Apresentação, seleção e tradução: André Caramuru Aubert
W. G. Sebald dizia que a literatura de língua alemã da qual ele mais gostava, e da qual se sentia herdeiro, era não aquela de Berlim ou dos grandes centros, mas a escrita “nas bordas”, seja na Bavária, na Áustria, na Tchecoslováquia ou na Suíça. Para exemplificar, ele listava nomes como Johan Peter Hebel, Gottfried Keller, Franz Kafka, Robert Musil, Thomas Bernhard e, com destaque, Robert Walser (1878-1956).
Walser, apesar de contar com um seleto grupo de admiradores, nunca conseguiu ter sucesso de público, e nem mesmo obter uma sobrevivência material minimamente digna a partir de seus livros. Suíço alemão de família de poucos recursos, Walser viveu a maior parte de sua vida no limite da pobreza absoluta (Sebald sugere que até os papéis e lápis que usava para escrever eram emprestados). Tímido, desajustado, ele manteve por toda a vida duas obsessões: caminhar e escrever. As caminhadas estão em toda a sua obra, e foi caminhando que ele morreu, na neve, numa noite de Natal, quando já estava havia mais de vinte e cinco anos internado num sanatório para doentes mentais (a suposta doença de Walser é assunto disputado, e alguns estudos recentes atribuíram a ele a síndrome de Asperger, com a qual a capacidade de interagir socialmente fica severamente prejudicada. Mas não é impossível que Walser tenha mesmo é se cansado, profundamente, da vida em sociedade).
Entre seus contemporâneos, a obra de Walser era admirada por gente do calibre de Kafka, Walter Benjamim, Hermann Hesse e Elias Canetti. Redescoberto alguns anos após sua morte, entrou para a lista dos favoritos de Susan Sontag, J. M. Coetzee, Peter Handke, Enrique Vila-Matas e, como vimos, W.G. Sebald. Walser é mais conhecido por seus contos e romances, dos quais apenas dois foram publicados no Brasil (O ajudante, trad.: Zé Pedro Antunes, São Paulo, Arx, 2003, e Jakob von Gunten – Um diário, trad.: Sergio Tellaroli, São Paulo, Companhia das Letras, 2011). Se a prosa de Robert Walser é relativamente pouco divulgada entre nós, em situação ainda pior está a sua obra poética. O que é lamentável, pois Walser era um poeta excepcional. Na realidade, como bem observou Christopher Middleton, um dos maiores responsáveis pelo “renascimento” de Walser: “hoje conhecido principalmente como o autor de uma prosa peculiar e ricamente construída, Robert Walser era essencialmente um poeta”. De fato, não seria exagero dizer que sua novela Der Spaziergang (A caminhada), assim como muitos de seus contos, são pura poesia. Mas há a obra poética propriamente dita, a qual, reunida, soma mais de nada desprezíveis quinhentas páginas.
Suspeito que Walser caminhava e escrevia poemas pelo mesmo motivo, o de buscar algum alívio ao peso de existir. Mas, tal qual operam os analgésicos para os doentes crônicos, o efeito devia ser limitado e temporário. J. M. Coetzee fecha o texto que escreveu sobre Walser para a New York Review of Books (publicado no Brasil em 2007 pela Companhia das letras, no volume Mecanismos internos – Ensaios sobre literatura), com a citação de um poema tardio de Walser que condensa admiravelmente quem ele foi e o que escreveu: Não desejaria a ninguém que fosse eu./ Só eu sou capaz de me suportar./ Saber tanto, ter visto tanto, e/ Não dizer nada, ou quase nada.
Unter grauem himmel
Unter grauem Himmel,
unter schwerem Himmel,
steht das weiße Häuschen.
In dem weiße Häuschen,
in dem kleinem Zimmer
sitze traurig ich.
Durch entlaubte Bäume,
durch vernäßte Bäume
sucht und sieht meun Auge,
findet arme Wiesen.
Wegen diesen Wiesen
wein’ ich bitterlich.
Sob um cinzento céu
Sob um cinzento céu
sob um pesado céu
há uma casinha branca.
Dentro da casinha branca,
dentro de sua pequena sala,
eu estou sentado, triste.
Através das árvores desfolhadas,
através das árvores molhadas,
meu olho procura, vê,
e descobre pobres campinas.
Em nome destas campinas
Eu choro amargamente.
…..
Drückendes light
Zwei Bäume stehen im Schnee,
der Himmel, müde des lichts,
zieht heim, und sonst ist nichts
als Schwermut in der Näh’.
Und hinter den Bäumen ragen
dunkle Häuser hinauf.
Jezt hört man etwas sagen,
jetzt bellen Hunde auf.
Nun erscheint der liebe, runde
Lampenmond in Haus.
Nun geht das Licht wieder aus,
als klaffte eine Wunde.
Wie klein ist hier das Leben
und wie groß das Nichts.
Der Himmel, müde des Lichts,
hat alles dem Schnee gegeben.
Die swei Bäume neigen
ihre Köpfe sich zu.
Wolken durchziehn die Ruh’
der Welt im Reigen.
Luz opressiva
Duas árvores se destacam na neve,
o céu, cansado de luz,
vai-se para casa, e nada além
da treva, se aproxima.
E atrás das árvores
casas escuras despontam.
Agora você escuta as vozes de alguém,
agora cães começam a latir.
E a querida, redonda lamparina
da lua, na casa aparece.
E desaparece novamente, a luz
qual uma ferida aberta.
Quão pequena é aqui a vida
e quão grande é o nada.
O céu, cansado da luz,
Tudo deu para a neve.
Duas árvores arqueiam
suas cabeças, uma para a outra.
Nuvens cruzam o silêncio
do mundo, numa dança circular.
…..
Bangen
Ich habe so lang gewartet auf süße
Töne und Grüße, nur einem Klang.
Nun ist bang; nicht Töne und Klingen,
Nur Nebel dringen im Überschwang.
Was Heimlich sang auf dunkler Lauer:
Versüße mir, Trauer, jetzt schweren Gang.
Medo
Eu esperei tanto tempo pela doçura
tons e saudações, um som apenas.
Agora eu tenho medo; nenhum som ou tom,
apenas a névoa baixando em abundância.
Não importa o que estivesse cantando e se escondendo no escuro:
Luto, adoce, agora, o meu pesado caminho.
…..
Wie die hügelchen lächelten
Hättest du die Bäumchen
stehn gesehn, mir war’s als ob
sie tänzelten, so lustig
gestikulierten sie, ein Wölkchen
sah in silberweißer Reinlichkeit
einen Delphin ähnlicht, hättest du
die vielen Hügelchen gelblich-grünlich
lächeln sehen können, schade,
daß du denEisenbahnzug nicht sahest,
der nun auf golden-schwarzer Schiene
gewichtig und zart, leise und gewaltig,
schwerfällig-schön und mühsam
und doch in herrlicher Leichtigkeit vorbeifuhr.
Unendlich bedauerlich finde ich,
daß du nicht auch sehen konntest,
wie die Fahrgäste aus den Wagenfenstern blickten.
Einer wie der andere schaute auf mich,
der im Gras lag,
die Stufen eines Stegleins zählte,
das einen Abhang hinauflief,
die Brücken mit Blicken
inspizeierte, und der an der Brust der Erde
glücklich war.
Ein Fabrikrohr
sich in die Höhe verlor,
ein Mädelchen in einiger Entefernung spazierte.
Ich meinte, ich müsse,
alles rings in solchem Glück,
in solcher Heiterkeit zu sehn,
feengleich vergehn,
bog den Kopf zurück:
O, war das schön!
Ziele gibt es viele, zu sein an einem Ziel,
dazu braucht’s nicht viel.
Como as colinas sorriam
Você deveria ter visto
as arvorezinhas, seus gestos
eram tão engraçados, parecia que
elas estavam dançando, na sua branco-prateada
limpeza, uma pequena nuvem
lembrava um golfinho, você
deveria ter visto as pequenas colinas
sorrindo amarelo-verde, é uma pena
que você não tenha visto o trem
passando sobre trilhos preto-dourados,
grave e calmo, sereno
e sólido, lindamente indolente
e pesado, ainda que maravilhosamente leve.
E é infinitamente imperdoável
que você também não possa ter visto os passageiros
olhando para fora das janelas.
Uns e outros fixaram os olhos em mim,
que estava deitado na relva,
contando os mourões de madeira
alinhados colina acima,
que olhava para as pontes,
e que estava feliz
no seio da terra.
A chaminé de uma fábrica
que se perdia nas alturas,
uma garotinha caminhava longe.
eu pensei, vendo aquilo tudo à minha volta
que naquela alegria, naquele regozijo,
eu deveria me desfazer como que por encanto
deitando a cabeça para trás:
Oh, quão belo era aquilo!
Existem tantos destinos,
Mas não se requer muito
para se estar em um deles.
…..
Der archivar
Es kam einmal ein Archivar zu dem
Entschlusse, sich zu sagen, er sei mude,
und weil ihn das Bewußstein nun durchdrang,
daß er den Lebensmut verloren habe,
sprach er zu sich: “Ich unglücksel’ger Knabe,
ich wanke.” Und das tat er in der Tat.
Von einer Ohnmacht wurde er ergriffen,
die Beine zitterten, die Las der Körpers
erchien ihm unerträglich schwer. Im Walde
sangen die sommerlichen Vogelkehlen;
das Jubilieren klang, als sei es glühend rot.
Ihm schien die Festigkeit komplett zu fehlen,
die Seel’ ihm nicht den kleinsten Halt mehr bot,
er lächelte ironisch und war tot.
O arquivista
Houve uma vez um arquivista, que
decidiu dizer a si mesmo estar cansado,
e ciente do incontestável fato
de que ele havia perdido seu amor pela vida,
falou consigo mesmo: “Que rapaz mais desgraçado,
estou cambaleando”. E foi isto de fato o que aconteceu.
Ele foi acometido de um desânimo mortal,
suas pernas estavam bambas, o peso de seu corpo
parecia insuportável. Na floresta
os pássaros de verão estavam cantando;
o regozijo deles soava incandescente, vermelho.
Sua força parecia ter-se ido completamente,
sua alma incapaz de oferecer a mais leve assistência,
ele sorriu de um jeito irônico e morreu.
…..
Beschaulicheit
Die Bücher waren alle schon geschrieben,
die Taten alle scheinbar schon getan.
Alles, was seine schönen Augen sahn,
Stammte aus früherer Bemühung her.
Die Häuser, Brücken und die Eisenbahn
hatten etwas durchaus Bemerkenswertes.
Er dachte an den stürmischen Laertes,
an Lohengrin und seinen sanften Schwan,
und üb’rall war das Hohe schon getan,
stammte aus längstvergangnen Zeiten.
Man sah ihn einsam über Felder reiten.
Das Leben lag am Ufer wie ein Kahn,
Der nicht mehr fähig ist zum Schaukeln, Gleiten.
Contemplação
Todos os livros já foram escritos,
as tarefas já foram todas elas, aparentemente, cumpridas.
Tudo aquilo que seus belos olhos viram
são originários de anteriores esforços.
As casas, as pontes e a linha do trem
tinham qualquer coisa de notável a respeito delas.
Ele pensou no impetuoso Laerte,
em Lohengrin e seu delicado cisne,
e em toda a parte a grande arte foi já
criada, em tempos há muito passados.
Você o viu cavalgar solitário através dos campos.
A vida repousa à margem de um rio, como um barco
não mais capaz de, à deriva, navegar.