Réquiem desesperado

Conto de Maurício de Almeida
01/10/2006

foi um passo e depois outro e quando dei o seguinte, tranquei a porta atrás de mim, não acendi a luz e pensei que jamais voltaria a ver a lâmpada ou qualquer filamento de mercúrio. e eu ainda pensava em outras coisas, no entanto só tive certeza de que não deveria me render ao interruptor ou ao impulso de abrir a janela. meus pés confusos na cegueira do chão escuro se atropelavam enquanto as mãos tateavam formas monolíticas até alcançarem uma convergência no quarto. agora me agacho no canto. agora escondo a cabeça entre os joelhos e com as mãos me seguro e me agüento, pois sei que preciso respirar e refrescar o corpo, preciso me esquecer daquele cachorro na sarjeta, imóvel e desfigurado, esquecer os pedaços de carne enfiados no asfalto e o sangue escorrendo em direção ao bueiro para se perder no esgoto. seria melhor que todas aquelas tripas tivessem sido engolidas pelas bocas-de-lobo, mas estavam espalhadas, aquele angu roxo amontoava-se numa poça disforme que um resto de focinho farejava incessantemente. e apesar desse monte grotesco me causar uma insuportável contração no estômago, eu não conseguia desviar o rosto, estava hipnotizado pelos olhos pálidos do cachorro que parecia rosnar e exibia os dentes de tártaro pendurados na gengiva ensangüentada: insisto em passar os dedos nos meus próprios dentes para ter certeza de que estão todos firmemente presos à boca, e aproveito para escorregar as costas da mão na testa. estou quente e molhado, arranco a roupa e assim, nu e suado, volto a me enfiar entre as pernas e a passar os dedos nos dentes, mas babo e dos lábios me escapa um fio de saliva que molha o queixo. o cachorro que manchava a faixa de pedestre também babava e por causa dele esfrego o corpo como se estivesse sujo com seu sangue espesso de piche, chacoalho a cabeça e mordo a língua, sinto os dentes moles daquele focinho me furando a nuca, me abrindo a jugular para depois me lamber infestado de uma raiva branca e espumosa. sei que preciso esquecer e me limpar o quanto posso, e ajoelhado no canto bagunço o cabelo, espalho o suor que me escorre pelo peito e se acumula no umbigo, espremo glândulas e caroços e dedilho meus pêlos num flamenco desesperado até me encontrar reto, aponto certeiro onde se encontram as paredes e me seguro, fecho os dedos ao redor de mim e babo, ele parecia uivar, tenho quase certeza de que uivava e por isso me seguro e me suo e me repito e uivo, mas me contenho. acho que havia algo por debaixo do tronco amassado cheio de pêlos: tenho eu também o corpo de pêlos e por sermos sangue do mesmo sangue, ossos dos mesmos ossos e pêlos dos mesmos pêlos, vivencio a morte dele como posso e uivo pendendo a cabeça, estico o pescoço e arreganho a boca mostrando os dentes enquanto me babo e me repito com força e com força me agarro e aponto e me imponho e com raiva contraio o regaço e desfaço em poça como a que untava o corpo trucidado: dou a extrema-unção num suspiro ou dois — e desabo.

Maurício de Almeida

É escritor, autor do romance Ela entre as páginas (inédito).

Rascunho