A Fanciulla, a “Arminda brasiliana” — sem o H de Hébria, a lupona — rezo por todas, penso na chuva tornando mais fina a agulha das horas passando para elas, as lobas das Termas. Não se pense em imagens polaroid de gordas anitonas populares sob fontanas de Fellini. Não é tão óbvio quando vem a lembrança de mais longe e de mais perto, se me entendem. Ou do passado pagão das virgens descalças a descansar sobre a erva e das moças tão diferentes daquelas lobas nervosas (com razão: numa noite “micha” entre as antigas portas de fora, qual foi a que voltou com marcas de mordidas e sem a bolsa? Lembro, agora: foi a Fanciulla, judiada pelos comissários de plantão, ao tentar prestar queixa na polícia; ao sair da chefatura, ela atirou os sapatos nos carabinieri, voltou descalça para casa e nunca mais foi vista nas proximidades das Termas).
Faz tanto tempo, que eu confundo os jardins cantantes, onde não havia nenhuma música, mas a água arrulhava (nada de celestial, vindo das alturas, apenas água para lavar o sexo e as mãos) como os pássaros de cântico de alabastro do poema que escrevi para Giovanna, a etrusca:
Efígies-fúnebres
Reclinados homens
e mulheres mudas:
aos pares da tumba.
Nobres-vultos
Um cotovelo descansando
o tronco meio erguido:
elegantes na campa.
Ausentes-duplos
Sós como um sorriso
permanece na sombra:
numa dobra de púrpura.
Duros-etruscos
Lembrados sem saudade
de esquecidos júbilos:
aves de alabastrino.
Sombrios
de dúbio, vos saudamos,
Úmbrios.
Giovanna retinha um instante da fuga: o vestido leve da mãe, molhado do repuxo, as pernas ainda de moça, o opaco joelho parecendo de mármore entre os limões maduros.
O amor nas estradas, a nebulosa cor da blusa ganha nas cinzas de Cassino, pela longa linhagem começada por um estupro.
Talvez fossem lembranças ao mesmo tempo confusas e comuns, mas, o que importa? Eu sabia da diferença dos anos, dos carros diferentes e das cores outras, mudadas em tudo: onde havia a cor das fardas americanas — na guerra que desonrou tantas boas famílias de Roma — agora se espalhava gente de toda parte, procurando o mesmo alívio do sexo nos banhos em ruínas de Caracalla, nos velhos motéis “imperiais” de gerânios que estavam transformados em aquários azulados com minipiscinas sujas no fundo da cultura de herpes. Na época da mãe de Giovanna, os automóveis todos eram da América (com a estátua de sovaco ardido de fuligem), a poesia era boa e os banhos não eram interditos para se trepar como no templo de Juno — que era ainda honrada (e até mais do que os santos católicos que hoje não são honrados de maneira nenhuma).
Penso nas imagens dormindo nas criptas de Volterra. A cidade era dura como a Pompéia vulcânica, de vinhedos adubados pelos depósitos de lava, desde tempos imemoriais. Volterra não estava perdoada nem havia virado atração vulgar do turismo. Para obter melhores grãos, maiores uvas e barrigas-de-menino, as mulheres que preferiam parir homens prestavam honras aos velhos cultos femininos. A mesma coisa encontrada na noite de Herculano, debaixo da Prefeitura, o caminho dos ex-votos partidos entre as armas guardadas longe da polícia fascista (entre 1943 e 1944).
Perto da Libertação — contava a mãe de Giovanna — os padres partigiani haviam se refugiado nos lupanares revistados pelos “camisas negras” de bundas brancas de medo dos boches de cacetes vermelhos de “cachorros engatados no escuro”.
Moedas entre os dormentes, estrangeiros comprando meninas (foi o caso de Giovanna, vendida em Satura). Gêmeas valiam mais, a trepada a três dava uma ilusão de espelho, no fundo mais fundo da cidade de linfas obscuras, correndo ainda nos velhos aquedutos do sangue. Só depois houve o assédio das novas prostitutas nas lambretas vermelhas, debaixo da lua rolando como uma grande moeda acima dos muros, filtra essa sombra que saiu de trás do armário da juventude. Arminda, sem H? A “Lupona”? Fanciulla? Giovanna…
Na confusão borrada, a memória dilata lembranças de 35 anos da água rolando até a fonte que parece mais quente à distância, sobre corpos cujos perfumes se suavizaram com o tempo que sempre torna mais delicados os rostos projetados na parede cheia de manchas. Uma delas é a da mulher que enxuga o pé numa toalha — na mesma posição da ninfa dos mármores clássicos (uma “loba” da antiguidade?) — na madrugada de cegueira parcial numa noite de neblina, na fumaça dos cigarros, tudo brilhando como a pele de puma do dia que demorava a nascer e, então, vinha brilhando como, em Volterra, às vezes brilhavam luzes nos túmulos. Não eram fantasmas: eram os pobres, sempre longe de tudo.
Também estou longe.
A campa de Giovanna — ela foi chutada demais, nas costas, em 1975 —, sua lápide borrada dez anos depois, entre as campas mais novas, permanecerá riscada do que eu risquei?
Foi em 1985. Ao entrar no cemitério da periferia, fixei o absurdo de um absorvente usado, abandonado sobre o musgo (e pensei no templo mais antigo de Volterra, aquele com as marcas de pés pequenos, melados com o sangue fresco da primeira menstruação das virgens). É indelicado, ainda, olhar para os “carimbos” da parte oculta do templo, e achei melhor, dois mil anos depois, deixar aquilo ali, tentar rezar sem olhar para um modess. E escrevi na lápide, com o lápis de cera que sujou o bolso esquerdo, o do punho cerrado:
É O INFERNO O CÉU QUE NINGUÉM CONHECEU.