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Que foi que disse?
Grande merda.
Grande merda, não senhora. Existe certa lógica na forma como são nomeadas as estrelas. Esta aqui se chama Alpha simplesmente porque é a estrela mais brilhante da sua constelação, a constelação do Centauro. Compreende? São procedimentos como esse que dão sentido à nossa existência, tornando-a menos caótica. Isso sim é que é de um lirismo absoluto.
Eu acho isso ultrajante.
Ele, por sua vez, começou a ler de maneira indiscriminada trechos de um texto destacado num grande boxe, apenas para não dar tempo a Estela, apenas para não deixá-la falar.
Tá aqui, veja só. Bayer. O nome do sujeito. Dê só uma olhada. Um astrônomo alemão. Por que você não pára pra ler um pouco, hein? Olha só: Bayer. Um alemão chamado Johann Bayer.
Mas do que é que você está falando, santo Cristo?
Enquanto lia o visitante ia tentando desesperadamente concatenar as frases e formar com elas um discurso que apresentasse um mínimo de coerência.
Alpha Centauri. A tua Ora, Direis, Ouvir Estrelas? se chama na verdade Alpha Centauri. Veja só, tá aqui. Ouve. Vou ler pra você.
Dá um tempo, ok? Não quero que você leia pra mim.
Presta atenção. Boa parte das estrelas visíveis a olho nu recebeu seu nome na antiguidade.
Pode ir parando por aí, está bem?
Vou pular alguns trechos. Vamos ver… Aqui. Ouve isso: portanto, as estrelas em geral receberam seu nome, na antiguidade, vamos ver, isso, na antiguidade, não pelas suas características puramente astronômicas, tais como magnitude, massa ou espectro, vamos ver, massa ou espectro, mas, sim, por sua aparência no céu e pela sua posição no desenho de determinada constelação, sim, é isso, de acordo com o imaginário da época.
Espectro do quê? Você lê muito mal. As palavras saem todas emboladas.
Tudo bem. Alguns exemplos. Ouve só.
O visitante limpou a garganta e melhorou a voz. Os exemplos vieram em seguida:
A estrela mais brilhante no céu é Sirius. Vamos ver. Sirius. Esse nome originou-se da palavra grega que significa resplandecente, fulgurante, ardente. Sirius. Um nome bastante apropriado pra uma estrela tão brilhante, não acha?
…
Há duas estrelas, vamos ver, duas estrelas brilhantes e de aparência bem semelhante que, por impressionar o observador como se fossem estrelas gêmeas, deram origem à constelação de Gêmeos. Na antiga mitologia grega. Vamos ver. Gêmeos. Aqui está. Na antiga mitologia grega havia dois gêmeos famosos, Castor e Pólux. Sendo assim, esses foram os nomes dados a elas. De fato. Esses foram os nomes dados às estrelas.
…
Uma estrela brilhante na constelação do Leão é Regulus, que em latim quer dizer pequeno rei. Compreende? Pequeno rei. Leão, o rei dos animais.
Olha, sei o que você tá tentando fazer. Sei mesmo. Olha, sinceramente, agradeço pelo esforço.
Espera. Ouve isso. Surpreendentemente só uma pequena parcela das estrelas possui um nome proveniente dos antigos gregos e romanos. Uma parcela muito pequena. Exato. Grande parte delas tem seu nome derivado de outras línguas. A maioria das estrelas possui um nome árabe. Ouviu só?
Essa não. Só me faltavam mesmo os árabes!
Olha só. Há duas estrelas bem próximas uma da outra na Ursa Maior. Sabe, a Ursa Maior, a constelação? Pois bem, uma das estrelas é bem mais pálida do que a outra. Essa, a mais pálida, vamos ver. Sim, aqui está. Pois bem, essa foi chamada justamente de Alcor, a mais pálida, e a outra, cujo brilho ofusca a sua vizinha, é Mizar, o véu.
…
Muitos nomes árabes apenas assinalam a posição que a estrela ocupa dentro da figura imaginária sugerida pela constelação. Veja só isso. A constelação da Lira. Quero dizer, a constelação que nós conhecemos como sendo a constelação da Lira. Sim, porque esse mesmo apanhado de estrelas era visto pelos árabes não como uma lira, mas, sim, como a figura de um abutre descendo em direção à Terra. Pois bem, uma das estrelas dessa constelação se chama Vega, que em árabe significa queda, descida.
…
Uma estrela na extremidade da constelação do Cisne, por exemplo, é Deneb, palavra árabe que significa cauda. Vamos ver. Ah, sim, olha aqui. Uma estrela brilhante na constelação da Águia, da mesma maneira, foi chamada de Altair, que em árabe significa simplesmente a estrela. Na extremidade sul das linhas que formam a constelação do Rio está Achernar, que em árabe quer dizer nada mais nada menos do que final do rio. No centro da constelação de Orion…
Chega. Não me venha com essa balela, por favor.
Isso não é balela. Veja só. Das seis mil estrelas que podem ser observadas no céu à vista desarmada, exatamente, dessas seis mil somente poucas centenas tinham um nome nessa época. Isso não é impressionante? Trezentas, quatrocentas estrelas. Na sua maioria, nomes árabes.
Novamente os árabes.
Então Bayer apareceu. Johann Bayer. Astrônomo. Ele foi a primeira pessoa a tentar a utilização de um sistema mais lógico, menos arbitrário, de nomear as estrelas. Isso em 1603.
A Terra já existia em 1603?
O que ele fez foi, em cada constelação já existente, nomear as estrelas de acordo com o brilho de cada uma. Só isso. Dessa maneira as estrelas levariam em ordem decrescente os prefixos alpha, beta, gamma, delta e assim por diante. Simples e coerente. Por exemplo, segundo esse sistema, a estrela mais brilhante da constelação de Orion seria a Alpha Orionis, a segunda mais brilhante, a Beta Orionis, a terceira, a Gamma Orionis. Mesmo tendo aqui um mistura de grego e latim, faz sentido, não faz?
Eu continuo achando tudo isso ultrajante. Muito antes desse seu estimado senhor Bayer batizar a minha estrela de Alpha Qualquer Coisa, fazendo uso de seu sistema próprio de nomes, um índio andarilho, provavelmente ao olhar para o céu noturno após uma caçada, já teria notado a existência dessa mesma estrela. É, já teria notado e nomeado essa mesma estrela de acordo com suas próprias crenças, não é mesmo? Nenhum índio, há mil anos, teria ouvido falar desse tal de Bayer, teria? Não, certamente não. E antes dele, é, e até mesmo antes do nosso índio, há pelo menos um milhão de anos algum animal pré-histórico qualquer, meio-homem, meio-macaco, numa planície africana qualquer, já a teria notado, da mesma forma que o índio, e nomeado essa mesma estrela, da mesma forma que o índio, com uma palavra absurda qualquer na sua língua materna, não? Então por que você acha que esse seu senhor Bayer deve ser mais importante do que o índio? Por que os nomes criados pelo seu venerado senhor Bayer teriam que fazer mais sentido do que os nomes caiapós, ou ianomâmis, ou fenícios, ou paleozóicos?
O visitante, enquanto escutava, alisava a sobrancelha direita.
No seu rosto, perplexidade.
Sim, perplexidade.
59
Sem os óculos o cenário e as pessoas não são mais do que borrões promíscuos, fogos-fátuos penetrando-se continuamente. Quem disse que sempre há fronteiras muito bem definidas entre os objetos? Os rostos, as grades, as reentrâncias e as manchas da rocha entram uns nos outros, se confundindo, sugerindo criaturas sem contornos, feitas apenas de vapor e cor.
O bibliotecário não se conforma.
O que será dele sem os óculos? Outra vítima indefesa da miopia que segue devorando e empalidecendo todas as coisas?
Desde que foi seqüestrado, pela primeira vez ele está torcendo pelo estado de sítio e pelos homens de farda.
Frederico sabe muito bem que somente o exército conseguirá chegar onde estão os prisioneiros.
O exército e seus carros blindados. O exército e seu armamento pesado. O exército e suas táticas de guerra.
Agora o bibliotecário está realmente furioso. Agora ele quer as granadas, as bazucas e as metralhadoras. Vingança. Ele quer vingança. Agora o bibliotecário quer os óculos.
Ao seu lado a mulher de vestido vermelho avisa, tá caindo.
Quê?
Apesar da proximidade Fred mal consegue enxergar os detalhes do rosto da mulher.
Ela repete, tá caindo.
O quê?
Do seu bolso, os óculos.
Ele instantaneamente leva a mão ao bolso da calça, ao bolso de trás.
E sente o aço fino de uma haste roçando o tecido, depois seus dedos percebem a curvatura delicada de um aro e a superfície fria do acrílico de uma lente.
Seus óculos estão aí, pendurados.
60
Perplexidade.
A mais pura e genuína perplexidade.
A constante manifestação do abismo psicológico que desde o início dos tempos separa homens e mulheres em todo o mundo, essa manifestação sempre provocava no visitante um insuportável sentimento de abandono. Sempre.
Mulheres!
Jamais se deixam envolver pela beleza concreta das coisas, jamais.
Vivem perdidas num mundo de idéias excessivamente kitsch, num mundo infantil e romântico, exatamente, romântico, no pior sentido da palavra.
Se deixam levar por qualquer brisa que traga, vez ou outra, o odor velho e chocho das crenças mais obscuras e hipócritas.
Nenhuma mulher teria descoberto o bacilo que causa a tuberculose, ou a América, ou as luas de Urano.
Nenhuma comporá outra Odisséia, outra Divina comédia.
Um novo Prelúdio para o entardecer de um fauno, uma nova Guernica, por uma mulher? Jamais.
O visitante pensou em revidar.
Sim, em revidar, em dizer poucas e boas a Estela, em fazer a terra tremer, em não deixar pedra sobre pedra.
Porém não lhe ocorria nada de muito inteligente pra dizer.
Nada, absolutamente nada. Estava vazio de toda mordacidade e sarcasmo.
Foi Estela quem de repente quebrou o silêncio.
Você fala o tempo todo dessa e daquela constelação. Fala como se falasse de um segredo muito antigo, conhecido apenas por alguns eleitos. Declama esse Atlas como se fosse o mais sagrado dos livros. Bobagem! Criar as próprias constelações é um exercício mágico, transcendente, muito mais enriquecedor do que o esforço de tentar memorizar as constelações criadas por gente que já morreu há quinhentos, mil, dez mil anos.
Exercício mágico. Essa expressão grudou nos ouvidos do visitante, ferindo profundamente os tímpanos.
Exercício mágico. Transcendente.
Quá!
Tais palavras costumavam remetê-lo a temas que, pra ele, por mais que tentasse encará-los com certa tolerância, eram de insuportável mau gosto.
Coisas do tipo: ocultismo, esoterismo, reencarnação, alquimia, astrologia.
Exercício mágico. Haja paciência!
No entanto, preocupado em não deixar a peteca cair — ofender Estela criaria muitos obstáculos entre os dois e a cama —, o visitante preferiu não expor as considerações sarcásticas que se formavam na sua cabeça, contentando-se tão-só com um inexpressivo:
Não tenho tanta certeza disso.
É claro que não. Você nunca tentou. Se tivesse tentado uma só vez você saberia que unir estrelas apenas com os olhos é como tentar unir os pontos de um desenho — um objeto, um animal, uma paisagem — que nem sequer existe ainda, mas já foi previamente definido. Como quando éramos crianças, na escola.
Não creio que isso seja lá muito prático.
Pelo amor de Deus, não venha me falar em praticidade, tá bem?
Estela segurou uma das pontas do Atlas e, como uma completa ignorante em música que tentasse, sem nenhuma ajuda, ler uma partitura, vasculhou com certa ansiedade um canto pré-estabelecido do hemisfério austral.
Vasculhou esse canto mantendo um olho na página e o outro num determinado quadrante do céu.
Seu dedo indicador ia e vinha na superfície impressa.
Mapa. Céu. Mapa. Céu. Mapa. Céu. Até que:
Veja só isso: De Vento Em Popa.
Quê?
Um das minhas constelações prediletas: De Vento Em Popa.
O visitante não conseguiu enxergar com muita facilidade as estrelas a que Estela estava se referindo. Foi preciso uns bons segundos pra que ele pudesse distinguir as oito estrelas que em tese formariam a nova constelação.
Espera um pouco. Esse ponto aqui não é uma estrela, é Marte.
Como assim?
Marte, o planeta. Você colocou um planeta na sua constelação.
Estela, pela primeira vez nessa noite, chegou mais perto, mostrando-se mais interessada no Atlas.
Pra dizer a verdade, ela gaguejou, nunca me dei conta disso.
Sei que é muito bonito, romântico até, mas você não acha um contra-senso incluir um planeta numa constelação?
Talvez. Não sei. Talvez não. Não sei. Ora, às favas com tudo isso. Não, não é um contra-senso, não! Por que deveria ser um contra-senso?
Simplesmente porque são coisas muito, muito particulares. As constelações são fixas. As estrelas que as compõem não se movem. Já Marte a cada dia está num ponto diferente. Afinal, é um planeta.
Isso tudo não tem a menor importância.
Como não?
Creio que é fundamental, pra uma constelação cujo nome é De Vento Em Popa, que uma de suas extremidades se afaste dela noite após noite, não acha?
Não, não acho.
Estela parecia agora muito mais interessada nos mapas e diagramas do Atlas.
Estou me lixando para o que você acha ou deixa de achar, ela disse, ainda atenta a determinados grupos de estrelas, agora no hemisfério boreal.
Essas estrelas também têm nome.
Estela apontava para o mapa mas olhava o céu, cotejando um com o outro.
Não quero mais saber dos seus delírios, o visitante resmungou.
Cobra Norato, Lagarto Luminoso, Bola Murcha, Ovelha Negra e Macacos Me Mordam.
Quê?!?
Co-bra-no-ra-to-la-gar-to-lu-mi-no-so-bo-la-mur-cha-o-ve-lha-ne-gra-ma-ca-cos-me-mor-dam. Se você traçar uma linha imaginária unindo essas cinco estrelas você terá alguma coisa parecida com o desenho de um tênis visto de perfil. Por isso eu chamo essa constelação de All Star.
Não. Não. Isso é absurdo. Você está fazendo uma confusão danada na sua e na minha cabeça. Veja, essa sua constelação é formada por um grupo de estrelas em forma de S. Veja, como o corpo de um escorpião.
E daí?
E daí que ela se chama Escorpião. Veja, está bem aqui. Escorpião. Compreende? Veja lá, uma das extremidades do S até parece formar uma curva penetrante. Vê? Igual à cauda de um escorpião.
Não me parece com a cauda de um escorpião.
Como não? E na outra extremidade há duas curvas, não vê? Como se fossem garras. As garras de um escorpião. Compreende? Escorpião.
Absurdo.
Absurda é essa sua intransigência. Por que é tão difícil aceitar algo que tem as raízes fincadas na tradição? Não tente mudar algo que é aceito no mundo todo. Por que você não faz um esforço pra tentar compreender isso? Seria muito mais instigante.
Escorpião? Tenha dó. Acho essa maneira de ver uma grande tolice.
Chega! Você está é me fazendo de palhaço. Só agora estou percebendo. Não há, nunca houve nenhuma De Vento Em Popa, nenhuma All Star. Ridículo! Você tá é tirando onda com a minha cara, não é mesmo?
Vá à merda, tá bem?!
Olha, não me entenda mal. Eu compreendo e, pra dizer a verdade, acho até muito bonito isso que você está tentando dizer. Ordenar o céu como se fosse nosso, como se não houvesse mais nada de importante na vida. Manipulá-lo, como manipulávamos os vidrinhos de guache no pré-primário, sem nenhuma finalidade prática. Mas isso é muito fácil! Os antigos estudavam o céu principalmente por razões agrárias. Pra prever a chegada das estações chuvosas, das estações quentes, do tempo de caça farta, do tempo de escassez, da época das árvores carregadas de frutos, da época em que não havia fruto algum. Percebe? Há um forte sentido nisso tudo. As estações se repetem regularmente. Pra essa gente era uma questão de vida ou morte saber qual era a melhor época de plantar ou colher. Compreende o que estou tentando dizer? Ao ignorar propositalmente toda essa tradição, você, sem saber, é óbvio, está sendo muito leviana. O seu modo de ver as coisas é, sinto muito, terrivelmente ingênuo e irresponsável.
Estela tirou abruptamente das mãos do visitante o Atlas, fechou-o com cuidado, admirou o verniz e o relevo do título, alisou sua capa acetinada e, sem pestanejar, arremessou o livro por cima da grade de aço, para dentro do vazio.
Chega de árabes, gritou ela, enquanto as folhas do livro farfalhavam, sugadas pelo vento e pela escuridão.
O visitante não acreditou no que seus olhos presenciavam.
Não mesmo.
Você está completamente louca, gritou ele, agarrando as mãos dela, agora infelizmente vazias.
Louca.
Um fio inconsistente de voz. Louca.
Transtornado, a pulsação a mil, ele deu alguns passos na direção contrária à do vazio. Tropeçou na maleta, recuperou o equilíbrio. Louca.
Se afastou do telescópio. Precisava respirar.
Inflou os pulmões com muita lentidão.
Em seguida foi soltando o ar com naturalidade, sem nenhuma pressa.
Sentiu vibrar dentro de si uma corda cuja existência desconhecia. Uma corda amarga.
Mas o som produzido por esta vibração, uma nota aguda, não o alarmou. Era um som ancestral, reconfortante, como uma voz familiar que dissesse, não tenha medo, siga o barbante solto no chão, a saída do labirinto está esperando você logo aí na frente.
Inflou novamente os pulmões.
Depois foi soltando o ar, de novo sem nenhuma pressa.
Inflou. Soltou. Inspirou. Expirou.
Estava recomposto.
61
O grupo encontra no fundo da cela um velho meio corcunda, de nariz vermelho e sobrancelhas coladas, usando um boné muito esfolado. Esse velho, como o amontoado de prisioneiros logo fica sabendo, não veio para o subterrâneo recentemente. Ele já está aí há muito tempo. Ele não pertence a essas rochas e ao vaivém abafado que levanta poeira nos corredores, ao vaivém de sombras e luz. Não, ele não pertence a esse mundo. Mas já está aí há muito tempo.
Fala, homem, fala, as pessoas pressionam o velho querendo saber que lugar é esse, por que foram raptadas, o que vai acontecer agora.
Por preguiça, cansaço e desânimo, o bibliotecário fica assistindo à cena de longe, sem se envolver no interrogatório.
As sobrancelhas do velho estão molhadas de suor. Ele gagueja. Ele passa as costas da mão encardida nos olhos. Ele continua gaguejando, não, como, argh, é, não, mas, ai, é que. Quanto mais ele titubeia mais o grupo pressiona, quanto mais o grupo pressiona mais ele titubeia. Que lugar é esse? Por que estamos aqui? O que vai acontecer agora?
O velho sente uma grande vertigem e cai sentado no fundo da cela. Os pulmões estão cheios de pó, para respirar está cada vez mais difícil. O medo, o susto, o horror dessas pessoas que o cercam, dessas pessoas que o pressionam, dessas pessoas que o ameaçam é muito grande. O boné escorrega, a cabeça também parece que vai escorregar do pescoço, essa cabeça estressada, o velho perde os sentidos e pára de gaguejar.
Vamos, gente, ele está passando mal. Afastem-se. Deixem o sujeito respirar.
O grupo se afasta a contragosto. As únicas que ficam com o velho são duas enfermeiras gordas e exaustas, de aspecto tão maltrapilho quanto o de seu mais novo e inusitado paciente.
O bibliotecário limpa pela vigésima vez as lentes dos óculos torturados, dá as costas às enfermeiras e ao seu paciente e apóia o corpanzil na grade branca, o olhar perdido no piso de basalto do corredor bem iluminado. O vento que passa por esse corredor é delicado e refrescante. Como os habitantes do lugar conseguem a energia elétrica, aí está outra boa pergunta.
É, de onde vem a eletricidade?, o bibliotecário pergunta a si mesmo.
Das outras celas chegam resmungos e gritos de protesto semelhantes aos do grupo que cercou o velho. Tudo indica que em cada cela há um ou mais habitantes dos subterrâneos, totalmente cercados pelo desespero e pela agressividade dos novos prisioneiros. Que lugar é esse? Por que estamos aqui? O que vai acontecer agora?
Mas com o passar dos longos minutos até essa reação involuntária começa a enfraquecer. Diante da gagueira e do mal-estar dos interrogados — gente seqüestrada, como eles, mas há bastante tempo — o interrogatório perde o vigor, a truculência se esvazia. Afinal parece que não há respostas.
As enfermeiras e outros prisioneiros agora estão sentados no chão, encostados uns nos outros, cochilando. Ninguém sabe se é dia ou noite. Não importa. Poucos continuam de olhos bem abertos.
O bibliotecário é um deles.
Próximos capítulos
Estela e o visitante são capturados pelos chimpanzés, junto com todas as pessoas que estão no terraço da Biblioteca Mário de Andrade. A guerra entre os dois mundos tem início: o povo do subterrâneo começa a invadir as cidades da superfície, que praticamente não opõem resistência. Na prisão o bibliotecário fica conhecendo em detalhes a organização dessa sociedade subterrânea, dividida em castas. Estarrecido, Frederico ouve de outros prisioneiros histórias sobre o líder dos invasores, cujo nome — Mal, o Grande — costuma despertar inquietação e medo.