I
acordar
com o silêncio do vento
que deitou neste galho
o filho chorou
mas já dorme
legumes bem regados
prometem
só o tordo
que grita no poema
desequilibra
o sol que nasce mudo
e lambe o cão
que baila a sombra
II
acordar
com o credo ocre do outono
com o pio de uns pinheiros, olhos
nas primeiras texturas da paisagem
ajustar olfato
e alfaiate
não querer mapa
guia, vinho ou ira
apenas pia
e água gelada no assovio
III
acordar
com os planos do piano na gaveta
a cilada sinfônica adiada pela chuva
o ódio dos insones
embebidos em pílulas e carneiros
acordar com a brasa
da memória na lareira
o sapo dos encontros
aprisionado no tapete
uma nuvem incerta
mil notícias tortas
voz
sem sede
IV
acordar
com o sono imenso das crianças
no sonho frio uma flor dilapidada
acordar com a calma
dos armários arrumados
abajures, juramentos
versos que não vestimos
rumores de vela
em vaso de alumínio
guardam os modos de calar
V
acordar
com o corpo pousado no pouco
pingo d’água na tábua da saga
o ponto do coro no canto do sobrado
acordar com os fantasmas
que provaram deste leite
VI
acordar
com neve e pena, branco de medo
corpo sem rio
nave pelo quarto
bruma e barulho
lição de cão e canto de canários afogados
acordar sem pavio
asa ou caravela
pálido
ter os lábios
impregnados de cinza
VII
acordar
com poucas palavras no paladar
iscas pra gastar
anzol sem apetite
acordar quase impuro
silêncio
espelho sem suicídio
VIII
acordar
com o frio da navalha afiada
na mala o alho de espantar males
palco nu ensurdece
como vazio de platéia
acordar como acorda o amor
sem saber o que se tece
IX
acordar
e um barbante de neblina
anel na montanha
com pilhas para filhos
louças muito bem vestidas
o dia tem azul e tempestades
pomar de manga
trilho de trem que sumiu no mato
e uma estrela
que nunca mais deu as cartas
X
acordar
prata de orvalho no pátio
grama curta, ferida de inseto no rosto
sem fala
no meio de pássaros
pesadelo
bruxo ou jardineiro
sombra de anjo
acordar
os cantos da sala com balde d’água
quintais
com goiabeira
XI
acordar
com o segredo preso entre os dedos
regular os motivos do relógio
agendar uns minutos pra ninguém
pular a poça de nuvens na sarjeta
matar todo tempo conquistado
com mosquitos
lavar pratos sem pressa
a família
acomoda a prece