61 (continuação)
O velho de sobrancelhas coladas, agora mais calmo, explica a um casal que se esforça muito para controlar o pânico — seu esforço é visível, os dois transpiram muito, de puro pavor — que não há nenhuma esperança. É isso o que o velho de cara amarrotada fala ao casal: não há nenhuma esperança. Todos os que foram trazidos para os subterrâneos jamais voltaram à superfície. É isso o que o velho diz. Nenhuma esperança.
A mulher começa a chorar. O homem a abraça com força, como se quisesse introduzir sua companheira inteirinha dentro dele.
O velhote, agora mais calmo, cospe no chão, ajeita o boné e continua explicando, dois anos, meus amigos, eu estou aqui há dois anos, fui trazido no meio da noite, como vocês, fui um dos primeiros e desde que vim pra cá o número de pobres coitados só fez aumentar semana após semana.
Que estupidez é esta? Por que essa gente nos trouxe pra cá? Vão pedir resgate? É isso?
Resgate? Ah, não, de jeito nenhum. Eles não querem dinheiro. Eles querem mão-de-obra barata.
Mão-de-obra barata? Pra quê?
Cheguem aqui. Venham ver pela janelinha. Olhem lá embaixo.
O casal se aproxima da janelinha. Ele é alto, mas ela é obrigada a subir na latrina, agarrar as barras e ficar na ponta dos pés para poder ver a vasta caverna lá fora.
A vasta caverna encantada.
A vasta caverna apinhada de anões de macacão azul. De anões de macacão laranja. De chimpanzés de macacão preto.
É assim que as coisas funcionam aqui: os azulzinhos mandam nos laranjinhas. Os laranjinhas mandam nos pretinhos. Os pretinhos mandam em nós. Todos obedecem, ninguém reclama. Quero dizer, nós reclamamos. Então eles nos espancam e aí a gente fica quieto. É a sociedade perfeita.
O velho fala e o bibliotecário, do outro lado da cela, não perde uma palavra sequer.
Pra mim isto aqui é o inferno. Vejam só, são noves níveis. Ou, se preferirem, círculos, cada um mais largo do que o anterior. Não perguntem quem os escavou nas paredes desta caverna, porque eu não faço a menor idéia. No total, nove. Em cada um deles é feito um trabalho diferente. Este é o maior parque gráfico que eu já vi na vida.
O casal continua olhando pela janelinha.
A movimentação nos nove círculos e nas rampas de acesso é incessante. Os anões de macacão azul comandam grandes grupos de anões de macacão laranja e chimpanzés de macacão preto, grupos que sobem e descem as rampas carregando caixas, sacolas, latões de tinta e grandes bobinas de papel. A multidão de operários serpenteia de modo ruidoso e descontrolado, redemoinhando na direção dos níveis inferiores, desaparecendo atrás de grossas colunas de mármore negro e surgindo no lado oposto, caminhando agora na direção contrária, rumo aos círculos superiores.
Os escravos, gente nascida na superfície, não participam dessa movimentação. Eles permanecem o tempo todo presos no círculo a que foram encaminhados logo que chegaram aí, de onde saem somente no final da jornada de trabalho, para dormir nas celas.
O casal, cansado de olhar pela janelinha, senta no chão, ao lado do velho, que explica o que acontece nos nove círculos.
O bibliotecário abre bem os ouvidos.
No primeiro círculo, o mais estreito de todos, ficam a equipe de digitação, encarregada de copiar os livros que estão fora de catálogo, e a de redação, encarregada de escrever novos livros. Isso mesmo: há escritores aqui embaixo. Foram os primeiros a ser seqüestrados. Poetas, contistas, romancistas, ensaístas, pesquisadores, tradutores. São obrigados a escrever sobre tudo. Economia, astrologia, culinária, botânica, História, literatura, arte, astronomia, geologia, direito.
No segundo círculo fica a equipe que prepara as provas para as várias revisões. Eles apenas padronizam e imprimem os arquivos que chegam do círculo anterior. Em seguida essas provas são entregues ao pessoal do próximo nível.
No terceiro círculo fica a equipe de revisão e preparação de originais. Pra quem não entende nada da cadeia produtiva do livro, esse trabalho parece simples. Mas não é, não! É um dos mais complexos. Todos os erros presentes no texto são corrigidos nessa etapa.
No quarto círculo fica a equipe de diagramação, que cuida do projeto gráfico do livro. São eles que, por exemplo, escolhem as famílias tipográficas e decidem qual será o formato do livro. Também são eles que cuidam das fotografias, dos gráficos e das ilustrações, se o texto vier acompanhado de tudo isso.
No quinto círculo fica a equipe de pré-impressão, que cuida dos fotolitos e das provas heliográficas. Essas provas voltam ao terceiro círculo pra última revisão antes da impressão.
No sexto círculo fica a equipe de impressão. Lá embaixo as máquinas não param nunca. Estão ouvindo o rumor? Não é uma cachoeira, não. São as impressoras off-set. Tem dia que o forte cheiro de tinta e solvente quase sufoca os pobres-diabos que são forçados a trabalhar nesse nível.
No sétimo círculo fica a equipe de montagem e acabamento. As grandes folhas impressas vão pra lá e são dobradas, formando os vários cadernos de um livro. Então os cadernos são reunidos e costurados. O miolo pronto, nele é colada a capa e o conjunto todo é refilado.
No oitavo círculo, mais largo do que os anteriores, fica o estoque. Todas as edições ficam guardadas aí, à espera do pessoal da distribuição.
No nono círculo, o mais largo de todos, fica a equipe de distribuição. Equipe é modo de dizer. Trata-se, na verdade, de um exército inteiro de chimpanzés treinados pra, sem ser vistos, deixar as caixas de livros em qualquer ponto da superfície.
A mulher pergunta, em que nível você trabalha?
No oitavo. No estoque.
O que tem depois do nono nível?, o homem pergunta.
Lá no fundo, no fundo mais profundo da Terra, é onde ele fica. São os seus aposentos. Sempre que ele passa por aqui, ele fica lá embaixo.
Ele quem?
Ele. O líder dessa cambada de malucos. O grande Mal, que é como o chamam.
O grande mal?
Não. O grande Mal, com M maiúsculo. Eu mesmo nunca o vi. Faz tempo que ele não aparece por estas bandas. Mas sei que ele existe, porque todos, absolutamente todos os habitantes deste inferno o veneram muito. Ele é o seu deus. O criador de todas as coisas. O princípio e o fim do mundo. É por ele, é para agradá-lo, é para satisfazer sua vontade que todos aqui vivem. Se um dia esses anões invadirem a superfície, será porque ele assim ordenou.
Invadir a superfície? Tá falando sério? Que idéia mais absurda.
Absurda ou não, é o que vai acontecer. Nos corredores, no refeitório, nos banheiros, em toda parte não se fala noutra coisa. O grande Mal quer a invasão.
A mulher xinga e bate na parede.
O homem, bastante irritado, desabafa:
Esses anões e chimpanzés são espertos mas não são muitos. Talvez eles consigam invadir uma cidade. A nossa cidade. Pode até ser. Mas jamais conseguirão invadir todas as cidades do Estado. Muito menos do país.
O velhote sorri azedo:
Não, você não está entendendo. Este formigueiro, este amontoado de anões e chimpanzés não é o único. Ele é apenas um de um número inacreditavelmente grande. Na verdade pra cada cidade existente no mundo há um igual a este. O grande Mal não brinca em serviço. Ele mantém alguém de confiança no comando de cada uma dessas cidadelas. Daqui, do fundo mais profundo da Terra, ele administra todo o seu império. A invasão, quando acontecer, será global.
62
O livro passa por cima do alambrado.
O brilho das estrelas ricocheteia no verniz da capa, da lombada e da quarta capa.
De repente, o vazio.
Antes, a luz.
Muita luz. Um burburinho enfadonho. Crianças ao redor.
Antes, ainda, a voz insossa do ascensorista, boa noite, boa noite, como vai a família, bem obrigado, até logo, até logo.
Agora o vazio, o salto na escuridão.
Primeiro, o horizonte descendo abruptamente enquanto alçamos vôo.
Depois, o horizonte começando a subir outra vez enquanto começamos a cair.
Nó somos esse livro que despenca do terraço da Biblioteca Municipal.
A cidade, quando vista assim, do centro do vácuo, não tem nenhuma consistência, nenhum dinamismo. Tudo nela se congela, permanecendo parado, ao menos enquanto durar a queda.
Quanto tempo dura uma queda?
Um minuto. Dez anos.
Durante a queda cada ponto de luz, estando ele onde estiver — no espaço sideral, na superfície da Terra —, passa a ocupar uma posição muito bem definida no cenário quase bidimensional, vagaroso, monocórdio, do mundo ao redor.
Cada ponto de luz, uma lampadazinha num móbile que não pára de girar.
O livro cai, suas folhas farfalhando violentamente, engasgadas, asfixiadas, deixando atrás de si absolutamente nada.
Cai em câmera lenta, como costumam cair no cinema todos os objetos relevantes para a trama quando atirados do alto de prédios, torres, pontes, aviões.
Em câmera lenta as folhas vão e vêm, chocando-se umas com as outras e todas com a capa.
Mesmo assim a cidade lá embaixo, parte do conjunto de lampadazinhas que compõem o móbile, não pára para observar a queda. Não estão nem aí, as pessoas que vivem nesse lugar.
Uma frágil espiral vai sendo desenhada no céu e ninguém, no fundo do poço, se dá conta disso.
Folhas.
A umidade da noite tinge praticamente todas elas, de todas as cores, tornando-as mais vulneráveis à violência da queda.
Algumas, antes mesmo do livro se chocar com o solo, acabam se desprendendo, abandonando o corpo rígido e escuro da encadernação, soltando-se da costura.
Folhas.
De repente dezenas delas estão na atmosfera, livres, fugindo, fugindo, desertando desesperadamente do corpo maciço que as reunia, afastando, dispersando, como um bando de gaivotas que abandona ao entardecer uma pedra no meio do Atlântico.
Folhas ao léu, enfim.
Cada uma delas, uma pequena lâmina branca num móbile menor que, circundado pelo maior — a cidade —, não pára de cair.
63
Nos dias seguintes os novos prisioneiros são separados, ganham um uniforme de tecido rústico e são levados aos respectivos locais de trabalho.
Devagar as novas caras vão se misturando com as antigas, adquirindo a palidez e a tristeza dos subterrâneos, perdendo todas as características recebidas do sol, da lua e do ar da superfície.
O bibliotecário, que agora trabalha no setor de impressão, ouve das mais diferentes fontes muitos fragmentos de uma fábula que ele vai recompondo aos poucos.
Fragmentos recolhidos durante o trabalho. No refeitório. No caminho de volta à cela.
Com eles, com a sua correta organização, o bibliotecário já tem a história toda.
Essa fábula, que fala de pequenas criaturas e ataques a princípio silenciosos, ele intitulou de A revolução dos livros.
64
Sem aviso algum, fiuuuchiiiiii, os rojões começaram a pipocar, cataplam, bem perto do terraço da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, espirrando faísca para todo lado e assustando as crianças.
Catapum. Cablam. Fiuuuchiiiiii, cataplam.
As crianças pequenas correram aos gritos na direção dos pais, as crianças maiores taparam os ouvidos, agacharam e enfiaram a cabeça entre os joelhos.
Os adultos não estavam menos assustados com essas sucessivas explosões azuis, vermelhas, verdes e amarelas acontecendo tão perto do terraço, a poucos metros da cabeça de todos. Mas a beleza dos arabescos coloridos provocava outras sensações muito mais intensas. Sensações que competiam com o medo e venciam, segurando as pessoas aí mesmo, impedindo que se comportassem como suas crias sensíveis e histéricas.
Catapum. Cablam. Fiuuuchiiiiii, cataplam.
Estela pegou de volta a bengala e se afastou da mureta. Estava entusiasmada com esse imprevisto espetáculo sonoro e ofuscante que intimidava as estrelas.
O visitante levou uma cotovelada nas costelas de um adolescente grandalhão que não parava de rodopiar feito bobo, a boca aberta, os cotovelos descontrolados, as mãos levemente chamuscadas pelas faíscas que, durante a chuva fosforescente, ele tentara pegar antes que apagassem.
Um rojão fez tuiuiuiuuu enquanto atravessava a abóbada celeste.
Outro fez chiiiiiiaaaaaas enquanto ziguezagueava acompanhando a linha luminosa formada pelas janelas do centésimo primeiro andar.
Vamos embora, isso aí já perdeu a graça, o visitante sugeriu segurando o braço de Estela.
Que foi? Você tá com medinho?
Estou cansado. O dia foi puxado.
As costelas doíam, mas o adolescente doidão não estava mais por perto. Ele estava metido entre dezenas de faxineiras que fugiram do trabalho e vieram, a princípio meio timidamente, depois com muito entusiasmo, ver o show de fogos.
Podemos ir embora ou não?
Podemos! Podemos!! Podemos!!! Vamos logo, antes que você comece a choramingar feito essas crianças chatas.
Estela e o visitante atravessaram com dificuldade a multidão, abriram a porta de vidro, entraram no corredor e pararam na frente do mesmo elevador que os havia trazido ao centésimo segundo andar.
Cada nova explosão no céu ressoava nos andares superiores do edifício, sendo seguida pelos vivas e pelos hurras da platéia eufórica.
Seu marido deve estar preocupado, o visitante comentou bocejando, de olho no mostrador em cima da grade de segurança, que indicava que a cabine estava agora no sexagésimo oitavo andar e subindo.
Frederico? Pode apostar que sim. Preocupado e furioso. Ele detesta quando eu não cuido pessoalmente do jantar. Pior. Ele fica furioso quando eu desapareço na hora do jantar. Neste instante ele deve estar resmungando e irritando a Renata, louco pra saber onde eu estou, com quem eu estou, por que não avisei que ia desaparecer, essas coisas.
Se isso deixa seu marido irritado, por que você age assim?
Para deixar meu marido irritado.
Só por diversão?
Exatamente.
Que desperdício de tempo e energia!
Não! Muito pelo contrário. Eu estou empregando muito bem meu tempo e minha energia. Frederico fica furioso, mas ele é o primeiro a incentivar esse nosso jogo.
Jogo?
É. O sexo, sabe? Ah, o sexo é muito melhor nas noites em que eu saio sem avisar, volto bem tarde e a gente briga feio. Você nem imagina…
Sexo, o visitante falou baixinho.
Tudo sempre se resumia a isto: sexo.
As civilizações aparecem e desaparecem e nada muda na face do planeta. Século após século o sexo continua sendo o principal combustível da máquina social. Dinheiro, conhecimento e poder não são fins, são apenas meios para se conseguir mais e melhor sexo. Confuso e frustrado, era nisso que ele pensava de olhos fechados, a maleta pesando na mão direita.
Não me diga que você e sua mulher não gostam desses joguinhos, Estela provocou o visitante, apenas para quebrar o silêncio.
Eu e minha mulher…
Você deve estar sentindo muita falta da tua família. Também, depois de meses longe… Por que não faz as malas e volta pra casa? Esquece tudo isso que está acontecendo nesta cidade, os livros clandestinos, a falta de espaço, as demolições irregulares. Nos próximos dias a situação aqui vai ficar mais complicada e você não vai conseguir fazer nada pra melhorar as coisas. Cai fora enquanto ainda pode.
Eu e minha mulher…
O visitante estava cansado de esperar. O elevador havia parado dez andares abaixo e não saía daí. Fazia três minutos que nada mudava no painel acima da grade de segurança.
Estela girou o corpo e golpeou três vezes com a bengala a grade, ei, estamos aqui, vamos logo com isso.
O visitante acordou com os golpes, piscou nervosamente e pôs a mão no ombro da mulher, intrigado, o que é isso nas suas costas?
Nas minhas costas?
Acho que você encostou em tinta fresca.
Merda. Dá pra limpar?
Não, já secou.
Lá fora os rojões continuavam espocando. Mais fortes, mais violentos, mais assustadores. Se você tocasse de leve na parede do corredor você sentiria a vibração cada vez que o céu brilhava. A vibração que também abria pouco a pouco as microscópicas rachaduras do teto e das cornijas de gesso.
Estela estava prestes a dizer, teu paletó também tá manchado nas costas, quando o elevador finalmente chegou ao último andar e uma campainha tocou.
Mas através da grade de segurança Estela e o visitante não viram a cara cansada do velho Valfrido pronto para levá-los ao térreo. Atrás da grade de segurança Estela e o visitante viram seis caras pequenas, enrugadas no centro e peludas nas laterais, o pêlo negro circundando grandes orelhas de abano e um focinho arisco.
Que é isso?!, Estela estranhou.
O visitante olhou com bastante atenção, segurou na grade para ver melhor e arriscou, parecem, caramba, parecem… Parecem, não parecem?!
Chimpanzés?
É.
Todos os seis usavam macacão e boné pretos.
Todos os seis traziam às costas uma mochila de lona escura.
O primeiro chimpanzé abriu a grade de proteção. O segundo chimpanzé saltou sobre Estela, derrubando-a e imobilizando. O terceiro chimpanzé saltou sobre o visitante, derrubando-o e imobilizando.
Cordas, mordaças e vendas pularam para fora das mochilas.
O quarto, o quinto e o sexto chimpanzé estudaram rapidamente o corredor e sem perda de tempo foram na direção do observatório.
Em menos de um minuto Estela e o visitante estavam dentro do elevador, amarrados, amordaçados e vendados.
Os chimpanzés eram espertos e ágeis, não se distraíam com nada e trabalhavam em perfeita sincronia. O dono de qualquer circo ficaria de queixo caído se os visse em ação, perseguindo, capturando e imobilizando suas presas.
O visitante logo desmaiou, vítima do cansaço e da fraqueza. Ele não punha nada no estômago havia mais de dezesseis horas.
Estela não desmaiou.
Ela ouviu o rugido e sentiu quando o edifício todo tremeu violentamente. Ela ouviu e sentiu. Ela imediatamente refletiu sobre o rugido e o tremor e concluiu que eles não haviam sido provocados pelos fogos de artifício. Não mesmo.
Alguém havia disparado contra o prédio.
Se Estela não estivesse amarrada, ela certamente teria fugido pela escada de incêndio.
Se Estela não estivesse amordaçada, ela certamente teria gritado por socorro.
Se Estela não estivesse vendada, ela certamente teria visto os chimpanzés — agora dezenas deles chegavam, sempre em grupos de seis —, sim, ela teria visto os chimpanzés arrastarem as faxineiras e os visitantes do terraço para dentro dos outros elevadores que atendiam o centésimo segundo andar da Biblioteca Municipal Mário de Andrade.
Se Estela não estivesse amarrada, amordaçada e vendada, ela certamente teria descido pela escada de incêndio, o M das suas costas deixando um curto rastro fosforescente, é, ela teria descido pela escada, atravessado o saguão cheio de murais e afrescos e fugido para a avenida.
Se Estela não estivesse amarrada, amordaçada e vendada, ela certamente teria escapado da biblioteca e visto o combate, as pessoas em pânico, o cheiro de carne queimada, os corpos na calçada, o exército de chimpanzés, os soldados de camuflado, as bazucas, os canhões, as explosões, a fumaça vermelha, os flocos de fuligem oscilando no ar, os fogos de artifício que não eram fogos de artifícios, eram disparos enlouquecidos e aleatórios sacudindo a noite metropolitana, arrancando nacos dos edifícios, lançando para o alto cadernos e cadernos de livros em frangalhos.
Próximos capítulos
A invasão é consumada e finalmente o grande Mal passa a dominar também as cidades da superfície. A pergunta mais importante agora é: qual será a nova ordem mundial? Os meses passam e o bibliotecário, trabalhando doze horas por dia no setor de impressão, devagar vai se acostumando com o presente e esquecendo o passado. Aos poucos até mesmo a lembrança de Estela vai desaparecendo de sua memória. Muitos dizem que esse conveniente esquecimento é provocado por certa substância que os anões despejam na água dos prisioneiros.