Sempre fui um cara normal. Meus amigos e familiares brincavam dizendo que de tão normal eu já tinha virado anormal. Minha vida era regida por regras bastante claras que não deixavam que eu desviasse um centímetro sequer da rotina que criei. Morava com minha mãe e freqüentemente recebíamos a visita de umas tias, que faziam companhia para ela. Jogavam bingo e comiam bolinho de chuva quase todos os dias. Às vezes o bolinho era trocado por um bolo de cenoura ou coisa do gênero, mas era raro.
Por conta disso, desse meu estilo de vida modorrento, o pessoal do escritório vivia pegando no meu pé. Achavam que eu era caxias e que devia extrapolar um pouco. Dessa forma eu recebia muitos conselhos. Eram orientações de toda espécie. Em geral não dava muita bola aos comentários. Mas um eu levei a sério. A coisa começou sem pretensão. Um dos meus amigos mais próximos sugeriu, em uma conversa despretensiosa, que eu começasse a ler nas horas vagas. Ricardo era professor de português e uma pessoa bastante centrada nas atividades que fazia. No começo eu não dei muita atenção ao que ele falou. Mas a forma com que me sugeriu a literatura foi tão despretensiosa que fiquei pensando naquilo até que resolvi fazer minha ficha de usuário na biblioteca pública.
A partir daí eu comecei, aos poucos, a pegar gosto pelos livros. Toda semana Ricardo me passava uma lista com três títulos para eu escolher. Elegia um e ia atrás para ver como era. Meu ritmo de leitura, assim como tudo o que eu fazia, era intenso. Às vezes chegava a ler três livros na semana, o que deixava meu amigo assustado.
Certo dia Ricardo propôs a leitura de um livro que a princípio, confesso, não me empolgou muito. Porém logo no começo da narrativa a história me pegou. Até a leitura daquele livro, a literatura tinha sido apenas um passatempo para mim, nada mais que isso. Lia os livros e os devolvia como se aquilo fosse só mais uma tarefa que deveria executar com precisão. Mas a história do jovem Raskólnikov bateu em meu peito como uma bigorna. Logo nas primeiras linhas do romance, percebi que as palavras escritas por Dostoiévski, o autor do livro, mexiam comigo.
Fiquei completamente fascinado pelo relato que descrevia o ambiente de extrema pobreza e miséria em que vivia o jovem estudante russo. À medida que a narrativa esmiuçava o sofrimento de Raskólnikov, mais eu me empolgava. Virar a página — e portanto se aproximar cada vez mais do fim do livro — era um gesto que causava tanta angústia quanto ler sobre a tortura psicológica pela qual o anti-herói do romance foi acometido após matar a velha usurária que o extorquia. A identificação com o personagem principal foi imediata. Assim como Raskólnikov, eu me via acuado por meu estilo de vida, que me fazia, de um jeito ou de outro, um outsider, ainda que não fosse minha intenção.
A partir dali Crime e castigo passou a andar comigo aonde quer que eu fosse. Os personagens do livro me perseguiam e a história colou em minha cabeça. A teoria dos homens “ordinários” e “extraordinários”, formulada pelo estudante, para mim se encaixava perfeitamente no mundo em que vivia. Olhava para uma pessoa e imediatamente a classificava de “ordinária” ou “extraordinária”. Tentava achar nas pessoas algo diferente, mas todas me pareciam “ordinárias”. Não conseguia mais ver em ninguém nenhum tipo de qualidade ou algo do gênero. Para mim, todos, sem exceção, tinham escolhido o caminho da mediocridade e da resignação. Olhava para meus pares no emprego e via em cada um deles a figura do inquisidor, que na primeira oportunidade tenta te derrubar.
Quando saía à rua não conseguia andar sossegado sem achar que estava sendo seguido. Minha cabeça girava e meu pensamento parecia estar programado para pensar apenas na velha que Raskólnikov matara a machadadas. No ponto de ônibus olhava para as velhinhas e via em seus rostos a malvadeza e a avareza de Aliena Ivanóvna. Tentava me manter longe da história, mas não conseguia.
Durante o dia me concentrava nas tarefas do escritório, mas só via as linhas escritas em Crime e castigo. Fazia um grande esforço para desvencilhar a história do livro de minha rotina. Ficava pensando no que poderia acontecer ao final do livro com Raskólnikov. Em cada colega de trabalho eu via o rosto de um personagem. Meu chefe, é claro, era o temido Porfiry Petrovich, que aterroriza psicologicamente o jovem Raskólnikov. Olhava para o Freitas, meu superior, e podia ver em suas atitudes os atos torturantes lançados sobre o protagonista do livro. Parece que podia ver com mais clareza o que acontecia a minha volta. Não precisava de muito tempo para reconhecer os sentimentos de uma pessoa. Era como se o livro estivesse, aos poucos, abrindo minha mente.
Assim como para meu herói Raskólnikov, as horas demoravam a passar para mim. O relógio não andava e, às vezes, tinha mesmo a impressão de que o tempo regredia em certos momentos. Olhava para o relógio e os ponteiros teimavam em bater sempre no mesmo lugar. Esperava com angústia e sofrimento o fim do expediente. Mas parecia que nunca chegava. Alguns amigos logo perceberam minha agonia. Para eles eu parecia um ser mais estranho ainda do que sempre fui.
Mesmo sabendo que estava tomado de torpor pela história de Dostoiévski, conseguia visualizar com perfeição minha vida. Mesmo que as pessoas vissem em mim algo diferente e mais intenso que minha calma e desatenção características. Talvez porque chegava com pressa em casa e com afinco me embrenhava na leitura do livro. Começava a ler e, diferentemente do que acontecia no escritório, os ponteiros do relógio disparavam a cada frase, a cada página que ficava para trás. De vez em quando eu dava uma pausa. Mas na verdade não sabia se era pausa. Eu olhava para a parede de meu quarto e podia visualizar a história ali. A narrativa continuava, era nítida. Eu podia ver os personagens se deslocando pelas ruas cinzentas de São Petersburgo; via Raskólnikov rolando de fome e desespero em sua cama suja; podia ver a miséria da família do protagonista e, principalmente, a face desfigurada da velha Aliena Ivanóvna. Via com nitidez o rosto velhaco da mulher morta por Raskólnikov; o sangue percorrendo o corpo da velha. Um sangue grosso e fétido que não parava de escorrer. Minha parede estava manchada de sangue, o sangue da velha morta. Eu olhava e não acreditava no que via, mas era real, o líquido vermelho estava ali derramado. Meu quarto tinha se transformado em um mar vermelho. Eu não acreditava, mas era verdade, estava tudo a minha frente. Até meus pés começaram a ficar sujos com o sangue que não parava de jorrar, cobrindo o meu corpo. Eu queria sair dali mas não conseguia, o sangue da velha grudava e não me deixava locomover. Não dava para sair. Era impossível lutar contra aquilo. Minha garganta foi sendo submersa até que comecei a engolir o líquido de Ivanóvna. Em desespero eu gritava, queria sair a todo custo e não conseguia. Eu gritava com a boca vermelha, mas nem mesmo os braços eu conseguia mexer. Não tinha jeito, era o fim que se aproximava. Os feixes de luz foram diminuindo, diminuindo e diminuindo.
Acordei empapado de suor. Estava cansado e com o corpo doendo. O livro estava aberto, caído no chão. Olhei para meu quarto e estava exatamente com sempre esteve, sem vestígio de sangue ou algo parecido. Toquei na parede para ver se era mesmo real. Nada de sangue. Fui ao banheiro e lavei o rosto. Sentia uma tontura e percebi que minha visão estava afetada. Caminhei com dificuldade até a cozinha e vi minha mãe e minha tia tomando café. Olhava com dificuldade as duas comendo e dando risada. Não dava para ver muito bem quem era quem ali. As duas riam com vontade e enchiam a boca com bolinho. Fiquei parado um tempo observando a conversa. Elas me olhavam com indiferença. Minha mãe cortava o pão enquanto minha tia enfiava bolo e café na boca. Olhei com mais atenção para minha tia e pude ver o rosto de Aliena Ivanóvna. Era ela, não tinha dúvida. Cheguei mais perto para ouvir sua voz que saía baixa e rouca. Seu sorriso amarelo e hálito horroroso me causaram náuseas. Levantei sem que elas notassem e fui até o armário. Não conseguia ouvir mais a voz estridente da velha. Aquilo me fazia mal e comecei a ter ânsias. Estava quase vomitando quando consegui abrir a gaveta do armário e pegar uma faca. Fiquei alguns segundos parado de costas para as duas. A velha falava e falava. A cada palavra dela sentia a fúria subindo por meu corpo. Eu tinha que descarregar, não agüentava mais. Virei de chofre e com um golpe certeiro atingi a nuca da velha. Imediatamente o sangue, exatamente como na noite passada, começou a jorrar. Minhas mãos rapidamente estavam empapadas de sangue. Fechei os olhos e desferi mais alguns golpes. Não vi nem senti mais nada. Só lembro de ter escutado a velha dizer: me pague o que deve.