Romance-Folhetim: Poeira: demônios e maldições (1)

Capítulo 1 do folhetim "Poeira: demônios e maldições", de Nelson de Oliveira
Ilustração: Tereza Yamashita
01/11/2006

1
Pé contra pé. Na manhã em que machucou o dedão do pé direito no pé do criado-mudo, o bibliotecário-chefe, ainda atordoado pelo sono, pela raiva e pela dor, não notou que haviam pichado a parede em frente à biblioteca. Ele chegou mancando ao trabalho, preocupado mais com uma de suas extremidades inferiores do que com certas superfícies maculadas.

As quatro letras brancas sobre o fundo fuliginoso tinham dois metros de altura, mesmo assim ele não reparou.

Só à tardezinha foi que o bibliotecário deu de cara com essa palavra de ordem ostensiva e diabolicamente gritada na parede suja. Na parede violentada. Na parede que de certo modo também era sua.

Lá estava o palavrão:

luta

Mas luta por quê? Onde? Contra quem?

Luta armada, luta racial, luta econômica?

Espiritual? Cultural? Da esquerda com a direita? Dos instintos com a razão?

Na manhã seguinte, a pouca distância da primeira palavra, a segunda, também em letras atrevidas:

ação

Luta e ação, que gracinha, resmungou o bibliotecário.

A caligrafia era a mesma. Mas não havia assinatura. Nenhum grupo, nenhuma gangue, nenhum partido assumia o atentado contra o musgo e as rachaduras da parede antiga.

Na terceira manhã a situação começou a ficar sombria.

mal

Por que mal? Por que não bem, beleza, vitória? Por que algo tão negativo? Por que não protestar e gritar por dignidade, poesia, honra?

O fato estranho foi a ausência de vultos e vadios na madrugada silenciosa.

O vigia que o bibliotecário havia destacado para ficar de olho na rua estreita jurou que ninguém tinha aparecido no local durante toda a noite. Nem pichadores, nem vândalos, nem encrenqueiros, nem pacatos cidadãos. Ninguém. Eu juro, seu Fred.

Seu Fred é o caralho. Pra você é “seu Frederico”. Você caiu no sono, aposto, seu imprestável.

Não caí, não, eu juro que não fechei o olho, seu Frederico.

Sai da minha frente antes que eu te arranque uma orelha. Hoje à noite quero você de novo vigiando essa parede. Se amanhã de manhã eu vir mais uma letra, umazinha que for, eu arranco teus olhos.

Nas manhãs seguintes luta virou absoluta e ação, vocação.

O vigia não teve coragem de encarar o bibliotecário. Preferiu faltar a semana inteira, alegando doença.

Assim foi, letra por letra, pincelada por pincelada. Até a manhã em que a frase se completou e as pichações pararam:

temos absoluta vocação para o mal

A partir desse dia o problema mudou de rosto.

A partir desse dia o problema passou a ser os livros, as bibliotecas e em certa medida os bibliotecários.

2
Jacira, gritou uma voz fina e nasalada.

Jacira, gritou em seguida uma voz cavernosa.

Jacira não estava na sala.

Jacira, repetiu a mesma voz cavernosa agora perceptivelmente mais irritada.

Ninguém respondeu.

Jacira estava no banheiro, urinando e pensando na vida. Por isso não ouviu quando primeiro um dos office-boys e depois o bibliotecário chamaram seu nome no início da escada, no corredor, no saguão, na porta de entrada, aqui e acolá.

Jacira, gritavam eles cada vez mais alto.

Jacira tinha que se apresentar imediatamente ao seu superior. I, me, di, a, ta, men, te.

Isso porque num canto do amplo escritório sem janelas haviam encontrado, atrás de várias pilhas de dicionários aguardando a hora de ser transferidos para uma das bibliotecas recém-construídas, uma caixa de papelão, isso mesmo, uma caixa de mais ou menos um metro de altura por um de largura e dois de profundidade, contendo uma centena de livros novos, não catalogados.

Mas Jacira não apareceu.

O bibliotecário, irritadíssimo, com dor no estômago, abriu caminho de maneira rude, sacudindo-se todo, furando a parede de assistentes que se formara diante da caixa, empurrando, socando, xingando.

Os assistentes, diante dos empurrões e dos palavrões, não reagiram, não se mexeram. Se comportaram como bonecos de borracha. Cada qual apenas deixou o corpo reclinar um pouco, para logo em seguida, toiiim, voltar ao normal.

A caixa.

Onde meia hora antes não existia nada mais além de grossos e empoeirados volumes do Aurélio, do Michaelis, do Houaiss, do Caldas Aulete, do Laudelino Freire, havia agora, espremida entre eles e espremendo uns contra os outros, uma caixa transbordando de livros novos.

Um dos assistentes, um rapaz de uns vinte anos, ao ser empurrado, tropeçou numa pilha de apostilas não muito alta e caiu sentado, as pernas abertas, desfazendo a arrumação na qual havia tropeçado.

O bibliotecário estava acabrunhado.

Suas mãos suavam. Seus pés suavam.

Até mesmo sua respiração estava um pouco mais acelerada do que o normal.

Esperavam dele, todos nesse cômodo, uma reação à altura do cargo que ocupava. Esperavam a reação de um verdadeiro líder. Ele era o chefe, não era?

Enquanto isso o bibliotecário rangia os dentes.

Rangia-os sem ao menos perceber que agindo assim suas mandíbulas de vez em quando pressionavam os nervos da face. Rangia-os sem sequer se dar conta de que o zunido nos ouvidos e a leve tontura que sentia tinham origem nesse ato involuntário.

Aí estava a caixa.

Que fazer?, perguntava-se ele, as bochechas em fogo, mais envergonhado do que furioso.

Envergonhado porque não sabia qual atitude tomar, enquanto todos ali esperavam da sua parte um gesto decisivo, heróico, magistral.

Que fazer, meu Deus?

Apreensivos, os assistentes foram deixando de opor resistência e se afastando um a um, abrindo espontaneamente mais espaço para o chefe.

Nenhum deles teve coragem de arrancar a fita crepe que vedava a parte superior da caixa, pois apesar do lacre sabiam muito bem qual era o seu conteúdo.

Houve um princípio de tumulto quando o bibliotecário, já no auge da sua irritação, passou a questionar todos os presentes sobre a origem da caixa.

Ninguém havia visto nada de suspeito durante o expediente. Ninguém havia ouvido nada também.

Jacira, gritou o bibliotecário.

A mulher voltava às pressas do banheiro, ajeitando o cabelo, já intuindo o motivo dessa inesperada agitação no canto da imensa sala.

Um absurdo, ele resmungou segurando a mulher pelo braço, trazendo-a para bem perto da caixa, fazendo-a tocar no papelão, quase esfregando seu nariz na superfície lisa e marrom da embalagem. Um absurdo.

Jacira estava pálida, completamente sem cor.

Estava trêmula e quase perdendo os sentidos de tanto medo.

Queria responder, mas apesar do esforço sua voz não se formava nem nas cordas vocais nem em parte alguma.

Era ela a responsável pelo incidente? Nada entrava ou saía dessa repartição sem que ela soubesse, sem que tomasse nota. Nada, sem que um cartão, uma papeleta, um formulário, um protocolo, uma ordem de transferência fosse mais cedo ou mais tarde preenchida.

Absolutamente nada.

Nem um clipe conseguiria se deslocar de uma mesa para a outra sem que ela tomasse conhecimento disso, sem uma menção na sua agenda.

Um absurdo.

Nada.

Pelo menos não até o momento.

O bibliotecário, com o auxílio de um punhal sem fio pego em cima da mesa, usado tão-só para abrir envelopes, estraçalhou a face superior da caixa, arrebentando a fita crepe, arrancando e rasgando as duas abas antes dobradas.

Nacos e serpentinas de papelão voaram pra todos os lados.

Alguns livros tiveram a capa e as primeiras folhas perfuradas, devido à impetuosidade dos movimentos de vaivém do punhal.

Como você me explica isto aqui?, gritou o bibliotecário segurando firmemente o pulso de Jacira e apontando com a cabeça o conteúdo da embalagem.

Ela, agora também enfurecida, se libertou com um safanão. Ninguém lhe dirigia a palavra dessa forma, foi o que gritou. Ninguém.

Nem mesmo meu marido, está entendendo?

O bibliotecário, completamente desnorteado, andou pra lá e pra cá dentro da pequena multidão, coçou a cabeça quase completamente calva, balançou mais uma vez a pança e parou na frente da caixa.

Duas rodelas de suor cresciam nas suas costas, manchando a camisa.

Como você me explica isto?, perguntou mais uma vez para a mulher, mas agora sem segurar em parte alguma do seu corpo mirrado.

Jacira não sabia o que responder.

Seus dedos longos e finos alisavam-se nervosamente sem parar, e isso irritou ainda mais o bibliotecário.

De agora em diante não quero mais ver a senhora fora desta sala, está me entendendo? Seu lugar é aqui, não no corredor, não no banheiro, não no cu do mundo. Que merda. A senhora é paga pra manter sua bunda naquela cadeira, não em outro lugar. De agora em diante não quero mais ver a senhora zanzando por aí, estamos de acordo? De que adianta ter uma funcionária exclusivamente para as formalidades de entrada e saída se, compreende?, a todo momento fazem e desfazem do que está aqui dentro? De que adianta? Mexem e remexem ao bel-prazer em tudo o que está aqui. Que merda.

Seguiu-se uma furiosa discussão.

Jacira não sabia o que responder.

Seus dedos continuavam a se alisar nervosa e incessantemente.

O senhor não tem o direito de falar comigo dessa maneira, seu Frederico. Está me entendendo? Nem mesmo meu marido fala comigo assim, seu Frederico.

O bibliotecário avaliou o peso da caixa.

Um homem sozinho, por mais forte que fosse, não conseguiria transportá-la com tanta facilidade a ponto de não ser visto entrando e saindo.

Seriam necessários no mínimo dois.

Mas como dois estranhos fariam pra entrar nesse escritório sem ser vistos?

E por onde?

Não sabemos, seu Frederico. Ninguém viu acontecer nada de anormal hoje. O senhor sabe, só nós temos permissão pra circular neste andar. Pra dizer a verdade, há anos que ninguém que não trabalha aqui entra neste prédio.

A sala era abafada e fedorenta. Não tinha janelas.

Iria ter em breve, porque o bibliotecário não suportava mais trabalhar num cômodo tão opressivo. A visita dos pedreiros já estava programada. Em breve, janelas.

Mas por ora, nenhuma.

Merda.

O bibliotecário, depois de verificar pessoalmente as duas únicas entradas possíveis — a janela do escritório em frente, no outro extremo do corredor, transformado em mais um depósito de livros (janela esta quase encostada na janela do prédio vizinho, separada daquela por pouco mais de um metro de espaço vazio), e a escada que levava ao hall, posicionada entre os dois escritórios —, chegou à conclusão de que nenhum estranho poderia ter entrado na sua sala sem que os outros tivessem percebido.

Imediatamente concluiu que apenas alguém de dentro, aproveitando a distração dos demais, teria a oportunidade de entrar com a caixa sem chamar a atenção.

De repente todos se tornaram suspeitos.

Teve início um novo bate-boca. Cada um dos presentes passou a acusar os demais, usando como indícios e provas irrefutáveis os fatos mais corriqueiros, os gestos mais banais observados no dia-a-dia do escritório.

Uma maneira diferente de dobrar um formulário.

Uma caneta azul posta ao lado das canetas vermelhas.

Uma pasta arquivada no armário errado.

Tudo isso era evidência de um crime grave, tudo isso era motivo para acusar alguém.

O bibliotecário saiu da roda agitada que havia se formado ao seu redor e, atravessando o corredor escuro, entrou na sala entupida de livros, sala que ele não visitava fazia meses.

Foi até a janela.

Estava trancada com um cadeado enferrujado, podre, travado. Não havia nele nenhum sinal de arrombamento.

Merda.

Limpou o vidro empoeirado com a palma da mão.

Estranho.

Anoitecia e um amontoado de gente vinda de todas as direções começava a se formar na rua, embaixo dos postes, ao lado da pichação na parede.

Que significa isso?

Não lhe pareceu ser gente muito amistosa. Traziam correntes, pedaços de pau e porretes improvisados.

Deixavam suas bicicletas em qualquer lugar e imediatamente se dirigiam com firmeza, gesticulando muito, para um dos vários focos de reunião.

Frederico aguçou os ouvidos. Que será que esses pilantras estão tramando?

Mas a janela estava lacrada, razão pela qual ele escutava com maior nitidez a voz dos seus próprios funcionários, às suas costas, do que a dessas pessoas na rua.

Desistiu.

Ao voltar à sua sala, retornando da rápida vistoria, viu-se no meio de uma discussão feroz.

Dois assistentes diziam ter visto Jacira chegar quinze minutos adiantada na sexta-feira passada.

Segundo eles, nessa manhã ela trazia uma bolsa de couro um pouco maior do que a bolsa que costumava usar.

Uma bolsa preta.

Jacira, por sua vez, disse ter visto um dos assistentes que a acusavam conversando a altas horas com uma das faxineiras, duas semanas atrás, numa esquina distante dali.

O assistente defendeu-se, apontando outro colega de trabalho como sendo a pessoa em questão.

O office-boy contou ter ouvido da boca de um dos assistentes mais velhos da casa, cujo nome ele não iria revelar por nada deste mundo, que a chefe das faxineiras estaria roubando folhas de papel sulfite — folhas em branco! — para sua filha pequena usar na escola, como caderno.

Trouxeram à força a chefe das faxineiras e revistaram sua bolsa.

Nada foi encontrado. Nenhuma folha.

Depois que as acusações individuais chegaram ao fim, pequenos grupos começaram a se formar.

Quatro, cinco funcionários ligados pela súbita camaradagem acusavam em uníssono os desafetos.

Por quinze minutos todos ficaram se difamando, baseando suas declarações em gestos, palavras e acidentes idiotas pegos de surpresa, em fatos destituídos de qualquer valor, em declarações sem pé nem cabeça feitas a pessoas totalmente alheias aos acontecimentos.

Na hora em que os suspeitos mais prováveis passaram a ser os parentes mais distantes de cada um dos funcionários — um tio-avô nascido em Bauru, uma cunhada atualmente morando em São Joaquim da Barra, o cara da cadeira de rodas que vendia paçoca na porta do estádio — o bibliotecário achou que a palhaçada já estava indo longe demais.

Sentou-se na sua cadeira e tentou se acalmar.

Fechou os olhos e os ouvidos para o mundo.

A queimação no estômago estava ficando insuportável. A dor no dedão do pé começava a voltar. Merda.

Quando o único suspeito, na opinião de todos, começou a ganhar a sua silhueta, a sua voz, os seus traços mais distintivos: pança, calvície precoce, flacidez, irritabilidade, enfim, quando o principal criminoso começou a se parecer cada vez mais com ele, Frederico, bibliotecário-chefe nomeado com pompa e circunstância pelo governo federal, nesse momento o novo acusado, com um murro na mesa, pôs fim à história.

Ilustração: Tereza Yamashita

3
3 colheres de sopa de vinagre branco.

3 colheres de sopa de vinho branco seco.

1 colher de sopa de cebola picada.

1 galhinho de estragão.

Sal e pimenta-do-reino branca a gosto.

3 gemas batidas com 1 colher de sopa de água.

3/4 de xícara de manteiga.

1/2 colher de sopa de estragão picado.

Epa. Estragão picado?

A mulher do bibliotecário desligou-se por um instante da conversa.

Teria esquecido de picar algumas folhinhas frescas e tenras do cheiroso ramo de estragão?

Desligou-se da conversa por um instante e, indiferente ao zunzunzum, passou a se concentrar apenas na qualidade da sensação provocada pelo molho que estava provando.

Não. Não havia esquecido.

Aí estavam os pedacinhos da erva, perdidos no vinagre branco, fazendo cócegas no céu da sua boca.

A mulher do bibliotecário sentiu-se mais aliviada.

Estragão picado, pensou, enquanto seus olhos enevoados flutuavam pela sala de jantar, enxergando tudo um pouco mais escuro do que o normal, como se a mobília e as pessoas se encontrassem cobertas por um finíssimo lençol cinza.

Alguém comentou, o molho está divino. Sim, divino.

Ela, todavia, não escutou.

Seus ouvidos, presos no fundo de si mesmos, atentos apenas ao que os olhos viam.

Um louva-a-deus estava parado no ombro direito do visitante sem que ninguém se desse conta disso.

Ninguém, exceto a mulher do bibliotecário.

Através do cristal de uma taça de vinho, Estela observava o corpo do inseto, seu tórax alongado, as pernas da frente compridas e desproporcionais, a epifania dos predadores refletida na sua posição tão devota.

Observava-o através da sua taça de vinho quase vazia, devaneando e ao mesmo tempo se perguntando o que estaria fazendo aí nesse ombro, completamente fora do seu habitat, uma criatura tão insignificante.

Lembrou então que em algumas tradições orientais um louva-a-deus no ombro significava uma catástrofe iminente.

Ou seria uma boa-venturança?

Não conseguiu ter certeza.

Estava um pouco tonta devido ao tesão que o vinho sempre provocava.

Respirou fundo e riu.

Riu alto e esse riso, ao ser posto em cena de forma tão inesperada, fez o inseto saltar do ombro — para a mesa? não — para o encosto da cadeira e daí para o batente da janela.

O visitante também riu.

Ria a bandeiras despregadas, segundo a expressão do seu avô (do meu também). Ria, ria, ria. Afinal, durante um jantar, não seria nada educado deixar uma senhora rindo sozinha como uma tola qualquer.

Do batente o inseto ganhou o exterior, salto após salto.

O bibliotecário também caiu na risada, afastando-se um pouco do prato e apoiando os cotovelos na mesa.

Ria balançando bastante a pança, não porque tivesse de súbito compreendido tudo o que estava se passando na mente da sua mulher: o louva-a-deus, o tesão, o ombro do visitante, o batente da janela.

Não.

Ria por achar toda a cena extremamente patética, estrambótica, ridícula. Tão ridícula quanto os ornamentos da toalha de mesa, as firulas dessa toalha manchada aqui e ali pelas gotinhas do molho de tomate preparado no último Natal.

Perda de tempo. Estela já não se encontrava mais presente na desenfreada sessão de risos. Estava em outro lugar, fora da sala.

Estava num desvão do prédio vizinho, junto com o louva-a-deus.

Do alto do seu novo posto de observação, o inseto com certeza acompanhava toda a inusitada cena na sala de jantar com um desprendimento infinito. De longe ele acompanhava a cena sem se deter nos pormenores. Não há dúvida, de lá ele observava a evolução das coisas com mais discernimento e imparcialidade.

Estela tinha certeza disso.

Ah, maravilhosos olhos de inseto, como se descortinaria o palco da comédia, visto desse novo ângulo, de fora para dentro?

Provavelmente assim:

Um edifício atarracado e cinzento de apenas trinta e quatro andares.

Sobre a entrada principal, a palavra refeitório.

Numa das minúsculas salas de refeições existentes no edifício, um homem gordo e semicalvo, de olhos grandes e cansados presos atrás de lentes muito grossas, muito parecido com um antigo professor meu da Faculdade de Direito de Botucatu, infelizmente já falecido.

Sim, num dos extremos de uma mesa cheia de pratos, bandejas e tigelas vazias, um homem gordo e mal vestido.

Uma mulher de meia-idade, sua esposa, nem magra nem gorda, loira, de pequenos seios e quadril largo, muito largo, larguíssimo.

Ambos à mesa de jantar, recuperando-se dos dolorosos espasmos provocados pelo riso e pelo vinho.

Ambos acompanhados de outro homem, bem mais jovem do que o primeiro, mais alto e mais magro também, de barba ruiva bem-composta, vivaz e elegante.

Um tipo longilíneo de barba ruiva, exatamente, e com um tumor maligno no pâncreas. O mesmo tumor que daqui a três anos irá levá-lo a outra mesa, a uma mesa de cirurgia, interrompendo uma viagem de férias com a família pelas cercanias de Londres.

Mas ele não sabia disso ainda.

Nem do tumor nem das férias.

O bibliotecário, sua esposa e o visitante. Três figuras fantasmagóricas à mesa de jantar.

Três figuras que a todo momento se perguntavam em silêncio, manuseando sem muita vontade o garfinho de sobremesa ou a ponta do guardanapo, qual dos três era o menos real aí.

Estela, um pouco embriagada, falava uma língua que nem mesmo ela parecia compreender. Afinal apenas o visitante parecia estar atento ao que ela dizia. Mesmo assim com certa indefinição no olhar, no rosto todo, o visitante.

Como se ouvisse sem escutar.

O bibliotecário, por sua vez, divagava sobre trivialidades culinárias, bobagens de bêbado.

Uma boa panela, dizia ele ao acaso, na minha opinião deve antes de mais nada ser forte e de fácil limpeza. É isso. Forte e de fácil limpeza. Compreende?

O visitante fingia estar prestando atenção:

Sei.

Nos próximos capítulos de Poeira: demônios e maldições, intensifica-se o mistério do aparecimento dos livros. O que a poeira das estrelas tem a ver com esse estranho acontecimento? Tudo. Enquanto o bibliotecário perde seu tempo envolvendo-se em questões domésticas e burocráticas, certas criaturas noturnas conspiram para revolucionar o mundo.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho