Poemas de Rodrigo Garcia Lopes

Leia os poemas "A última viagem", "Google earth", "Mata Atlântica, manhã" e "Costa de dentro"
Rodrigo Garcia Lopes, autor de “Estúdio realidade”
01/06/2012

A última viagem

Pisou na praia
pela primeira vez
em séculos —
Gaivotas o vigiavam.
Olor de algas.
O vento salino, ardente e Sul.
Odisseu desceu
da balsa murmurando
alguma coisa para si
num dialeto quase extinto.
Arrumou os remos, poucos peixes,
sob a música de um alto-falante
contra um pôr de sol salmão.
Depois, viu as lâmpadas frouxas
piscando nas casas do povoado.
Maresia de maconha alcançou suas narinas.
Funk.
Risadas altas.
Nenhum pescador o reconheceu.
Penélope nunca existira.
Aquela não era sua lenda.
Ítaca nunca existira.
Odisseu virou-se para a praia sem história
e nada disse:
acendeu um cigarro e contemplou
o azul escuro absurdo do mar noturno
contra as linhas brancas incansáveis
da arrebentação.

Google earth

Essa dor é muito antiga.
Um Colosso de Rodes, visto de cima,
O Museu Britânico, o Taj Mahal,
O Pão de Açúcar, o Atacama, um parque em Lima.

Antes ela sabia de cor o Bhagavad-Gita,
A oração do meio-dia,
A Torá, o Necronomicon,
Os inscritos na tumba de Ikhnáton.

Na areia sofria um Graal.
Sentia o remorso do mar.

Parece com Quéfren, vista assim
de frente, e de lado com ninguém.
Ontem parecia mais antiga. Hoje, nem
mágoa: não se parece com nada.

Mata Atlântica, manhã

Muralha de floresta, ligada por lianas, parasitas.

Verde umidade.
Som de rio.

Uma trilha,
túnel de bambus, paisagem raiada e a luz

de outono coando, precisa,
em outro sonho, ilha, enigma.

O tempo: passado.
O tempo: futuro.
O agora conquistado

e perdido nas dobras do instante
como um beijo, uma partida
no vidro ávido dos olhos.

Costa de dentro

1.
Dama de branco
Onipotente e furiosa
Que inveja os morros mudos
E disputa as dunas úmidas

Com sua febre de tanto
Chova sobre o pântano
Banhe-me com seu pranto.

2.
Percute no tempo
O peso da água,

Sua voz
sangra

Um hálito noturno
Sereno sarraceno

3.
céu que bebe Saturno
labirinto instantâneo

a imagem se descasca
brilha no inverno de um olho

esfria no inferno da luz
dublê do horizonte

Rodrigo Garcia Lopes

Nasceu em Londrina (PR), em 1965. Poeta, romancista, tradutor, ensaísta, compositor e jornalista, estreou com Solarium (1994) e publicou, entre outros, O enigma das Ondas (Iluminuras, 2020) e Zona e outros poemas, de Guillaume Apollinaire (Penguin-Companhia, 2024). Em 2019, foi um dos vencedores do Prêmio Biblioteca Nacional (Categoria Ensaio Literário) por seu Roteiro literário —Paulo Leminski (Biblioteca Pública do Paraná, 2018). O romance O trovador (Record, 2014) foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2015.

Rascunho