Além de Régis, mais três operários cuidavam do recapeamento do asfalto de uma estrada nos confins de alhures, entre duas cidades de nomes estranhos até mesmo para seus habitantes. O sol desferia seus ataques pontuais e o trabalho avançava numa perfeita lentidão. Faltavam homens e equipamentos para que a obra fosse realizada num prazo minimamente razoável.
Dois dos cabras eram do norte do país. Já se conheciam anteriormente, de outros canteiros de obra talvez, e demonstravam franca hostilidade em relação ao magrelo que começara a trabalhar com eles na véspera, substituindo o velho que foi picado por uma cascavel-de-quatro-ventas no começo da semana. O magrelo vinha de algum lugar do sul. A distinção era visível na pele, quanto ao resto eram como crias do mesmo útero perverso da miséria. Quando falavam, davam timbres e entonações diferentes às palavras, mas na maior parte do tempo partilhavam o idioma comum do silêncio.
Ao começar sua vida de peão trecheiro, ou chefe de equipe, como tinham escrito na sua velha carteira de trabalho, Régis tinha tentado desenvolver uma relação cordial com seus mandados. Tratava-os pelos nomes ou apelidos e procurava mostrar-se solidário à sua sina. O ambiente em que trabalhavam já era demasiadamente agreste. O que restasse de humano sob aquelas condições podia e devia se manifestar, amenizando a má sorte. Eram profissionais da má sorte.
Mas depois de ajudar a pavimentar centenas de quilômetros de pistas pelo país adentro, Régis se transformara. Não queria mais contato algum com os operários, exceto aqueles necessários para o andamento da obra. Hoje, já nem seus nomes sabia mais.
Naquela manhã, o caminhão trouxera só a metade do betume que estava previsto. O restante fora provavelmente desviado por alguém na cadeia de abastecimento. Isso também não dizia respeito a Régis ou aos três empregados, embora acabasse afetando o já moroso plano de trabalho. Plano de trabalho que se resumia a espalhar regularmente sobre o chão o piche ainda quente, e depois aparar as bordas nos acostamentos. Em seguida, ia um peão para cada lado, com uma bandeirola laranja, e ficava alertando os veículos que se aproximavam, indicando o acostamento ou a outra mão da pista, conforme o caso, enquanto o outro peão prensava o chão com o rolo compressor. A função de Régis nisso tudo era alternar as funções de modo justo a cada hora.
Ao meio dia, como acontecia há três semanas, o sol os venceu e tiveram que se refugiar sob a tenda de lona armada ao lado da estrada. Como não havia sinalizadores eficientes, o almoço, aquela massa indistinta de frango, arroz e feijão, era comido por turno. Hoje, a falta de betume alteraria o plano de trabalho. Uma parte da tarde seria ociosa, até as quatro horas, quando o caminhão passaria para recolher homens e ferramentas.
Os dois do norte foram almoçar. Régis e o magrelo assumiram o posto de advertência aos veículos. O tráfego diminuíra muito por conta do estado lastimável do asfalto, ou do que restava dele. Os motoristas preferiam tomar um longo desvio de mais de setenta quilômetros a se arriscarem a quebrar naquela rodovia inútil, que ligava o nada a lugar algum. Ainda que o trabalho fosse concluído um dia, a obra era em vão. Os buracos eram mais rápidos do que os homens. Por outro lado, para eles, perdidos naquela paisagem desumana, isso era uma garantia de emprego para a vida toda. Ainda que esta não costumasse ser tão longa assim.
Ao sentar para almoçar com o magrelo, Régis observou o cara comendo com uma colher torta que ele guardava no bolso o tempo todo. Ao contrário dos do norte, ele não tinha uma faca na cintura. Apenas aquela colher retorcida e enferrujada, sua arma passiva contra a fome. Depois de engolir a paçoca fria, Régis acendeu um cigarro e sentiu algum conforto, uma nebulosa recordação de prazer. Estava pensando em deixar aquela obra e se mandar para outras bandas. Gostaria de cuidar de estradas em lugares mais arborizados, ou próximos do mar, mas até hoje só lhe tinham dado aquelas regiões ermas e inóspitas. O magrelo enrolou um cigarro com palha de milho e falou para Régis que os dois cabras do norte estavam a fim de acabar com ele. Sem esperar por uma reação, que de todo modo não viria, ele prosseguiu com sua história.
Na véspera, eles tinham se encontrado na casa da dona Lola, o puteiro mais próximo do acampamento e, sem saber de nada, o magrela fora para cama com uma mulher que costumava ser dividida entre os dois do norte. Depois disso, os cabras resolveram dar uma sova na quenga. O segurança da casa expulsou os dois e, ainda por cima, a puta agredida os desacatou, dizendo que bom de cama mesmo era ele, o gaúcho.
Régis tentou não dar importância àquele drama venéreo. Só não queria que o pau comesse perto dele. Que se virassem depois do expediente. Peão morto, peão novo, era um dos mandamentos malditos daquela vida. Mas apesar de o sol ter queimado quase todos seus miolos, quando o magrelo se calou, ele se deu conta de que sua presença ali era por ora a única garantia de vida para o cabra que vinha do sul.
Depois de descansar um pouco na sombra abafada da tenda, Régis resolveu adotar outro plano de trabalho. Dois tonéis vazios foram levados para as extremidades da obra na estrada e uma bandeirola fincada numa perfuração na tampa de cada um, ocupando assim o lugar dos homens na operação de advertência aos veículos.
Os quatro se deitaram à sombra e, acompanhando o movimento do sol, iam movendo seus corpos para cima de tempos em tempos. Acabaram dormindo e só acordaram quando algumas estrelas vespertinas surgiram no céu. O caminhão estava atrasado, ou os havia esquecido. Se de dia o tráfego já era escasso, à noite se tornava inexistente.
Os dois do norte se afastaram e o magrelo ficou desconfiado. Régis notou que ele fumava um cigarro atrás do outro e não parava de olhar para os lados. Talvez fosse só uma impressão, um efeito colateral da vertigem que o cansaço e o sol haviam deixado nas suas vistas, mas lhe pareceu que o cabra tremia as pernas.
Para matar o tempo, Régis perguntou a ele o que essa mulher tinha de especial para se tornar a razão do conflito entre eles. Nada, porra nenhuma, respondeu o peão. Só mais uma das meninas da casa de dona Lola. É graciosa, novinha, mas não tem nada de mais. Chamam a moça de polaquita.
A noite desceu por inteiro e Régis se levantou. Procurou enxergar por onde andavam os dois do norte, mas não os viu. Era improvável que tivessem retornado a pé para o acampamento. A distância de trinta quilômetros não animava muito. E para o outro lado não havia nada. Era melhor ficarem por ali, sossegados, famintos, esperando até o dia seguinte, quando fatalmente se lembrariam deles.
O magrelo do sul ajudou-o a remover os tonéis da estrada. O asfalto já estava seco. Ao voltar para a tenda, Régis olhou para trás e viu que o peão desaparecera dentro da noite. Caminhou até a outra extremidade do trecho recapeado da rodovia e lá tampouco viu sinal do cabra. Depois ele se deitou e acabou adormecendo outra vez, embalado pela fome e o ar fresco que começou a correr pela estrada.
Acordou cedo, com o sol parindo do horizonte. Ao seu lado, viu o peão do sul dormindo profundamente. Por um instante, achou que estava morto. Mas, num exame mais atento, percebeu que seu peito se enchia e esvaziava de ar normalmente. Os dois do norte, ele não tinha a menor idéia de onde estavam. Meia hora depois, surgiu o caminhão na estrada. O motorista não pediu desculpas porque não era homem de se desculpar por coisa alguma. Ele disse a Régis que o piche acabara e não adiantava eles ficarem ali. O jeito era voltar para o acampamento. O magrelo do sul acordou e subiu na caçamba. Antes de entrar na cabine, Régis lhe perguntou se tinha visto os dois do norte. Sem olhar nos seus olhos, ele respondeu que deviam ter voltado andando. O motorista falou então que não os vira no acampamento e tampouco na estrada, durante o percurso. Os dois olharam para o peão que tinha retirado sua colher do bolso, limpando-a com a borda da camisa, como se fosse uma relíquia, uma herança da família ou coisa parecida. Régis refez a pergunta, num tom mais veemente. O peão deu com os ombros e disse apenas que eles deviam ter seguido na direção errada.
Depois de tomar um café na cantina, Régis voltou para seu quarto no acampamento. Quando fechava a porta, viu o magrelo passando apressado lá fora, a mala sobre o ombro. Pelo resto do dia, ele ficou dormindo um sono suado e febril dentro do quarto. Quando a noite caiu, tomou uma ducha e foi até a casa de dona Lola conhecer a polaquita.