Rabo da besta

Conto de Joaquim Nogueira
01/05/2004

De manhã, o homem liga o computador e entra na internet. Depois de ler as mensagens, passa a um site chamado pagina20, que nada mais é que um dos jornais de Rio Branco, Acre. As notícias são mais ou menos corriqueiras. Assalto na rodoviária, a prefeitura programando asfaltamento de rua, visita do presidente da república.

Uma notícia chama a sua atenção. Houvera um crime brabo na periferia, um casal de idosos fora espancado até a morte, de modo que a secretaria da segurança designara dois delegados para a investigação. Um deles se chama Ariosto Miguéis Filho.

Na década de 50, o homem e sua família moravam em Rio Branco. A cidade é cortada pelo rio Acre, que a separa em duas partes distintas. O primeiro e o segundo distritos. No primeiro, ficam a prefeitura, os bancos, os correios e os hospitais, o palácio do governo. Por isso é o lado nobre. No segundo não ficava nada, naquele tempo. Apenas as ruas largas, de terra, margeadas de mangueiras, as pequenas fazendas. E uma igreja alta e branca diante da qual nos meses de maio se faziam as quermesses.

Ele morava na periferia do segundo distrito, um bairro pobre e meigo chamado Rabo da Besta. O motivo do nome, ele nunca soube. Não era menino de ficar perguntando a razão dos nomes. Pouco depois da casa deles ficava a casa dos Miguéis. O chefe da família, viúvo, seu… Como era mesmo que se chamava? Bem, não vem ao caso. O filho mais velho era o Ariosto, o mais novo José Pires, as duas filhas do meio eram a Miracélia — ou Miraselva? — e a Terezinha.

José Pires, que tinha a idade regulando com a dele, era seu amigo do peito. Estudavam juntos no ginásio, no saudoso Colégio Acreano, saíam para as retretas e o footing na Praça Municipal, davam em cima das minas — que na época ainda não se chamavam minas, naturalmente. Coisa aqui do sul. Juntos fumaram os primeiros cigarros (cigarros mesmo, ninguém transava maconha naquele tempo), atravessavam o rio a nado — na estiagem, claro, pois no tempo das chuvas ninguém era besta de meter os peitos — juntos entornaram os primeiros copos de cinzano e cerveja.

Ariosto era então um homem. Com hábitos de homem e liberdade de homem. Jogava sinuca até altas horas, a dinheiro, tinha amantes, freqüentava a zona, voltava para casa de madrugada e ninguém tinha nada com isso.

Três vezes por semana o garoto comparecia ao campo do Rio Branco Futebol Clube. Naquela época fazer educação física era obrigatório. As “aulas” de ginástica eram disciplina e, como tal, contavam pontos, quem tomava bomba em educação física ficava de segunda época no ginásio. Havia um problema. O Rio Branco situava-se no primeiro distrito, na parte alta, longe, de modo que ele tinha de sair de casa bem cedo, andar até o porto, tomar uma catraia, saltar do ouro lado e caminhar até o estádio.

Como sua família era muito pobre, não tinham relógio em casa. Uma manhã ele acordou sentindo que o dia estava claro. Imaginando que poderia tomar falta na ginástica, vestiu-se depressa, engoliu um café ralo e botou o pé na estrada. Era verão. A areia da rua estava branca como neve. Ele sentia os tênis — tênis de pano, frágeis, pobrezinhos — e as mangueiras estavam quietas e silenciosas como nunca tinham estado. Ele caminhava para o porto.

Foi então que deparou com Ariosto, vindo pela mesma rua em sentido contrário. Ei, rapaz, perguntou ele, aonde pensa que vai? Ele explicou que ia para o campo do Rio Branco, pois naquele dia tinha ginástica. Ariosto riu. Rapaz, você tá enganado. Isso não é hora de ginástica. É de madrugada. Volte pra sua casa. O garoto ainda deu alguns passos para frente, pensando nas palavras do irmão mais velho do seu amigo. Até que se deu conta de que não havia mais ninguém na rua e todas as casas estavam fechadas, nas calçadas não tinha vendedor de açaí nem cupuaçu. Era mesmo. Estava de noite. A claridade que o envolvia era luar.

Fecha o computador, apanha roupa de trabalho no armário e vai para o banheiro. Ainda pensa em Ariosto. Um dia talvez volte a encontrá-lo. Talvez possam falar de bebedeiras e brigas de rua, zonas, jogos de sinuca e futebol, quem sabe Ariosto conte o que aconteceu com José Pires, Terezinha e Miraselva — ou seria Miracélia? É possível que o homem pergunte a ele se se lembra daquela madrugada no Rabo da Besta em que o luar era tão claro que parecia dia.

Joaquim Nogueira
Rascunho