Renato Carlos Guilherme José Maria

Sempre suspeitei que existem outras pessoas dentro de mim
01/11/2001

“o velho que apenas rufla o tambor
encolhido na pele poderosa como se outrora tivesse contido
dois homens e um já estivesse morto”
R. M. Rilke

Sempre suspeitei que existem outras pessoas dentro de mim. Que minha pele, como num verso de Rilke, não abriga só um homem — o sujeito que sou; nem mesmo dois, como nos versos do poeta, mas três, quatro, na verdade cinco homens em um, como nessas promoções oferecidas nas lojas de eletrodomésticos. Foi uma descoberta desagradável mas, agora que me acostumei, já não posso dizer que continuo amedrontado. Sim, sinto algum incômodo nesse corpo no qual se abrigam cinco seres, embora com uma única cabeça e sem nenhuma vocação para a anormalidade; esse sujeito sereno que sou, de paletó e gravata, cabelos cortados ao estilo checo, bigodes laqueados, costeletas finas e ralas, olhos de cocker spaniel, esse escrivão que finalmente se põe a escrever algo de verdadeiro, não é tão simples quanto parece ser.

Meu pai me batizou de Renato, em homenagem ao doutor Renato Cordeiro, seu gastroenterologista, que o salvou de uma úlcera perfurada; mas depois, não satisfeito com a homenagem póstuma, pois o dr. Cordeiro acabava de falecer, acrescentou a esse nome outros quatro. Carlos em honra a seu confessor; Guilherme porque meu avô se chamava Guilherme e cantava músicas folclóricas para fazê-lo dormir, entre elas a Gabardina; José porque é o nome mais comum e sem significado que existe — e a verdade é que eu mesmo me sinto só um homem comum e sem conteúdos especiais; e Maria porque assim eu me teria chamado se, por acaso, tivesse nascido mulher, e nesse caso a mim já estava destinado o casamento com um primo distante, que hoje é boxeador. Felizmente nasci homem e assim pude escolher com quem me casar — ou seja, com ninguém. Um nome como esse que carrego já vale por uma família inteira.

Ao contrário do poema de Rilke, nenhum desses cinco sujeitos que sou está morto; acontece que eles estão não apenas bem vivos, como fazem questão de gritar impropérios uns para os outros, porque raramente se entendem. Um amigo literato diz que meu pai se inspirou em Pessoa, mas a verdade é que meu pai só lia jornais e relatórios da previdência, e jamais soube da existência do poeta português. Quanto a mim, não aceitei esse nome longo que recebi (pois podia ter ido a um cartório para mudá-lo), na esperança de obter nenhum tipo de efeito, ou de repercussão; mas só porque realmente descobri que, de fato, existem cinco sujeitos dentro de mim e, como já não sei qual deles sou, decidi que sou os cinco e assim vou vivendo. Os efeitos colaterais são perfeitamente suportáveis: um certo inchaço nos rostos e nas mãos, a barriga que não cede a nenhum regime alimentar, a sensação contínua de náusea, talvez uma ou outra mais que, de tão insignificantes, nem me ocorrem agora.

Mas eu falava de Pessoa que, com seus heterônimos, criou algo muito maior e mais poderoso do que fui capaz de criar, eu, um pobre diabo que na verdade nada criei, só aceitei um nome que aponta para o que me aflige, e já acho que isso é uma grande coisa. O mundo está repleto de pessoas (embora haja um só e grande Pessoa) que camuflam suas aflições, ou as tomam por prazeres e tentam a elas se adaptar, ou as ignoram como se, com o silêncio, elas pudessem ser anuladas. O mundo está cheio de pessoas que ignoram quem são. Não estou dizendo que eu sei que sou (acho que estou dizendo até o contrário pois, se declaro que sou cinco, é porque não sou ninguém e, se afirmo que não sou ninguém, é porque não sei quem sou). Nem quero me fazer de superior, pois ser cinco pessoas dentro de uma só é, todos devem admitir, algo bastante desconfortável, isso para dizer o mínimo. Para não falar do constrangimento, da sufocação e, sobretudo, da falta de intimidade que sinto, mesmo quando estou sozinho.

Está bem: digamos que, mesmo sem conhecê-lo, meu pai copiou Pessoa, o que em absoluto não é verdade, pois ninguém copia o que desconhece. Digamos, ainda assim, que foi realmente o que fez. Não, meus cinco seres não escrevem poemas, nem têm características discrepantes, ou viveram experiências dignas de nota. São só cinco sujeitos que, por azar, nasceram sob a mesma pele e, como guardam uma aparência absolutamente normal, não despertaram a curiosidade dos mórbidos, nem o interesse da medicina, apesar de terem deixado meu pobre pai perplexo. Talvez eu pudesse viver com tranqüilidade, sem jamais revelar esse pequeno detalhe de minha biografia, não fosse por uma razão: isso não é um pequeno detalhe. E o mais grave: como sou cinco, sinto-me de tal modo obeso de espírito, de tal modo sufocado e paralisado que talvez nem chegue a ter uma biografia. Minha vida se parece mais com uma conspiração, um desses episódios históricos cheios de personagens e de facadas.

Se digo que não se trata de um pequeno detalhe, bem, preciso antes admitir que até bem recentemente eu olhava as coisas assim, como uma bobagem. E só deixei de olhar quando, há poucas semanas, me apaixonei por Li. Minha namorada é chinesa, não fala uma só palavra do português e vive no bairro da Liberdade, trazida de Shangai pelos avós, depois que os pais faleceram num acidente de trem. Os avós de Li têm um pequeno restaurante, chinês naturalmente. Comunicam-se com a neta em chinês, naturalmente. Já tentaram lhe ensinar alguns rudimentos do português, tipo olá, bom dia, dê o fora, mas nada conseguiram. Li permanece impenetrável à língua portuguesa, e mesmo ao Brasil, já que raramente sai de casa, a não ser quando dá seus passeios matinais com Gong, o cachorro da família; e foi num desses passeios que eu a conheci. Que eu os conheci. Que nós nos conhecemos, já nem sei como dizer.

Que conhecemos, primeiro, Gong, já que o maldito cachorro me deu (ou nos deu, já não sei mais que pessoa devo conjugar mas, para não ser exibicionista ou para que não pensem que me vanglorio, vou permanecer na primeira pessoa do singular) o diabo do cachorro me deu uma dentada, e eu estava só me abaixando para amarrar o cadarço do sapato e ele, suspeitando que eu desejasse agredi-lo, ou perturbar a paz chinesa de sua dona, me abocanhou. Li fez um curativo rápido, com um lencinho de seda e um líquido sem cheiro que devia ser perfume. Quando agradeci, solenemente, como se faz com os avós e os monges, beijou-me a mão. Apaixonei-me por seus cabelos negros e ela, eu acho, se apaixonou por minhas unhas de violonista. Toco cavaquinho aos domingos, num bar do Lins, acho que ainda não disse. Mas as unhas não denunciam esse instrumento menor.

E foi quando decidi prosseguir em meu caso com Li, que os cinco sujeitos que vivem dentro de mim passaram realmente a me importunar. Acontece que cada um deles, sempre cheio de bons argumentos, me puxava para um lado, me dizia uma coisa e me levava a agir de uma maneira. Ora eu era Renato, ora Carlos, ora Guilherme, ora José, ora Maria, às vezes andavam em duplas, outras, formavam trios, em ocasiões especiais cheguei a ser um quarteto — dia em que Maria, o quinto enjeitado, ameaçou me deixar (e isso me assustou, embora eu não possa imaginar como poderia acontecer). Eles passaram a se desentender, a brigar entre si, viviam às turras. Tobias, meu irmão, diz que é apenas o amor que, quando chega, deixa suas vítimas; mas não posso acreditar numa explicação tão simplista. O amor não pode ser só esse exaltação, deve ser algo mais belo e mais grave. Além disso, Tobias não sabe que sou cinco em um — como nos aparelhos de som, nas cartelas de loteria e nos trituradores de legumes, que também servem como raladores, moedores e picadores de raízes. Por isso, tive que me afastar de Li — e aqui o mais correto é dizer: tivemos que nos afastar de Li, já que cada um de nós teve uma reação. Renato passou a odiá-la; Carlos negou que o desenlace tivesse acontecido; Guilherme preferiu se embriagar; José tratou de se concentrar na rotina de escrivão; e Maria, o mais direto, simplesmente se pôs a chorar.

De sorte que me tornei o sujeito agastado que sou, cheio de sentimentos contraditórios, de achaques indecifráveis e paradoxos. Assim fiquei, todo repartido, e por isso, mesmo quando tenho que assinar meu nome numa ficha do bingo, ou rubricar um documento no cartório, assino meu nome inteiro, Renato Carlos Guilherme José Maria. E, para ser sincero, ainda acho que eles não me pesam, que tenho poucos nomes, cinco nomes ainda insuficientes para toda a agitação que guardo dentro de mim.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho