O papel laminado joguei na cesta de lixo. É o sanduíche favorito dele. Ia levá-lo, mas decidi comê-lo. Pão francês com gergelim, queijo minas, salame italiano, fatias de tomate, não muito maduro, cortadas bem finas e uma leve camada de maionese. Estava na hora de sair.
Quando decidi que estaria a seu lado todos os dias, a partir daquele, minha mulher achou um exagero. Os melhores momentos são aos domingos, quando coloco o radinho de pilha entre a minha orelha e a dele e ouvimos juntos os jogos do Vasco. Entre goles de Jack Daniels, mania dele tomar whisky americano. Prefiro Chivas, mas trago Jack. É para ele, afinal.
Ficamos juntos até a noite cair. Quando a lua ilumina seu rosto, beijo-o e vou pro Picote. Lá tomo um ou outro chope, como duas ou três empadinhas e chego em casa pronto para tentar dormir. Minha mulher está sempre insuportável.
Há pouco tempo íamos juntos ao Maracanã. Dessa última vez não pude ir. Agora só ouvimos pelo rádio. Transmissão perfeita, nos transportamos para o gramado ao lado dos repórteres de campo. Esses caras de rádio sabem o que fazem. Os motoristas de táxi não sabem de porra nenhuma.
Essa camisa é dele. Essa e várias outras que uso diariamente. Ele que me deu. Me sinto mais jovem e mais próximo. Aos sábados antes de visitá-lo vou à praia. Só vou, tanto à praia quanto ficar com ele, sozinho. Preciso desses momentos puros e intensos reservados. Minha mulher não entende nada.
Sempre me emociono ao ver o mar, ele surfando aqueles metros de água e depois tomando cerveja na areia, comigo. Chegamos a trabalhar juntos por dois anos, mas não deu muito certo. A pressão era muito grande, o mercado vinha piorando. Serviu para ficarmos mais cúmplices, virarmos comparsas.
Na véspera, depois da praia, fomos ao Paladino, que é um bar pra lá de tradicional. Ele trocou o queijo minas pelo provolone. Com o salame de sempre. Eu não resisti e fiquei nas fritadas. Os ovos sempre me atraíram como alimento e como forma, é a coisa mais próxima da perfeição que já vi. Simetricamente perfeito e imperfeito, aliás, como tudo na vida. No dia seguinte tive o reencontro anual dos amigos da faculdade. Trigésimo aniversário de formatura. Estou ficando velho. Não devia ter ido. Esse ano, pela primeira vez, não fui. Nunca mais coloco os pés em Petrópolis. Universidade católica. Meu Deus agora sou eu. Inconsciente e ausente em todo lugar. Começando por estas linhas em que nada digo e apenas molho as folhas com as lágrimas do meu desespero. Não há o que contar.
Sem horizonte acessível. Existem milhares de falésias intransponíveis e tenho a certeza de que, se ultrapassá-las, encontrarei uma miragem. Tudo passou a ser ilusão. Levanto todas as manhãs sob coerção e minto a todo instante. Estou bem tranqüilo. Meu ovo não fica em pé.
Aquele ritual desnecessário não me sai da cabeça. De tão inútil, se tornou fundamental e nele mantenho, inconscientemente, todo meu pensamento, e é isso que me impossibilita qualquer coisa diferente. Nem sei que estado é esse. O que é sólido, palpável, o que é liquido e, angústia pura, o gasoso. Olhar através da terra, olhar por dentro do cimento.
A única vaidade que me permito é aparar o bigode. Nele deposito a espuma do chope que tomamos muitas vezes, que se transforma no líquido salgado do meu choro. Tem que estar impecável. Ele sempre gostou.
Há vinte e cinco anos o conheci. É muito tempo. Um quase nada que expira a todo instante. Uma régua quebrada bem antes da metade e que não sublinha mais nada porque tudo já está em negrito. É um copo de duzentos mililitros, um garotinho.
Essa dor que sinto, esse passarinho que bate suas asas aqui dentro da minha cabeça, essa ratazana que passeia pelo meu corpo deixando um rastro de sangue, que come meus órgãos. As mãos trêmulas que deixam o copo do seu Jack Daniels se espatifar aos meus pés e abrir novas feridas. As mesmas que não me permitem escrever estas frases em linha reta. Essa mente vacilante que não me mantém coerente. Quero fechar todas as portas e esperar a inundação. Não consigo tratar bem minha mulher que também te ama tanto, não consigo dividir o que me destrói. Fechar estes rasgos de memória que estouram a todo momento.
Vem dormir comigo toda noite que te espero chegar de madrugada, não importa, só não vem de táxi. Retrocede, fica de cama e não vai ao jogo. Não entra naquele carro amarelo, maldito, que no canal da avenida Maracanã despenca. Não vai morar nas ruas de cimento e imagens distorcidas. Sai antes de chegar ao São João Batista, esse lar terrível, você mora no Flamengo e não em Botafogo.
Vem, meu filho, ficar com seu pai e sua mãe. Vamos à praia, um botequim qualquer, no outro dia, o jogo, e depois, podíamos começar a ir à missa para agradecer. Mês que vem você faz vinte e seis.