Recorda o aroma de cafés na sombra (final)

Outro passeio por Atenas entre buzinas e tráfego louco, filas de turistas suados para subir à Acrópole
01/07/2003

Se o visitante nunca houvesse saboreado as tardes vagabundas, matado as horas num bazar de Monastiraki — sem comprar nada — ou passeado entre os cheiros do mercado de peixes do Pireu (vendo as escamas perderem a cintilação da água), então não poderia compreender a cidade debaixo da outra, a metrópole exausta e a Atenas descansada, um tanto turca (que era ainda a das primeiras visitas de Sandro).

Até quando durou, e o que foi feito dos bairros ainda recolhidos sob a proteção das divindades pagãs transformadas em santos ortodoxos… é só uma questão de ponto de vista talvez prejudicado por uma ou outra confusão dos anos, errando-se as contas entre antes ou depois da ditadura dos coronéis — de quem ninguém guarda os nomes — apenas porque não foi você quem teve o amigo de infância enterrado numa cova de cabo Sunion.

“Atenas era uma cidade ainda fortemente marcada por meio milênio de dominação otomana — onde nenhum dos disfarces, patéticos, da arquitetura neo-clássica haviam logrado apagar o perfil oriental da cidade amada de Ghiorgos Katsimbalis (o literato gigante que dirigira a melhor revista ateniense de cultura dos anos 30/40: Ta nea grammata)”. Nela, foi publicado o célebre poema que prefigurava a derrocada das coisas delicadas, “as que não podem sobreviver” fora do silêncio de bordas de ouro e do sono preguiçoso embalado pela contagem preguiçosa das guirlandas de flores pintadas nos estuques de gesso daquele “Hotel do Suicida”, que — evidentemente — foi mudado para algum nome do gosto das novas agências de turismo da praça Eleutheria. (Em qual outra cidade teria alguém dado, a um hotel, o nome que corria nas histórias dos cafés?)

E Sandro não vira, digamos, sequer a Atenas de Miller… se tomarmos Il colosso di Marussi como uma coleção de bons instantâneos da preparação do fim “da beleza de mármore, dos colossos de carne”. Ele trouxera o livro, em 1955, “quando venni per la prima volta ad Atene, avevo in valigia il libro che Henry Miller scrisse sul suo viaggio in Grecia alla vigilia della guerra”. Justamente aquele provinciano cenário da coleção de fotos dos anos 30, comprada a um velho fotógrafo da rua Bucuresti, já quase sem clientes. (Era uma rua próxima do mercado de flores, uma quadra depois do hotel das guirlandas que não sobreviveram às escavadeiras.)

Aquela Grécia era a do tempo do general Metaxas, vendo-se a sua corte de ditador provinciano em toda a sua falta de glória — tutti in frac, i volti olivastri e baffuti, gli stomaci cosi prominenti che quasi facevano sfuggire lo sparato dal gilet… — numa terceira Atenas que não era a de Viola nem a minha: aquela do abandono ainda recente, da qual só me restou a imagem, de fundo, do moderno mercado de frutas sob o primeiro plano do braço de uma Afrodite soropositiva (o corpo nu que a gaze da cortina não esconde da proximidade — inacreditável — da morte).

O pobre Viola. Ele recorda um mundo de ontem — como eu o novo mundo da minha dor sem documento, mas “pessoal e intransferível”, na cidade já não sonolenta, mas vivaz de um modo morto (se é que me entendem), entre buzinas e tráfego louco, filas de turistas suados para subir à Acrópole (e, depois, mais suados ainda — como se deuses mortos suportassem ver gente tão fraca, admirando tão subservientemente uma construção condenada, que não devia estar mais ali, quando se olha para trás, com a esperança de apagar o passado). Quando ela ainda estava ali, quando as suas pernas coradas de sol andavam ao meu lado pelas ruas cheias de um poluição diferente (apesar de tudo) da poluição das cidades sem passado, eu lhe perguntava — na hora — o que ela haveria de recordar depois, e a sua resposta me encantou porque ela não disse que seria algum rosto de estátua grega carcomida, mas os quiosques de sorvetes italianos nas ruínas e rouxinóis espantados de ilha para ilha (mesmo as mais distantes estão para sempre perdidas do sono protegido antigamente das ondas e das cismas).

Afinal, ela havia desaparecido da vista descortinada da janela acima do que fora um pequeno mosteiro. Outros olhares, talvez pesados daquela apreciação oriental, sem pressa, quem sabe estariam a acompanhar suas pernas nas curtas bermudas terminadas em fiapos sobre os pêlos dourados da coxa que se marcava tão facilmente do braço de uma cadeira, de uma amurada guarnecida de ferro, onde estivesse sentada no mirador sobre o meio-dia de alguma cidade se preparando para encher os restaurantes do centro, à volta de uma praça de pardais e pombos recebendo comida de graça dos que fazem hora para partir nos ônibus de turismo. Havia um terminal deles, duas quadras depois do ponto táxis-lotações que seguiam abarrotados Glifada, alguns homens forçando contra o corpo das jovens apertadas nos táxis coletivos lucrando à base do desconforto dos passageiros ansiosos que demoravam a entender sobre os táxis de Atenas: mesmo ocupados, eles poderiam parar para pegar mais gente. De modo que eles andavam quase sempre lotados de turistas e gregos largados cada um no seu destino, pagando-se a corrida da forma negociada que só podia se dar na Grécia, todo mundo se entendendo daquela maneira menos amigável do que nos dias em que os táxis, poucos, eram um luxo rodando em silêncio.

Ela iria para o Pireu? E, quando retornasse de Atenas para Milão, iria escrever em papéis de carta decorado (ainda os guardava) da menina, da adolescente que havia muito deixara de ser? Podia vê-la como abaixo, na calçada cheia de luz, a tentar escrever desde o fundo atapetado de um quarto que o frio e a cinza tornavam ainda mais afastado do sol grego e do maiô esquecido na antiga zona de praia do porto antigo, o “Pireu de Melina”…

O turismo e as fáceis imagens do cinema haviam feito expandir a Atenas de Glifada e dos grandes armadores das linhas de cruzeiros anunciados como INESQUECÍVEIS em inglês, nas agências de viagens inundadas de apelos por evasão, outra vida, música de fundo, luxo, águas muito azuis ao fundo de deques onde casais servidos por garçons invisíveis pareciam sempre jovens e esportivos. “Qual o seu sonho de consumo?” Meu sonho de consumo é um passeio pelas ilhas gregas, em fila ordeira, bebericando em deques limpos para ver surgir a massa cinzenta de Santorini, o confuso porto de Creta e a fortaleza de Rhodes das águas do Egeu ora turquesa, ora azul cobalto (acima de Kusädasi, rumo à pequena Patmos branco-cinzenta). Meu sonho é navegar nos navios brancos e ancorar com eles nos cais de postal de Mykonos e outros destinos de revistas de bordo cheias dos sorrisos de artistas medíocres que antes eram donas de casa na América. Um dia, partiram para a Grécia a fim de entrar numa espécie de filme americano de segunda, na terceira classe econômica das tarifas da alta estação dos visitantes atraídos para os lugares que haviam virado imagens kodachrome e postais encurvados ao sol de Micenas, o carimbo de correio garantindo ter o remetente visitado as tumbas dos reis dourados, a máscara de Agamenon — que nunca foi dele —, a Pompéia subterrânea de Akrothiri, os terraços brancos, os bares de pratos monotonamente quebrados ao som dos hits “folclóricos” de Theodorakis, martelados para dentro dos jatos, antes da aterrissagem. (A esta altura, você já terá visto o filmezinho de bordo que seguirá sendo a sua mais persistente imagem de uma Grécia holográfica.)

Antes disso, os gregos viviam as suas vidas no continente, nas ilhas, lendo a sua história “como o guarda noturno as horas das chuvas”.

Atene era una provincia intatta da qualsiasi modernita. Come nella mia citta natale, la gente trascorreva buona parte delle giornate seduta nei caffe…

Os menores — os cafés menos “turísticos” —, os que viram que Giuliana queria partir, depois de subir o elevador de porta de sanfona do hotel que já não existe na cidade das mínimas gentilezas que Sandro relembra entre as flores que não são novas no jarro modesto ao pé da mesma cama que outro ocupa sob a lua indecisa e mudada numa nova maneira impossível de não fazer a “ninfa” temer a vida (assim como temer “não a viver”), quando se encontrava de visita ao monastério ou ainda sentada, em Turim, no quarto do pornógrafo que a teve como modelo para gravuras do rasgo da bunda, do começo infantil e delicado da anca sob o vestido azul de bolas comprado numa feira popular de Milão, entre guindastes de obras e as paredes sujas de grafitos de hoje.

Eles e tudo o mais são sem sentido para mim — tanto como para quem tenha vivido aqui, antes das hordas de visitantes estúpidos, e que apenas conferem a Atenas dos folhetos, desde as janelas dos ônibus gelados que estacionam nos bares temáticos de Zorba, entre anúncios de Marlboro e de cartões Visa das moças à espera de vagas nos albergues da juventude, agachadas com mochilas, sob as marquises de cinemas cujos filmes são de Rambo, como em Pequim ou no Recife.

Ela não escreveu.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho