Poema de Ricardo Lima

Leia poema sem título de Ricardo Lima
01/08/2009

I
acordar
com o silêncio do vento
que deitou neste galho

o filho chorou
mas já dorme

legumes bem regados
prometem

só o tordo
que grita no poema

desequilibra
o sol que nasce mudo

e lambe o cão
que baila a sombra

II
acordar
com o credo ocre do outono

com o pio de uns pinheiros, olhos
nas primeiras texturas da paisagem

ajustar olfato
e alfaiate

não querer mapa
guia, vinho ou ira

apenas pia
e água gelada no assovio

III
acordar
com os planos do piano na gaveta

a cilada sinfônica adiada pela chuva

o ódio dos insones
embebidos em pílulas e carneiros

acordar com a brasa
da memória na lareira

o sapo dos encontros
aprisionado no tapete

uma nuvem incerta
mil notícias tortas
voz
sem sede

IV
acordar
com o sono imenso das crianças

no sonho frio uma flor dilapidada

acordar com a calma
dos armários arrumados

abajures, juramentos
versos que não vestimos

rumores de vela
em vaso de alumínio
guardam os modos de calar

V
acordar
com o corpo pousado no pouco

pingo d’água na tábua da saga

o ponto do coro no canto do sobrado

acordar com os fantasmas
que provaram deste leite

VI
acordar
com neve e pena, branco de medo

corpo sem rio
nave pelo quarto

bruma e barulho
lição de cão e canto de canários afogados

acordar sem pavio
asa ou caravela

pálido
ter os lábios
impregnados de cinza

VII
acordar
com poucas palavras no paladar

iscas pra gastar
anzol sem apetite

acordar quase impuro

silêncio

espelho sem suicídio

VIII
acordar
com o frio da navalha afiada

na mala o alho de espantar males

palco nu ensurdece
como vazio de platéia

acordar como acorda o amor
sem saber o que se tece

IX
acordar
e um barbante de neblina
anel na montanha

com pilhas para filhos
louças muito bem vestidas

o dia tem azul e tempestades

pomar de manga
trilho de trem que sumiu no mato

e uma estrela
que nunca mais deu as cartas

X
acordar
prata de orvalho no pátio

grama curta, ferida de inseto no rosto
sem fala

no meio de pássaros
pesadelo

bruxo ou jardineiro
sombra de anjo

acordar
os cantos da sala com balde d’água

quintais
com goiabeira

XI
acordar
com o segredo preso entre os dedos

regular os motivos do relógio
agendar uns minutos pra ninguém

pular a poça de nuvens na sarjeta
matar todo tempo conquistado
com mosquitos

lavar pratos sem pressa

a família
acomoda a prece

Ricardo Lima
Nasceu em 1966, em Jardinópolis (SP). É jornalista e vive em Campinas (SP). Publicou Primeiro segundo (1994), Chave de ferrugem (1999), Cinza ensolarada (2003) e Impuro silêncio (Azougue, RJ, 2006). Os poemas aqui publicados integram o livro inédito Pétala de lamparina.
Ricardo Lima

Nasceu em 1966, em Jardinópolis (SP). É jornalista, publicou Primeiro segundo (1994), Chave de ferrugem (1999), Cinza ensolarada (2003) e Impuro silêncio (Azougue, RJ, 2006). Os poemas aqui publicados integram o livro inédito Pétala de lamparina.

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