "Poeira: demônios e maldições", de Nelson de Oliveira
Ilustração: Tereza Yamashita
01/03/2008

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Passam por outro arco guardado por orangotangos e os narguilés, a cacofonia, as escalas e os vocalizes são deixados para trás.
Da galeria que circunda a abside, quase vazia, eles passam para uma sala menor, cujo piso foi decorado com uma ampla mandala circular representando os círculos do céu, do purgatório e do inferno. As paredes da sala também estão cobertas de tapeçarias, cada qual estampando uma mandala mais elaborada do que a outra.
Ele está aí dentro, o guia indica ao bibliotecário a porta fechada de uma capela que estranhamente não está sendo guardada por nenhum orangotango.
A porta pintada de azul não está trancada. Os dois entram na capela, sem bater, e quase tropeçam em duas mulheres de burca que passam por eles inclinadas, uma apoiada na outra, aos prantos.
Sobre os bancos de madeira as ondulações do teto abobadado apresentam linhas retas e curvas, pontos brancos e cinza, pequenos círculos e outras figuras geométricas mais complicadas que, apreciados a distância e em conjunto, formam o mapa das oitenta e oito constelações estabelecidas pela União Astronômica Internacional. Um mapa muito parecido com esse foi reproduzido no carpete que cobre as ondulações do piso, mas apenas com as doze constelações do zodíaco.
O lugar é silencioso.
O guia senta num dos bancos, cruza as pernas e sussurra para o bibliotecário, ele está aí, vamos, vá falar com ele.
Onde?
Logo aí, não tá vendo? Esta é sua sala de trabalho e essa é sua escrivaninha.
No centro do pequeno altar de fato há uma escrivaninha, uma cadeira e uma estante em estilo neoclássico, as três peças muito antigas, feitas de mogno. Mas não há ninguém trabalhando aí.
Isso é uma piada?
Vamos, Fred! A gente não tem o dia todo. Vá logo falar com ele.
O bibliotecário, bastante desconfiado, se aproxima do altar.
Espalhados no chão ele vê seis ou sete livros — aparentemente de alquimia, astrologia, metempsicose, teologia, quiromancia, ocultismo e outros temas afins — de diversos formatos, todos abertos em determinada página, revelando certas fórmulas mágicas anotadas em sânscrito e latim. Mais perto do altar, só então o bibliotecário nota que essas mesmas fórmulas herméticas, ou outras muito parecidas, estão espalhadas pelas paredes próximas, em pôsteres e gravuras manchadas e empoeiradas.
Dois grandes candelabros de chão, cada um com doze velas, iluminam o altar e a grande escrivaninha, sobre a qual além de um lenço de seda meio embolado, um caderno de capa dura, um tinteiro, uma pena de cisne selvagem descansando num porta-pena de prata, um mata-borrão e vários papeizinhos amontoados num canto, há também uma garrafa de vinho e uma taça pela metade.
O lenço subitamente escapa do tampo da escrivaninha e descreve um rápido arco parando no ar um metro acima do assento da cadeira. Então o tecido oscila grosseiramente, como se um fantasma impaciente estivesse assoando o nariz invisível, inchado e incômodo.
Por que será que eu não estou nem um pouco espantado com isso?, o bibliotecário pensa.
O lenço é devolvido ao seu lugar e agora é a taça que descreve o mesmo arco, depois o gole de vinho desaparece no ar, a garrafa é convocada para reabastecer a taça e tudo volta ao lugar de origem. Então é a pena que se desloca sobre o tampo, desce na tinta e voa até a página do caderno aberto, onde os primeiros decassílabos começam a dar forma a um poema.
O bibliotecário lança um olhar interrogativo — e agora, o que eu faço? — ao sujeito gordo, baixo, de bochechas salientes e barba ainda por fazer, que, sentado no banco do fundo, devolve o mesmo olhar interrogativo — vamos lá, Fred, você não pretende segurar a fila, pretende?
É verdade. A fila começa a se formar. Três consulentes chegaram há meio minuto e estão sentados no banco da frente, aguardando de cabeça baixa e as mãos no colo.
A sombra comprida da pena, que vai e vem frenética, se projeta na página preenchida quase até embaixo e oscila com as lufadas de ar nas velas.
Então o bibliotecário olha bem e enxerga.
Algo translúcido, tremeluzente, de puro ectoplasma.
Então o bibliotecário força mais ainda o olhar e enxerga.
Empunhando a pena, uma mão comprida e delicada, as unhas bem feitas, o pulso cabeludo escapando de uma manga com punho de renda.
A mão pára no meio de um verso e fica aí, contrariada e imóvel, como sempre acontece com a mão de todos os poetas em êxtase que são interrompidos pelo telefone, pela faxineira ou pela mulher.
A pena volta irritada ao suporte.
Então o bibliotecário força mais ainda o olhar e o fantasma, em respeito às leis materiais deste mundo material, finalmente ganha um corpo e um rosto.
Não é possível!, o bibliotecário dá um passo a frente e pára. O que é você?
Olhos pequenos e azuis atrás de um par de óculos também pequenos e azuis.
Testa ampla ornamentada com dois chifrinhos vermelhos.
Orelhas pontudas e petulantes.
Barbicha atrevida.
A criatura afasta a cadeira, levanta e vai até o candelabro da esquerda. Com cuidado, para não queimar a renda do punho, ela pega uma vela e acende a vela vizinha que a brisa apagou.
Escapando das calças, os cascos, agora bastante visíveis, denunciam o mesmo cuidado de manicure revelado pelas unhas.
Você é um fauno?!
Os olhinhos azuis encaram o bibliotecário. O nariz funga e a barbicha brilha à luz das velas. Sem dizer nada o poeta de camisa rendada e colete florido volta a sentar e a mergulhar no trabalho.
Como que por transmissão de pensamento o bibliotecário escuta no fundo da mente a resposta tão esperada.
O verdadeiro nome da figura atrás da escrivaninha não é Mal nem Mall.
É Mallarmé.
Esse nome fica ecoando, resvalando, ricochetando nas paredes polidas do crânio oco do bibliotecário.
Mallarmé.
Não. Esse nome não lhe diz nada.
O bibliotecário nunca ouviu falar nesse cara.

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Eu sou a lenda.
Sou o senhor da terra e do céu.
Sou o senhor do que há embaixo da terra e do que há para além do céu.
Sou o senhor do magma, do relâmpago, do trovão, das estrelas, da palavra, do pensamento.
Tudo o que eu fotografo existe primeiro em mim, só depois fora de mim.
Tudo o que eu roubo existe primeiro em mim, só depois fora de mim.
Tudo o que eu arremesso para o alto existe primeiro em mim, só depois fora de mim.
Tudo o que eu escondo no armário existe primeiro em mim, só depois fora de mim.
Tudo o que eu levo ao forno existe primeiro em mim, só depois fora de mim.
Tudo o que eu mais desprezo existe primeiro em mim, só depois fora de mim.
Ontem, hoje e amanhã não passam de diferentes manifestações do silêncio e do vazio eternos. Eu vivo exclusivamente no presente, pois sempre e eternamente é o dia de hoje, e o dia de ontem é hoje, e o dia de amanhã é hoje, e a eternidade é o estado das coisas neste exato momento.
O nascimento e a morte, o fogo e o oposto do fogo, a vida e o oposto da vida não passam de diferentes manifestações do silêncio e do vazio eternos. Eu sou imortal, sem início nem fim, pois sempre e eternamente é o momento presente, e meu nascimento já foi esquecido, e minha morte jamais será lembrada, e a eternidade é o estado das coisas que, por falta de memória, deram as costas ao nascimento e à morte.
O medo, a raiva e o amor não passam de diferentes manifestações do silêncio e do vazio eternos. Eu sou inteiro medo, raiva e amor, pois sempre e eternamente é o momento presente, e a manifestação do medo é agora, e a manifestação da raiva é agora, e a manifestação do amor é agora, e a eternidade é o estado das coisas que, mergulhadas na simultaneidade, sentem tudo ao mesmo tempo.
Todas as criaturas da Terra sou eu neste exato momento. Quando um golfinho salta pra fora da água, sou eu saltando pra fora da água. Quando alguém toca um piano, sou eu tocando esse piano. Quando alguém lê um romance, sou eu lendo esse romance. Quando um carvalho é derrubado por um raio, sou eu sendo derrubado por esse raio. Quando alguém se atira do alto de um edifício, sou eu me atirando do alto desse edifício. Quando um homem faz sexo com uma mulher, sou eu, o homem e a mulher, fazendo sexo comigo mesmo. Quando um antílope é alvejado por um caçador, sou eu, o antílope e o caçador, sendo alvejado e alvejando.
Eu sou o escritor, o revisor, o diagramador, o ilustrador, o impressor, o distribuidor, o livreiro, o leitor e o assunto de todos os livros já publicados. Tudo o que já aconteceu com alguém — comigo! — aconteceu pra virar palavra impressa, pra engrossar os livros. Tudo o que está acontecendo com alguém — comigo! — está acontecendo pra virar palavra impressa, pra engrossar os livros. Tudo o que ainda vai acontecer com alguém — comigo! — acontecerá pra virar palavra impressa, pra engrossar os livros.
Tudo o que existiu, existe e existirá ao mesmo tempo agora existiu, existe e existirá pra virar palavra impressa, pra engrossar os livros.
Incluindo os próprios livros.

71
Está ouvindo?
Não são fantasmas, não.
Os livros falam comigo.
É verdade. Não se trata de mais uma das insuportáveis e desgastadas metáforas que os poetas mais medíocres sempre espalhavam por aí.
Os livros realmente falam comigo.
Quando abro um dicionário eu ouço vozes. Quando abro um romance eu ouço vozes. Quando abro um manual eu ouço vozes.
Vozes imperativas que me dizem o que fazer.
Vá, veja e vença, as vozes diziam. Vá, veja e vença.
Por isso eu vim, vi e venci.
No início os livros não falavam. Há muito tempo, logo que surgiram, eles eram seres silenciosos, sem consciência, sem vontade própria.
De onde veio o primeiro livro falante?
Ninguém sabe com certeza.
Eu desconfio que foi do espaço profundo. De outro sistema solar. Talvez de outra galáxia.
De acordo com o que os próprios livros falam o primeiro livro falante foi encontrado na costa oeste da Sibéria, durante uma tempestade de neve.
Quem o encontrou?
O único sobrevivente da queda do dirigível Colombo, que pretendia sobrevoar o Pólo Norte mas, atingido pela tempestade, incendiou-se sobre a costa siberiana, explodiu e caiu.
De acordo com o que os próprios livros falam o primeiro livro falante foi encontrado numa caverna de gelo.
De onde ele veio?
Ninguém sabe com certeza.
Ele já devia estar lá fechado no gelo havia séculos quando finalmente foi descoberto.
O sobrevivente da queda do dirigível, logo que o encontrou, ouviu as vozes. Ele ouviu. Pela primeira vez. As vozes. O vento, a neblina e as paredes geladas e sussurrantes da caverna não conseguiram abafá-las.
Vá, veja e vença, as vozes disseram. Vá, veja e vença.
O sobrevivente da queda do dirigível folheou o livro mas não compreendeu o que estava escrito.
Não compreendeu as orações e os períodos articulados com palavras muito compridas, feitas mais de consoantes do que de vogais.
Que idioma era esse?
As vozes na sua cabeça não quiseram responder.
Vá, veja e vença, era tudo o que as vozes diziam. Vá, veja e vença.
Esse sobrevivente era eu.
Fui resgatado três semanas mais tarde. Passei sessenta anos estudando o primeiro livro. O primeiro livro falante. Aprendi a fazer papel e tinta. Aprendi a imprimir e a encadernar. O primeiro livro me ensinou a mágica da palavra falada.
Hoje todos os livros falam comigo.
Pelo menos todos os livros que eu ajudei a espalhar por este mundo bruto, ignorante, sujo, indolente, perverso, analfabeto.
Eu vim, vi e venci.
Hoje os livros falam.
Em português, inglês, francês. Em espanhol, alemão, dinamarquês. Em japonês, hindi, árabe. Em russo, chinês, javanês.

72
Meia-noite? Meio-dia? Que diferença faz, se o infinito estende-se em todas as direções e o fogo queima até mesmo o próprio fogo?
Estou pronto pra visitar o túmulo de meus ancestrais e derramar sobre seus ossos as cores alegres e soturnas de minha mais importante sinfonia.
Minha música mudou a temperatura e a iluminação dos subterrâneos. Mais eficiente do que a matemática das rochas é a matemática das partituras. Agora que as cidades da superfície foram conquistadas, minha música atravessará a atmosfera e mudará também a temperatura e a iluminação das constelações.
A acidez e a doçura de minhas escalas e de meus arabescos comovem até mesmo os livros mais azedos e intratáveis de minha biblioteca.
Todas as teclas sabem que estão mortas. Apesar disso não se deixam intimidar pelos malditos livros. Quando estou ao piano até mesmo as vozes mais antipáticas silenciam.
Meia-noite? Meio-dia? Que diferença faz, se a polifonia estende-se em todas as direções e o vácuo esvazia até mesmo o próprio vácuo?
Eu proponho o seguinte: criar outra língua, sem demora, agora, criar outra língua com esse punhado estúpido e limitado de notas e acordes, uma língua inteiramente nova, cuja sintaxe provoque calafrio e febre, uma língua verdadeiramente perigosa, cujas palavras, até mesmo as mais simples, ponham em risco a sanidade mental das crianças e dos anjos.
Imagine só: substantivos delicados como o cianureto, verbos generosos como as facas, preposições dissimuladas como as granadas.
Podemos chamar essa nova língua de esperança.
Que livro não gostará de falar a nova língua?

73
Estão excitados.
Estão meio descontrolados.
Estão eufóricos com a possibilidade de.
De quê?
Migrar.
Querem partir.
Querem espalhar sua semente por outros mundos.
Os livros.
A criatura inteligente que há nos livros.
Ela quer migrar.
Ela quer lançar seus tentáculos pra fora do planeta.
Já não consigo mais dormir com toda essa movimentação.
Estão excitados.
Estão meio descontrolados.
Estão eufóricos com a possibilidade de.
De quê?
Conquistar.
Querem partir.
Querem espalhar sua semente por outros mundos.
Os livros.
A criatura inteligente que há nos livros.
Ela quer conquistar outros sistemas solares.
Eu preparo meu próprio chá. Eu acendo as velas e passeio de roupão pelas galerias escuras. Meu violino é quem fala por mim. Eu não durmo há mais de doze anos. As aranhas fogem de mim. Os escorpiões não me toleram. Os vermes jamais apreciaram minha música. Eu passeio pelas catacumbas e volto exausto. Os livros estão em toda parte, espalhados, empilhados, encostados, tagarelando, rindo, resmungando. Aonde quer que eu vá — salão de baile, escritório, cozinha, estufa, masmorra — a voz dos livros me acompanha.
A fala monocórdia da criatura que há nos livros.
Essa fala é espalhada e contínua.
A rede é ampla e eficiente. Seus elos são de aço.
Um professor de latim carrega um dicionário que conversa, sem que o professor perceba, com a coletânea de poemas da estudante de literatura italiana.
A coletânea de poemas da estudante de literatura italiana conversa, sem que a estudante perceba, com todas as biografias da biblioteca da faculdade de Letras.
Todas as biografias da biblioteca da faculdade de Letras conversam, sem que ninguém perceba, com os outros livros da mesma biblioteca, que conversam com o romance francês que o jovem advogado lê no táxi que acaba de passar.
O romance francês que o jovem advogado lê no táxi que acaba de passar conversa, sem que o advogado perceba, com as enciclopédias da livraria recém-inaugurada perto de sua casa, que conversam, sem que ninguém perceba, com todos os livros de todos os apartamentos, de todos os escritórios, de todas as casas da redondeza.
A rede é ampla e eficiente. Seus elos são de aço.
A pequena criatura inteligente que existe em cada livro é a menor parte da gigantesca criatura inteligente formada pela soma de todos os livros.
Tudo o que a gigantesca criatura pensa as pequenas criaturas pensam.
Tudo o que as pequenas criaturas pensam a grande criatura pensa.
Cada pessoa na face da Terra é apenas o meio natural de transporte desses pensamentos. Cada pessoa na face da Terra é a operária — falo da abelha — que espalha esse tipo especial de pólen feito de chiados e sussurros.
Ninguém percebe a conspiração dos livros.
Só eu.
Por isso viverei pra sempre.

74
Poeira.
Poesia.
Foi assim que o universo começou.
Vai ser assim que o universo vai terminar.
Poeira.
Poesia.
Minha música e meus poemas encantam as meninas.
Eu tenho todas as mulheres que eu quero.
Negras, loiras, morenas, ruivas, amarelas. Não tenho do que reclamar. Eu tenho todas as mulheres que eu quero, na quantidade que eu quero, tenho sim, e elas jamais vão embora insatisfeitas, porque seu gozo é o meu gozo, seu corpo é o meu corpo.
Minha música e meus poemas encantam as meninas.
Eu tenho todas as mulheres que eu quero, porém estou sempre sozinho.
Estou sozinho, de olhos bem abertos, atento a tudo o que acontece na escuridão.
Estou sozinho e jamais aprendi a estar sozinho.
Estou sozinho e já li todos os livros, os do passado, os do presente, os do futuro.
Devagar o tempo transforma tudo em tempo.
O ódio transforma-se em tempo.
O amor transforma-se em tempo.
A solidão transforma-se em tempo.
Devagar o tempo transformará todos os livros em tempo.
Devagar. Muito devagar.
O tempo transformará a poeira em tempo.
Devagar. Muito devagar.
O tempo transformará a poesia em tempo.

75
O chão de minha biblioteca está escorregadio.
O chão de minha biblioteca está coberto de poeira da geometria euclidiana e de estilhaços da mecânica newtoniana.
Cálculos fraturados e equações borradas e números perdidos misturam-se com o cadáver das baratas e as teias de aranha.
Essa sujeira abstrata que se desprendeu das prateleiras só pode significar uma coisa.
Os livros estão conspirando.
Os livros estão conspirando mais uma vez.
Agora no plano da relatividade.

76
(O primeiro livro falante não quer mais falar comigo.)

77
(O último fauno já não é mais útil?)
Esse mesmo. Quero esse casaco (preto). Essa aí. Quero essa camisa (preta) e aquela calça (preta).
Estou de luto pelo meu próprio falecimento, que pode ocorrer a qualquer instante.
(Minha onipresença está perdendo a intensidade e a amplitude.)
Estamos todos ultrapassados, os homens, os símios, o último fauno?
(Começo a desconfiar de que não sou mais o sujeito de minha própria história.)
Ontem todos os tratados sobre a teoria especial da relatividade publicados sob minha supervisão, aqui e em toda parte, debateram acaloradamente sobre certos aspectos da velocidade da luz. Dessa vez (muito esquisito, muito estranho) não quiseram ouvir minha opinião sobre o assunto.
(Começo a desconfiar de que já não passo mais da simples marionete de outra vontade muito maior do que a minha.)
Que se passa ao meu redor?
O jogador lançou os dados. Até ontem eu tinha certeza de que eu era esse jogador e ao mesmo tempo os dados. Agora já não sei mais.
(Serei apenas os dados?)
Não é possível. Eu sou os dados, e só.
(Que mistério áspero e ritmado é esse?)
A grande ameba letrada, que é como eu chamo a superconsciência tentacular formada por todos os livros falantes (silêncio, por Deus, silêncio), essa grande ameba ilustrada, iluminada, iluminista (maldita criatura) planeja viajar pelo cosmo?
Tudo indica que sim.
(O fungo do conhecimento livresco quer se espalhar mais ainda.)
Todas as cartas celestes publicadas sob minha supervisão, aqui e em toda parte, concordam com esse plano.
(A situação é delicada, pra não dizer perigosa.)
A grande pergunta é: seremos levados com ela ou a grande ameba letrada irá sozinha?
(Esse fungo faminto está com pressa, o conhecimento sente-se compelido a lançar seus esporos o mais distante possível.)
Não confio mais nas cartas celestes, nos tratados sobre a teoria especial da relatividade, nos livros, nos malditos livros.
(Sinto o demônio da morte rondando a humanidade.)
Não confio mais. Não nos livros.
Tenho muito medo do que está pra acontecer.
(Os dados foram lançados.)
Essa nova forma de vida, que significa?
Extinção ou evolução?

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho