Queixume

Conto de Francisco Pipio
Francisco Pipio, autor de “Modo de falar às coisas”
01/06/2008

“Mulher aqui só entra uma, que sou eu”, Marta foi dizendo embrabecida entrando no barraco que eu fiz de um amontoado de madeira, folhas de zinco e papelão.

“Que danado de tanto queixume é esse mulher?”, eu disse, esparramado no sofá velho azul-marinho.

Não entendi o amofinamento dela.

Empacada no meio da sala, tapando um dos olhos com o dorso da mão esquerda pra se livrar do sol que lhe empanava a vista entrando pelas gretas das ripas da janela, ela me olhou quieta.

Atocaiado no meu espanto, fiz-me de desentendido.

Perguntei-lhe pelo de-comer:

“Trouxe alguma coisa da rua pra gente adular o estômago?”

Ela franziu a sobrancelha num gesto enfadonho. Não respondeu. Andou de um lado pro outro, sem parança, pelos dois cômodos do barraco.

Resmungou. Deixou escapulir a frase que soltou quando entrou, em compasso com o dedo martelado em minha direção:

“Mulher aqui só entra uma, que sou eu!”

De novo, não entendi nada e me pus a olhar pela porta entreaberta a privilegiada vista de um riacho que passava ao largo da cidade.

Um silêncio pouco comum tomou conta de nós. Quebrado de repente pelo filho da vizinha com seu carro de mão e a voz de taquara rachada querendo comprar garrafas vazias de aguardente.

Moleque ladino. Teima em ser jogador de futebol. O danado até que tem talento. Mas não pra bola. Sem um fio de cabelo na cara e já toma pinga. Deve ser revolta.

Marta não deu importância pro moleque. Ele saiu desconfiado aceitando o seu calado como resposta.

Ela arrodeou o sofá. Fez o sinal-da-cruz diante de mim que continuava deitado com a cabeça enterrada nas almofadas feitas de retalhos de pano.

Praguejou.

Lembrou-se do retrato do Senhor morto na parede de um dos cômodos. Olhou-o. Outro sinal-da-cruz. Agora de arrependimento.

Caminhou desacorçoada até a porta dos fundos do barraco. Voltou minutos depois com o corpo arcado, atracado a uma desarrumada trouxa de roupa.

Pôs a trouxa em cima da mesa velha de madeira forrada com uma encardida tolha de plásticos.

Sem esconder a raiva acocorou-se perto de mim. Fez um semicírculo pra trás jogando a parte da frente da saia dobrada pro meio das coxas brancas. Tirou a calçola do rego da bunda com as pontas de dois dedos e me interrogou decidida:

“Quem foi a mulher? Vamos, me diga!”

“Quer mulher!, Marta?”

“Mulher aqui só entra uma, que sou eu”, berrou, erguendo o punho magro.

Fiz-me agora de entendido e fiquei no meu canto amoitado.

Francisco Pipio

Nasceu em Graccho Cardoso (SE), em 1967. É poeta, contista e sociólogo formado pela Universidade Federal de Sergipe. Publicou os livros de poemas Asas do entardecer (2005) e As cidades.

Rascunho