Romance-Folhetim: Poeira: demônios e maldições (13)

Capítulo 13 do folhetim "Poeira: demônios e maldições", de Nelson de Oliveira
Ilkustração: Tereza Yamashita
01/11/2007

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O visitante se afastou um pouco para Estela poder sair sem que a sua bengala esbarrasse nas pernas dele.

Atravessaram um corredor muito pequeno e estreito em cuja extremidade brilhava uma porta de vidro parcialmente fechada.

Empurraram a porta com cuidado. As dobradiças rangeram.

Assim que saíram do corredor e se puseram bem no centro do enorme terraço uma brisa deliciosa se infiltrou na roupa dos dois, no seu cabelo, reanimando-os.

Vários grupos de visitantes estavam distribuídos uniformemente por todo o pátio.

Algumas crianças corriam de um lado para o outro, improvisando brincadeiras a fim de passar o tempo. Aparentemente não estavam nem um pouco interessadas no bate-papo que seus pais entabulavam próximo à amurada de concreto.

Preferiam ziguezaguear e determinar regras para os novos jogos que iam surgindo aos gritinhos, pois aí em cima não havia fronteiras, havia tão-só um vastíssimo espaço branco e arejado.

No corre-corre uma menininha de uns três anos topou de frente com Estela, por pouco não passando por entre as pernas dela, enquanto fugia da turma toda que, ao que tudo indicava, queria a qualquer custo pegá-la para cristo.

A menininha ria e gritava mais do que as outras crianças.

Ela parece ser uma criança muito feliz, pensou Estela, por um instante.

No instante seguinte as crianças já não estavam mais aí.

Haviam dobrado a esquina e entrado no corredor de acesso aos elevadores, por pouco não se lançando de encontro à porta de vidro meio fechada e totalmente invisível à noite.

Estela se aproximou da mureta de concreto e debruçou na borda, ficando com o rosto colado na tela de proteção.

O visitante veio atrás.

Ah, que belíssima malha de sóis estendia-se sob seus olhos, como um oceano pontilhado de minúsculas embarcações, todas cheias de luz e cor, largadas ao deus-dará!

Um vasto campo minado, empolgante, explodia a centenas de metros dos pés de ambos. A cidade fervilhava.

Estela fechou os olhos e deixou que a brisa da noite acariciasse seu rosto.

É de perder o fôlego, o visitante murmurou.

Se é…

A noite estava tão transparente que no local onde devia estar o horizonte, no ponto exato em que o céu e a terra deviam estar se tocando, via-se apenas um fio finíssimo, quase imperceptível.

Não havia céu, não havia terra.

Havia somente esse fio separando duas faces da mesma alucinante escuridão.

Escuridão essa salpicada de estrelas e edifícios.

Mas onde estavam as estrelas? Onde, os edifícios?

Em toda parte, aqui e ali, certamente misturados.

Definitivamente em toda parte.

Separados entre si por um intervalo de três metros, prostrados, apontando para o piso de concreto, nos quatro lados do terraço dezenas de telescópios aguardavam a chegada de novos visitantes.

Tirando o porta-níqueis de dentro da bolsa, Estela procurou uma moeda de cinqüenta centavos. Assim que encontrou, introduziu-a no interstício de uma caixinha que havia em cima do tubo de metal.

Imediatamente o olho do telescópio se acendeu.

Venha ver. Que vista belíssima!

O visitante se aproximou.

Gosto de vir aqui em cima, de olhar a cidade lá embaixo. As pessoas, os prédios, sim, daqui tudo fica tão insignificante, tão pueril.

Estela moveu vagarosamente a objetiva fazendo com que os pequenos pontos de luz, antes estáticos e um pouco desfocados, se transformassem numa série de riscos em movimento, uma trilha luminosa de diferentes cores.

Concordo com você, o visitante respondeu debruçado no parapeito, indiferente ao telescópio.

Excitava-o a alteração na dinâmica dos seus próprios pensamentos provocada por essa paisagem impressionista. Tudo aí fazia parte de um presente absoluto, imutável, não havendo nada que pudesse ser vinculado às cinzas do passado ou à névoa do futuro.

Qualquer lembrança, qualquer idéia, por mais banal que fossem — uma partida de futebol de botão, um passeio de bicicleta, um cesto de lixo ao lado de uma porta —, ganhavam contornos incrivelmente brilhantes quando revividos a partir dessa posição tão privilegiada.

De súbito o visitante lembrou do Atlas celeste e do Dicionário de astronomia e astronáutica.

Lembrou deles unicamente porque, depois da longa caminhada pela cidade, o peso da sua maleta começava a incomodá-lo.

Maldita lembrança!

O visitante lembrou do Atlas e do Dicionário, ainda dentro da sua maleta.

Lembrou deles porque começava a incomodá-lo o peso dessa carga extra. E também porque um pouco comovido com a beleza da cidade e do céu vistos do mirante, e querendo dar algum significado ao esforço inútil de ter roubado os dois livros — de ter fugido na chuva, saltado poças, corrido como um moleque peralta, pra nada —, achou que não seria má idéia cotejar, mesmo que por brincadeira, o diagrama das constelações do Atlas com o diagrama real, palpável, da noite estrelada.

Cotejar, confrontar, comparar.

Sim, apenas para ver se lá em cima tudo ainda se encontrava no seu devido lugar desde a impressão do referido livro.

Veja só que curioso, murmurou o visitante falando mais consigo mesmo do que com qualquer outra pessoa presente.

Quê?

A bandeira dos Estados Unidos possui cinqüenta estrelas.

É? Eu não sabia. Jamais tive a curiosidade de contar.

A bandeira de Mianmar tem catorze. A do Uzbequistão, doze.

Estela tirou o olho da ocular:

Uzbequistão? Onde diabos fica isso? Agora você resolveu estudar as bandeiras de todo o planeta?

A de Cabo Verde, dez. Estou apenas repetindo o que está escrito. A de Granada e a da Venezuela, sete. A da China e a de Cingapura, cinco. A do Iraque, três.

Estupendo.

Japão, Argentina, Uruguai, Malavi, Bangladesh e Tailândia, o sol.

Sei, ela respondeu desistindo de prestar atenção ao que ele dizia e voltando a observar fatias da grande colcha iluminada, ora acima ora abaixo do horizonte.

Austrália, Samoa Ocidental, Nova Zelândia e Papua-Nova Guiné, o Cruzeiro do Sul. A bandeira do Brasil traz uma esfera celeste inteira.

É de cair o queixo, de fato.

Todo mundo quer, de uma maneira ou de outra, ter algum vínculo com o céu, é, com esse pequeno pedaço do universo. Ou com o cosmo inteiro, se possível. Até mesmo as nações.

Bobagem.

Pra dizer a verdade, caro leitor, até aqui tudo correu muito bem. A discussão propriamente dita começou a se configurar nesse exato momento entre a última fala de Estela, bobagem, e a primeira do visitante, após o instante de silêncio que este decidiu guardar.

O visitante ficou quieto menos pela ofensa — afinal, bobagem, ela respondeu demonstrando um profundo enfado por tudo o que dissesse respeito ao Atlas que tanto transtorno lhe causara — e mais porque não queria se distrair enquanto acompanhava, com alguma dificuldade devido à fraca luz que vinha dos postes laterais, uma lista gigantesca de objetos celestes inserta numa tabela muito pequena.

Após o minuto de silêncio a primeira fala do visitante foi mais ou menos esta:

Hoje é noite de lua cheia.

Estela continuou imóvel.

Apenas isto: hoje é noite de lua cheia.

O visitante estava encostado na mureta, de costas para o telescópio, observando o quadrante diametralmente oposto ao visualizado pela objetiva.

Vamos até o outro lado. De lá a gente pode ver melhor a lua.

Não estou interessada na lua.

Por que não? Todos gostam de observar a lua. Por que só você não está interessada?

Não me agrada. É muito trivial. Um lugar-comum.

Sei.

Estela, cheia de sarcasmo, retrucou, quantas bandeiras trazem o desenho da lua, afinal?

Disse isso apenas por farra, os cotovelos apoiados no tubo, os olhos fixos no céu, mas agora dispensando o auxílio do telescópio.

O visitante olhou no Atlas.

Muitas.

Argélia, Turquia, Cingapura, Mauritânia, Paquistão, Tunísia, Malásia. Muitas.

Estela, indiferente à lua, admirava as várias configurações de estrelas.

Você nunca se interessou em conhecer o nome das estrelas que tanto observa?

Quais nomes? Quais estrelas? Eu mesma costumo nomear minhas próprias estrelas.

Na verdade estou me referindo ao verdadeiro nome delas. Os nomes conhecidos por todos os que costumam observar o céu à noite. Os nomes conhecidos pelos astrônomos, por exemplo.

Verdadeiros? Não me faça rir.

Por quê?

Está bem. Vá lá, façamos de conta que… E isso é só uma hipótese, ok? Façamos de conta que os nomes criados pelos astrônomos, nos seus laboratórios assépticos, sejam de fato os verdadeiros. Que importância têm esses nomes afinal? As estrelas deixariam de existir caso fossem chamadas por outra coisa qualquer? São esses verdadeiros nomes mais importantes do que as próprias estrelas?

Não me venha com essa. Você sabe muito bem o que eu estou querendo dizer.

Você é um grandíssimo estraga-prazeres, isso sim. Um chato de galochas. A única coisa que eu sei muito bem é que, pra mim, pouco se dá saber se tal estrela se chama Patati ou Patatá. O que realmente importa pra mim é pura e simplesmente o fato de ela estar lá, a tal estrela. Ela, fulgurante, lá em cima, e eu aqui, viva, sem brilho algum, no frio e no escuro. Isso provoca em mim uma sensação muito boa, de verdadeiro lirismo.

Sei.

Você não sabe nada. Só faz pose de quem sabe, mas não sabe de merda nenhuma.

55
No final do túnel largo, extenso, escuro, malcheiroso, úmido, quente, quieto, arenoso, egoísta, cruel, traiçoeiro e sombrio há uma caverna iluminada por lampiões. No fundo da caverna há um elevador antigo e enferrujado.

Quero dizer, havia.

Agora, no local onde devia estar o elevador, há apenas grandes blocos de granito sobre vergalhões retorcidos, bloqueando a passagem.

Um tremor de terra?

Uma granada?

Não dá pra dizer com certeza.

O fato é que o elevador já era e a caravana precisa descer por outro caminho. Que outro caminho? Pelo caminho muito, muito mais longo.

É por aí que muitos vultos pequenos e agitados conduzem com determinação as seiscentas e sessenta e seis pessoas amarradas, vendadas e amordaçadas.

A fila de emes luminosos serpenteia feito uma centopéia na direção do centro da Terra.

Existem muitas formas de se atingir o fundo do mundo.

Uma delas, a mais rápida de todas, é mergulhar num poço e atravessar as camadas geológicas em altíssima velocidade, numa queda quase infinita.

Outra, a mais vagarosa, é seguir a pé acompanhando a secreta brisa do subsolo, caminhando pelos tortuosos corredores esquecidos há séculos, abertos por civilizações muito antigas e já extintas.

Apesar da lentidão da viagem e dos trechos de escuridão absoluta, essa forma de se atingir o fundo do mundo é de longe a mais espetacular.

Ao longo do caminho as múmias congeladas num grito mudo e as velhas estátuas rachadas, de expressão endemoninhada, os membros totalmente cobertos de limo, pregarão muitos sustos no viajante desavisado.

A menos que ele esteja usando uma venda e, em conseqüência disso, temporariamente cego para a bizarra decoração dos corredores subterrâneos.

Ah, mas isso seria uma pena. Uma grande pena. Não poder admirar as paredes decoradas com hieróglifos quase alienígenas, feitos de traços e pontos, formando textos sinistros e indecifráveis… Ninguém merece esse castigo.

É por esse caminho que o bibliotecário e os outros prisioneiros, pastoreados pelas criaturinhas peludas, seguem consternados, vendados, as mãos amarradas.

Não vêem as múmias. Não vêem as estátuas. Não vêem as inscrições indecifráveis muito mal iluminadas por lampiões enferrujados.

No fim de cada túnel, uma caverna encantada. No fundo de cada caverna, um novo túnel assombrado.

Passam por colunas imensas e por arcos poderosos, por onde passaria um gigante de conto de fadas. Acompanham riachos sulfurosos e bancos de areia negra e macia encimados por estalactites eternas. Descem por veredas escorregadias e por trilhas estreitas ladeando abismos sussurrantes.

Não podem admirar as colunas, os arcos, os riachos e as dunas. Mas pelo menos escapam do susto paralisante e quase sempre fatal que os abismos reservam aos estranhos.

56
Estava ficando frio.

Um casal de idosos, acompanhado de três crianças, se aproximou.

As crianças — um menino e duas meninas — se desvencilharam das mãos do casal e saíram em disparada, fazendo uma algazarra dos diabos, na direção do telescópio onde Estela estava apoiada.

O visitante foi o primeiro a perceber a molecada.

Um auê dos diabos. Uma cacofonia irritante, cheia de guinchos e gemidos. Um vozerio fino, cortante, sem pé nem cabeça.

Que estariam querendo dizer essas crianças?

Quão absurdo eram seus pensamentos, para que tentassem se comunicar dessa maneira tão primitiva, arquetípica, tribal, mediante o uso de expressões que no fundo não conseguiam, por mais que se esforçassem, crianças e palavras, dizer patavina?

Diante do olhar impassível do visitante o menino foi diminuindo o passo, diminuindo, diminuindo, diminuindo, até estacar de vez, encabulado. As meninas seguiram seu exemplo.

O casal de velhotes se aproximou para usar o telescópio, mas nenhum dos dois, ele ou ela, ousou dirigir a palavra a Estela. O pedido de licença ficou travado.

Não. Nenhum dos dois pediu nada, nenhum dos dois disse, por favor, será que a senhora faria a gentileza de nos emprestar, só por alguns minutos, o telescópio no qual a senhora está apoiada?

Em questão de poucos minutos as crianças se desinteressaram completamente do aparelho e foram correndo para o outro lado do terraço, onde outras crianças estavam armando a maior zona.

O casal, no entanto, apoiou-se na mureta, a poucos centímetros do contrapeso, os pés da velhinha quase ameaçando o equilíbrio do tripé. Pareciam um pouco ansiosos. Não conseguiam disfarçar o desejo de usar o telescópio.

Todos os outros estavam sendo usados por bandos enormes de pessoas. As filas cresciam rápido. Não havia mais nenhum disponível.

Estela não deu nenhuma trela aos velhotes e voltou a olhar através do visor.

Está esfriando, o visitante resmungou esfregando de maneira impaciente uma mão na outra.

O céu está ficando embaçado. Hoje talvez ainda volte a chover.

Acho melhor irmos embora. Já é tarde.

Vamos ficar só mais um pouco. Ainda há um restinho de céu límpido do lado de cá. Quero dizer, quase isso. A visão está ficando um pouco nublada agora. Droga! Se você quiser mesmo ter uma experiência mística observando as estrelas, você deve ir a um lugar onde não haja nuvens nem luzes artificiais.

Tal lugar, creio eu, hoje em dia não existe mais.

É, eu sei. Há muito tempo Fred e eu passamos alguns dias numa pousada próxima a Ouro Preto, incrustada num vale deserto e silencioso, e, juro pra você, depois disso nunca mais tornei a ver em parte alguma estrelas tão intensas e em tão grande número. As noites daquela região são indescritíveis.

Quantas estrelas você já catalogou na sua coleção particular?

Centenas.

Então por que você não me apresenta uma delas?

Ok, chega mais.

Obedecendo ao gesto imperativo de Estela o visitante aproximou o olho direito da ocular.

Vê aquela maior, no alto, dois dedos acima do edifício do Centro de Vigilância Sanitária? É a minha predileta.

Estou vendo, sim.

Eu a chamo de Ora, direis, ouvir estrelas?

Quê?

Ora, direis, ouvir estrelas?

Mas de onde você tirou um absurdo desses?

Meu pai gostava bastante do Bilac. De tempos em tempos ele costumava recitar esse soneto em casa. Às vezes no Natal, às vezes no meu aniversário, sempre que havia muita gente em volta. Era muito divertido, sim. Isso porque a maneira como ele recitava, depois de alguns copos de cerveja, fazia todas as crianças rirem pra valer. Ora, direis, ouvir estrelas, ele dizia, e logo em seguida soltava um arroto. Era realmente muito divertido. Aquela estrela me lembra meu pai.

Não sei como uma estrela no meio de milhares de outras estrelas pode lembrar alguém.

Exatamente. Você não sabe. Nunca saberá. Não é da sua natureza saber.

Não, calma aí. Para o seu governo as coisas não são assim, não, tão arbitrárias. Que seria do mundo se cada um saísse nomeando as coisas a seu bel-prazer? Espera lá! Sei que na vida nem tudo faz sentido, mas algum sentido tem que haver, ora.

Como assim, algum sentido?

O visitante desdobrou as páginas centrais do Atlas, onde se viam, impressos em papel couché, ambos os hemisférios celestes, o boreal e o austral, com suas oitenta e oito constelações.

Desdobrou-as abrindo bem os braços, com o claro objetivo de impressionar Estela.

Que pretendia ele com isso? Nada mais nada menos do que mostrar a ela todo o gênio da espécie humana. Escancarar, de maneira enfática, se possível, o acúmulo de conhecimento obtido no decorrer dos séculos por uma vintena de mentes bem dotadas.

Porém, com as duas páginas abertas, o visitante viu-se perdido num emaranhado de pontos e linhas, planos e cores.

Havia muitas estrelas aí. Mas seus nomes estavam escritos com letras tão pequenas, impressos ora em cima ora embaixo de um feixe inextricável de diagonais vermelhas, amarelas, azuis, contínuas e tracejadas, que era difícil reconhecer qualquer um deles.

Isso deixou o visitante bastante irritado.

Sentia-se como um verdadeiro palerma.

Cadê a maldita estrela dois dedos acima do Centro de Vigilância Sanitária?

Não havia nenhum Centro de Vigilância Sanitária nesses mapas.

Então como poderia o visitante atirar na cara de Estela o verdadeiro nome daquela estrela — Ora, direis, ouvir estrelas? Santo Deus! —, provocando nela humilhação e aborrecimento, se mal conseguia encontrar a ponta dos próprios dedos, as pontas pequenas e insignificantes, nas bordas das duas páginas?

Quem poderia traduzir esse criptograma, esse oráculo estelar redigido numa língua desconhecida?

Curioso. Sentia-se mais insignificante do que a ponta dos seus dedos. Sentia-se exatamente como gostaria que Estela estivesse se sentindo: pequeno, ignorante, pueril.

Safou-se pegando um nome ao acaso.

Alpha Centauri.

Quê?

Alpha Centauri. Não está vendo? A sua querida Ora, direis, ouvir estrelas? na verdade se chama Alpha Centauri.

Grande merda.

57
A quantas horas estamos andando?

Oito? Dez? Doze?

O bibliotecário não agüenta mais. Seus pulmões ardem, a bexiga está no limite, o fluxo sanguíneo já não responde tão bem ao comando do coração.

A percepção do espaço e do tempo está seriamente comprometida pela cegueira imposta pela venda.

As únicas balizas disponíveis são as auditivas.

Grunhidos. Às vezes o som de água corrente. Do deslizar de cascalhos.

Então a fila indiana — há algum índio ou indiano nela? — começa a parar.

Mais grunhidos.

O grupo de seiscentos e sessenta e seis seqüestrados começa a ser dividido em muitos grupos menores, de dez pessoas, no máximo quinze. A divisão leva meia hora, em seguida os grupos menores são conduzidos a um labirinto carcerário de paredes amarelas, grades brancas e teto alto. Depois de mais meia hora todos os grupos são aprisionados em celas de três metros por três e abandonados aí pelas criaturas peludas de macacão camuflado. Leva mais algum tempo para que os prisioneiros consigam se livrar da venda, da mordaça e da corda que prende os pulsos.

Os prisioneiros olham ao redor, tomam o maior susto e suas feições adquirem traços de animal raivoso.

Em seguida num só jato — o quê, quem, quando, onde, por quê?! — a gritaria ecoa por todo o labirinto abandonado.

Braços são erguidos, punhos fechados tentam arrancar o cabelo e as grades, sons desumanos brotam de entranhas descoordenadas.

Gritaria que começa vigorosa feito uma onda gigantesca, tsunami que abala as paredes amarelas mas logo vai esmaecendo até desaguar num choro rasteiro, líquido, lacrimoso, e escorrer timidamente através da grades.

Agora, o silêncio fúnebre.

Exaustos, os prisioneiros param de uivar, de xingar, de pensar em protestar. Eles param até mesmo de pensar.

O bibliotecário sente dor nas coxas, nas panturrilhas, nos calcanhares. Sua cabeça parece que vai explodir e o estômago, implodir. Seus olhos enxergam tudo embaçado. Sem os óculos não há como discernir o rosto dos companheiros ou os detalhes da cela posicionada entre dezenas de outras nesse labirinto amarelo.

Tudo o que ele quer nesse momento é mijar.

No fundo da cela há uma latrina.

Mas, ó Zeus Capitolino, a fila de bexigas e intestinos exaustos e infelizes é grande e quase não anda.

Próximos capítulos

A guerra entre os dois mundos tem início: o povo do subterrâneo começa a invadir as cidades da superfície, que praticamente não opõem resistência. Ainda aprisionado, o bibliotecário devagar vai conhecendo em detalhes a organização dessa sociedade subterrânea, dividida em castas. Na base da invasão — motivando, promovendo, sustentando os ataques — está o amor pelos livros. Estarrecido, Frederico ouve de outros prisioneiros histórias sobre o líder dos invasores, cujo nome — Mal, o Grande — costuma despertar inquietação e medo.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho