Romance-Folhetim: Poeira: demônios e maldições (16)

Capítulo 16 do folhetim "Poeira: demônios e maldições", de Nelson de Oliveira
Ilustração: Tereza Yamashita
01/02/2008

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A revolução dos livros

O homem ataca a natureza, ou negligencia seus anseios, e a natureza revida violentamente: furacão, tsunami, câncer de pele. É mais ou menos isso o que está acontecendo também com os livros. As pessoas negligenciaram seus anseios (ficaram paparicando somente a tevê, o cinema e a música popular) e agora eles estão atacando furiosamente.

Livros aos milhares. Livros aos milhões. Todos os dias. Todas as noites. Desde que a cidade começou a ser invadida pelos livros ninguém mais tem conseguido dormir. Ou comer. Ou falar. Estão todos hipnotizados.

Livros por toda parte. Em cima das mesas. Das cadeiras. Dos sofás. Estantes por toda parte. Na sala. No quarto. No banheiro.

Livros grandes e pequenos, volumosos e fininhos, de capa mole e de capa dura, com ilustrações e sem ilustrações.

No universo dos livros e nos livros do universo os mitos e os fatos históricos se completam e se confundem. Às vezes os livros mentem e enganam, às vezes a História se perde e se atrapalha. É por isso que no universo dos livros e nos livros do universo fica difícil afirmar com convicção o que é verdade e o que é lenda.

Diziam os historiadores — no tempo em que eles conseguiam falar, isso antes da invasão dos livros — que toda essa avalanche letrada vem de baixo. Do subterrâneo. Do inferno. Diziam eles — ou será que eram os místicos e os mágicos quem dizia isso? — que certas criaturas que nunca viram a luz do dia passam o tempo todo imprimindo e distribuindo livros.

Criaturas pequenas. Criaturas peludas. Criaturas apaixonadas por livros. Elas não gostam de assistir à tevê nem de passear no parque (no subterrâneo não há tevês nem parques). Elas gostam mesmo é de escrever, revisar, imprimir e distribuir livros.

Elas gostam mesmo é de espalhar romances, biografias, dicionários, enciclopédias, coletâneas de crônicas, poemas e ensaios pela nossa superfície abençoada pelo sol e pela lua.

Os livros são como as pessoas: alguns são altruístas, outros são egoístas, alguns são carinhosos, outros são agressivos, alguns são refinados, outros são grosseiros, alguns são generosos, outros são cruéis. Não importa de que assunto estejam tratando: em certos livros a gente pode confiar até mesmo a vida, em outros não se deve confiar jamais. Há livros que vieram ao mundo para tornar tudo mais rico e iluminado, mas há livros que vieram ao mundo para tornar tudo mais pobre e sombrio.

Os livros não são tão racionais quanto a gente supõe. Repito, eles são como as pessoas: às vezes são dominados por pavores ou impulsos irresistíveis. Amam e odeiam com igual intensidade.

Todo livro, seja ele simpático ou antipático, excitante ou maçante, só se realiza quando encontra seu leitor. Todo leitor, seja ele simpático ou antipático, excitante ou maçante, só se realiza quando encontra seu livro. Encontro existencial: o livro e seu leitor são dois espelhos posicionados um em frente ao outro, cujo reflexo mergulha no infinito. Ambos se completam, ambos se confundem.

Agora, com a invasão, as pessoas são tão dependentes dos livros quanto os livros são dependentes das pessoas.

Livros aos milhares. Livros aos milhões. Todos os dias. Todas as noites. Desde que a cidade começou a ser invadida pelos livros ninguém mais tem conseguido dormir. Ou comer. Ou falar. Estão todos possuídos.

Não há mais onde guardar tanto livro. A prefeitura está demolindo todos os prédios e todas as casas para a construção de novas bibliotecas. Logo a cidade será uma vasta biblioteca. Logo o país será uma imensa biblioteca. Depois o continente. Depois o planeta.

Foi isso. Livros. As pessoas negligenciaram seus anseios (ficaram paparicando somente a tevê, o cinema e a música popular) e agora eles estão atacando furiosamente.

O mais surpreendente é que vários de nós — traidores, judas! — estão curtindo muito essa fabulosa revolução.

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Dois meses mais tarde, um pouco antes do almoço, o bibliotecário escuta, sem realmente escutar, a bronca do anão de macacão azul que lhe mostra vários fotolitos danificados. Não é a primeira vez que isso acontece no seu turno. O bibliotecário pede desculpa pelo seu erro, promete prestar mais atenção da próxima vez, abaixa a cabeça e vai embora.

Algo o incomoda.

Algo não faz sentido.

O bibliotecário abre a torneira da pia que fica ao lado da impressora off-set, olha as próprias mãos sujas de tinta e fica espantado, bastante espantado, como se elas não lhe pertencessem.

Não lembro quase nada, ele comenta com seu assistente, o segundo na longa fila para lavar as mãos antes do almoço.

Aqui isso acontece com bastante freqüência, o rapaz responde de maneira impaciente, louco para resolver logo a questão da higiene pessoal e passar o mais rápido possível para a do bife acebolado acompanhado de arroz integral e salada de tomate.

Não, isso não acontece com bastante freqüência, não aconteceu com o Tigre nem com o Jonas, também não aconteceu com a Simone.

Vamos, Fred, durante o almoço a gente conversa sobre isso, a fila precisa andar.

O bibliotecário sai devagar da fila sem lavar as mãos, preocupado com a possibilidade de elas não serem realmente suas.

Preocupado com a real possibilidade de seus braços, seu corpo, sua mente não serem mais de fato seus.

Não lembro quase nada.

A multidão sobe a rampa aos empurrões, espremida, eufórica, orientada pelo cheiro perturbador que vem do refeitório.

Não lembro quase nada.

O bibliotecário empurra as fatias de cebola para o canto do prato de alumínio, corta tediosamente o bife ao meio, depois corta ao meio a metade esquerda do bife, depois corta ao meio a metade da metade esquerda do bife, e segue cortando ao meio cada pedaço de carne, à procura, talvez, do átomo, ou de algo mais ínfimo ainda: suas antigas lembranças.

Não lembro onde eu morava antes de vir pra cá.

Não lembro com quem eu vivia antes de vir pra cá.

Não lembro o que eu fazia antes de vir pra cá.

Isso acontece às vezes, meu caro. Você já está aqui há muito tempo. Mais cedo ou mais tarde todos esquecem. Posso ficar com metade do teu bife?

Espera aí, dela eu lembro, dela… Da minha estrela da sorte. De Estela.

O bibliotecário empurra o prato, apóia os cotovelos na mesa, junta as mãos e descansa o queixo nos dedos entrelaçados.

Seu assistente pega a metade direita do bife e corta um pequeno pedaço enquanto, de boca cheia, explica, já ouvi dizer que é a água, isso mesmo, esses malditos anões estão despejando algo na água, ninguém sabe direito o quê, parece que é uma substância que afeta o humor e a memória, algo pra deixar a gente mais dócil e conformado, algo pra aumentar a produtividade, nossa situação não é das melhores mas parece que ninguém mais acredita que há outro mundo além deste aqui, já reparou como ninguém mais fala em fugir?

Estela. O que terá acontecido com ela?

Não fica assim, Fred. Vamos, nada de baixo astral. Qualquer dia desses você vai esbarrar nela. Eu fiquei sabendo que na semana passada trouxeram pra cá outras seiscentas e sessenta e seis pobres almas. Talvez tua mulher esteja nesse grupo. Posso pegar também os tomates?

Lá se vão os tomates.

O refeitório está cheio e ruidoso, aí quase não dá para conversar.

A grande novidade são os orangotangos de bermuda, quepe e cacetete, que foram trazidos há poucos dias para ficar de olho nos prisioneiros. Seu cheiro é forte e enjoativo. Dois deles acabam de passar atrás do bibliotecário, mascando chiclete, bufando e dando cotoveladas.

Seiscentas e sessenta e seis novas almas.

Não, Estela não está nesse grupo.

Ela e o visitante estavam no grupo de prisioneiros que chegou dois dias depois do grupo do bibliotecário. Porém nunca se encontraram em parte alguma: nas rampas, nas escadas, nos becos, nos túneis, nos corredores, na cela, nunca.

Certa vez, ao ser escoltado para o trabalho junto com outros impressores, Frederico passou ao lado da enteada e do genro. Renata e Rodrigo empurravam na direção do estoque um pesado carrinho cheio de pacotes de livros. O bibliotecário olhou para os dois — mais para o rosto dela, mas também para sua barriga, que estava enorme —, olhou com sincera curiosidade, mas não os reconheceu nem foi por eles reconhecido.

E daí?

Reconhecendo-a ou não, ele mesmo assim teve pena da mulher grávida empurrando o carrinho.

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Acorda.

Ah, não…

Acorda. Vamos!

Que foi, pô?

Você quer conhecer o cara?

Quê?

Você quer conhecer o cara, o manda-chuva, o grande Mall?

Mall? Pensei que… Você quer dizer Mal, certo?

Não, camarada. Eu quero dizer Mall. Eu sei muito bem o que estou falando. Você quer conhecer o sujeito ou não?!

Não sei… Agora não. Eu só quero continuar dormindo.

Levanta. Vem comigo. Eu vou te apresentar a ele.

Ele está aqui?! Quando ele chegou?

Não importa quando ele chegou, não importa quando ele vai embora, só importa que ele está aqui. Se você quiser conhecer o cara tem que ser agora.

O bibliotecário passa as mãos no rosto, massageia a papada e coça a careca. A luz da cela ainda está apagada. A luz de todas as celas da ala oeste ainda está apagada. Só a fraca luz do corredor está acesa. Com ou sem sol, na rotina do mundo subterrâneo isso significa uma só coisa: é madrugada ainda.

Vamos, homem, a gente não tem a noite toda.

Com muita má-vontade o bibliotecário veste o uniforme por cima da cueca e da camiseta regata, pega os óculos, calça as alpargatas e segue — onde foi que eu já vi esse sujeito antes? — o sujeito gordo, baixo, de bochechas salientes e barba ainda por fazer. Ele o segue e logo se lembra. Esse é mesmo o sujeito que aparece em quase todos os seus sonhos fantasiado ora de palhaço ou de operário, ora de apóstolo de Cristo ou de regente de orquestra.

A porta da cela está destrancada.

Os dois saem sem fazer ruído, para não acordar os outros prisioneiros.

Os guardas desapareceram e todas as portas da ala oeste estão estranhamente destrancadas.

Eu estou sonhando, é isso?, o bibliotecário sabe que está sonhando, mesmo assim ele precisa da confirmação.

Nós já discutimos sobre isso, meu caro Fred. Em outros sonhos. Tá lembrado? Não vamos brigar novamente, ok? Você acredita que está sonhando comigo e eu acredito que estou sonhando com você. Vamos deixar as coisas assim: pra você só você é real e este é o teu sonho e eu não passo de uma miragem criada pela tua mente adormecida, pra mim só eu sou real e este é o meu sonho e você não passa de uma miragem criada pela minha mente adormecida. Pronto, partida empatada. Não vamos brigar novamente, ok? Pode ser?

O bibliotecário não diz nada. Ele nem sequer prestou atenção nesse discurso tolo de você é real, eu sou imaginário e vice-versa. Ele está mais interessado na qualidade plástica do cenário de alta definição pelo qual estão andando.

Caramba, estes sonhos estão ficando cada vez mais realistas.

Por aí não, colega, nós vamos de elevador, o sujeito aponta a cabine estacionada ao lado da escada, no vestíbulo de pedra do labirinto carcerário.

Descem.

Como ele é?, o bibliotecário pergunta tentando não parecer muito interessado.

Como ele é? Se você fizer essa pergunta a dez pessoas diferentes você vai receber dez respostas diferentes. É por isso que você precisa conhecer pessoalmente o cara. Tudo o que eu posso garantir é que você nunca mais vai esquecer esse encontro. Nunca mais.

Continuam descendo, seguidos pelo troar das impressoras que não param jamais.

Tudo bem. Você já conseguiu prender minha atenção. Agora pára de embromar. Como ele é?

Muito feio pra alguns, muito bonito pra outros.

Como assim? Feio ou bonito?

Gentil pra alguns, grosseiro pra outros.

Ah, pára com isso.

Imbecil pra alguns, genial pra outros. Velho pra alguns, jovem pra outros. Louco pra alguns, lúcido pra outros.

Já entendi, o cara é um camaleão, uma metamorfose ambulante.

Exatamente, meu velho. Dependendo das circunstâncias o grande Mall é o que você quiser que ele seja: libertino, virtuoso, egoísta, generoso, demônio, deus, macho, fêmea.

Macho ou fêmea? Não exagera.

Não tô exagerando, não. Eu mesmo vi, juro.

Continuam descendo, o rugido das impressoras agora reduzido, competindo em pé de igualdade com o murmúrio do rio subterrâneo que corre nas proximidades.

Então me diz, como ele é pra você?

O sujeito não diz nada.

O bibliotecário repete a pergunta com mais ênfase.

Apesar da luz muito rala na cabine o bibliotecário nota que os olhos do sujeito, antes secos e brincalhões, agora estão úmidos e quietos.

Ele salvou minha vida, o sujeito finalmente responde.

Entendo… Como aconteceu?

Não interessa como aconteceu. Simplesmente aconteceu. Pra mim isso já basta. Se eu não tivesse conhecido o cara eu já teria me matado há séculos. Pessoas como eu e você não agüentam a barra por muito tempo. Estou falando da porra da vida, entende? Do tédio, da burocracia, do absurdo… A gente não suporta viver. Cedo ou tarde… Você sabe. São caras como ele que dão sentido a tudo, são caras como ele que iluminam o caminho.

O elevador pára, a porta abre e os dois saem.

Estão no ponto mais fundo da caverna, muitos metros abaixo do último círculo de trabalho.

Andam por um corredor largo, atravessam um arco semicircular, guardado por dois orangotangos de armadura, e entram num átrio cheio de gente, de paredes cobertas por tapeçarias medievais, flâmulas renascentistas e quadros barrocos.

Assim que entram o bibliotecário é golpeado pelo forte cheiro de vinho e fumo, que o deixa atordoado. Essa atmosfera, reforçada pelo alarido e pelo vaivém dos bêbados e dos garçons, dá ao átrio o aspecto de uma taverna européia.

As pessoas no local, algumas de pé, outras sentadas em torno de grandes barris vazios transformados em mesa, usam roupas extravagantes, cheias de bolsos e bordados, e não falam muito bem o português.

Que lugar é este?, o bibliotecário pergunta, zonzo, enjoado, segurando o braço do acompanhante.

Calma, ainda não chegamos. Vamos em frente.

Passam por outro arco guardado por orangotangos e a atmosfera pesada é deixada para trás.

Pela primeira vez em todos os meses em que esteve preso nos subterrâneos o bibliotecário ouve um tipo de som muito diferente do choro dos prisioneiros, do grito dos anões e do trovejar das máquinas.

Música.

Um quarteto de cordas executando algo muito delicado. Talvez de Debussy. Talvez de Ravel.

O novo espaço onde estão é amplo e solene como a nave de uma catedral esculpida no calcário. Por ele, por seus pilares, suas arcadas e seus transeptos, circulam os acordes sinuosos do quarteto escondido mais adiante, atrás das cortinas azuis que, quando erguidas, revelam a área reservada aos cantores do coro.

Sentadas em bancos de madeira, tão petrificadas quanto as estátuas instaladas nos nichos laterais, as mesmas pessoas de roupas extravagantes e vocabulário estranho oram, devaneiam, apreciam a música, saboreiam o incenso e o místico teatro de sombras encenado pela luz das velas, passeiam por sensações antigas, cochilam.

Vamos, Fred, ainda não é aqui. Mas falta pouco.

Passam por outro arco guardado por orangotangos e o perfume de flores do campo, as sombras litúrgicas e a música santificada são deixados para trás.

Na sala semicircular que seria a abside, caso essa bizarra construção fosse realmente uma catedral gótica, há dezenas de divãs ocupados por senhores meio acordados meio adormecidos fumando haxixe, senhores muito gordos de turbante e túnica enfeitados com pérolas e pedras preciosas. Aí a música também está presente, mas de maneira mais agressiva e exótica: percussionistas desenfreados fazem um escarcéu dos diabos, acompanhados por um saxofonista mais alucinado ainda. Os acordes dissonantes abalam as colunas dóricas e as paredes decoradas com afrescos licenciosos e afrodisíacos muito parecidos com os de Pompéia.

O bibliotecário tem dificuldade para seguir seu guia no grupo apertado de mulheres quase sem roupa que, visivelmente drogadas, dançam languidamente no centro do salão. Muito alto, pouco antes do ponto em que a parede da caverna faz a curva para se transformar no teto, grandes vitrais com figuras mitológicas coam a luz satânica que vem de fora. Que luz é essa ninguém sabe. Na certa a luz de poderosos holofotes roubados de um estádio de futebol e trazidos para baixo por competentes chimpanzés eletricistas.

Passando pelo mesmo amontoado de dançarinas entorpecidas, vindo na direção contrária, um homem curvado, de cabeça baixa, arrasta pesadamente os pés no maltratado chão de mármore em busca da saída. Ele, muito cansado, as mãos enfiadas nos bolsos de um pesado sobretudo, sem erguer a cabeça desvia do guia do bibliotecário mas não do próprio bibliotecário. Os dois tropeçam um no outro. O homem olha para cima — as rugas, as pálpebras inferiores roxas e as escleróticas vermelhas indicam que ele esteve chorando —, desvia o olhar, pede desculpa e se prepara para continuar a caminhada. Frederico reconhece o sujeito e é atravessado por um choque elétrico.

Você?

Pedro Penna, técnico de estoques, primeiro-imediato do doutor Oréstes Fontela.

É você mesmo?!

O visitante não diz nada.

O bibliotecário insiste, há quanto tempo está aqui? Você viu Estela?

O visitante olha para ele, depois olha de lado, resmunga qualquer coisa, tira as mãos dos bolsos, Estela?

Sim, Estela, Estela, Estela!

Estela… É… É, eu lembro dela, ele passa a mão na barba ruiva comprida, suja e emaranhada. Então seus olhos brilham.

O bibliotecário segura seus braços com firmeza, fala, caralho, o que aconteceu com a minha mulher?

Ele retribui o gesto segurando os braços do bibliotecário com mais força ainda, Fred, eu o conheci, sim, eu o conheci, Fred.

Três cantoras negras e carecas sobem no altar onde a banda está instalada. Com a entrada das cantoras, o saxofonista e os percussionistas finalizam uma série de exuberantes variações a partir de um tema indiano iniciando abruptamente uma animada balada do folclore búlgaro.

Fica difícil conversar com todo esse fuzuê.

Eu o conheci, Fred, eu o conheci.

O bibliotecário não diz nada. Ele sabe de quem o visitante — os olhos novamente úmidos e a voz comovida — está falando. Ele sabe que Estela, a temperamental Estela, não faz mais parte de suas atuais preocupações.

Como ele é?, o bibliotecário grita tentando vencer o dó sustenido das cantoras.

O visitante ergue as mãos, seu rosto fica tenso, ele quer muito encontrar as palavras certas, ele precisa encontrar as palavras certas, suas mãos nervosas dançam ao ritmo da balada búlgara, não, não há como descrever o que ele viu, o que ele sentiu, quem ele encontrou.

Fala, porra, como ele é?

O visitante soluça e engasga, embaixo do sobretudo seu corpo esquálido treme e transpira, sua barba está melada de lágrimas e do caldo que escorre do nariz, as convulsões não dão folga, então a palavra vem, uma única palavra, a palavra certeira: perfeito.

O quê?

Perfeito, Fred. Ele é simplesmente perfeito.

O guia gordo, baixo, de bochechas salientes e barba ainda por fazer volta através da multidão e agarra o braço de seu acompanhante, resgatando o bibliotecário das mãos do visitante abobalhado, que fica para trás balbuciando, perfeito, Fred, ele é simplesmente perfeito.

Passam ao lado do altar e o bibliotecário ainda olha para trás pela última vez, para esse vulto encurvado, as lágrimas transbordando, o rosto exausto de tanto chorar. Se o amálgama de vozes, gritos e música não encobrisse a fala amarrotada do visitante o bibliotecário teria escutado outra palavra definidora e definitiva: maravilhoso.

Adeus, Fred. Você logo vai entender o que estou querendo dizer. Maravilhoso. Ele é simplesmente maravilhoso.

As cantoras carecas agora brincam entre si, atirando notas graves e agudas umas contra as outras, acompanhadas pela marimba, pelo xilofone e pelo atabaque.

Vamos, Fred, ainda não é aqui. Mas falta pouco.

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Tudo o que eu vejo existe.

Tudo o que eu escuto existe.

Tudo o que eu toco existe.

Tudo o que eu cheiro existe.

Tudo o que eu como existe.

Tudo em que eu penso existe.

Tudo o que brilha, ecoa, quebra, fede, derrete, escorre, ajoelha, viaja, brinca, tropeça, explode, baba, chora, escurece, sorri existe.

Tudo o que persevera e persiste nos cemitérios, nas bibliotecas, nas florestas, nos hospitais, nos motéis, nas repartições públicas, nas avenidas existe.

Tudo o que corrompe as estrelas, tudo o que comove os centauros, tudo o que irrita os economistas, tudo o que enlouquece os juízes, tudo o que abala os neurônios, tudo o que apaga os sonhos existe.

E tudo o que existe existe para virar palavra impressa, para engrossar os livros.

Incluindo os próprios livros.

Últimos capítulos

Chegando ao ponto mais profundo da cidadela subterrânea e de sua jornada em busca de respostas, o bibliotecário finalmente fica cara a cara com Mall, o Implacável. Sua surpresa é grande. Perplexo, Fred logo percebe que a natureza dessa criatura é bem diversa e mais poderosa do que ele podia imaginar.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho