Quebra-cabeça

Leia conto inédito de Nivaldo Tenório
Ilustração: Rafa Camargo
01/10/2014

Nunca falta a ninguém uma boa razão para se suicidar.
Cesare Pavese

Três meses não é muito, parece que foi ontem.

Acordou com alguém perguntando alguma coisa. Com esforço, intuiu que fosse seu nome. To­dos esperam que possamos responder a uma pergunta tão ele­mentar. Mas não teve jeito, ele não conseguia se lembrar, por mais esforço que fizesse, e tanto esforço e necessidade de se livrar daquela estranheza, o resultado veio na dor de cabeça.

Está deitado numa cama de hospital. Há uma agulha enfiada no braço e os segundos são me­didos por gotas de soro.

Por que veio parar ali?

Mais tarde lhe diriam que foi atropelado.

O senhor tem parente?

Não. Ele não tem ou não se lembra.

Com sua idade, o senhor deve ter netos.

Não. Ele não se lembra; tampouco de filhos, no­ras ou esposa.

Não encontramos aliança, talvez tenha se per­dido na queda, talvez roubada, essa gente o senhor sabe como é.

Ele não sabe de nada, mas olhou para o dedo que não trazia marca nenhuma.

À noite, sonha com um endereço, e na manhã se­guinte, chama pelo enfer­meiro e dita o endereço, que é anotado num papel.

Está chovendo quando o levam pra casa, o mês foi todo de chuva e a água é fria. A cama não é mais confortável do que a do hospital. Uma mulher gorda ajeita os travesseiros às suas costas. Ele não reconhece que é Rosa, a diarista.

Ela não é de grande ajuda. Contratada há uns seis meses, segundo lhe disse, não conhecia muita coisa além da casa.

Não me lembro de visitas ou parentes, Dr. Alípio.

Escuta seu nome pela primeira vez.

Além disso, o senhor não conversa muito, mas eu não ligo. É o que ela lhe diz, satisfeita, talvez, com Lázaro reabilitado.

Nos dias seguintes, começou uma investigação den­tro de casa. A casa que Rosa quer fazê-lo acreditar que é sua por meio de uma lógica. A verdade é que ainda está se familiarizando com a lógica. Primeiro o atrope­lamento, depois a pancada na cabeça que causou lesão cerebral. Nada muito sério, só os sintomas que vão de dores na cabeça à perda momentânea da memória. Depois foi a vez do hospital, três dias de coma, acordar e conhecer Rosa. E isso é tudo. No momento é a sua história.

Lógico que ninguém estranhou. Não havia nin­guém para estranhar. Só Rosa, mas se houvesse eles lhe teriam dito que estava certo em procurar respostas.

Rosa não ficou satisfeita, sabia que aquela bagunça sobraria pra ela, mesmo assim trouxe uma a uma as gavetas.

Primeiro da cômoda.

É nas gavetas que guar­damos coisas minúsculas, a maioria sem valor senão aquele atribuído por nós. Cartas, fotografias e todo tipo de porcarias que a gente acumula pela vida afora, principalmente quem já fez oitenta anos. Foi a idade que lhe deram e não há como duvidar, está tudo lá, nos registros. Não importa. O fato é que sua vida se transfor­mou num quebra-cabeça incompleto. Por isso começou a in­vestigação. Era o mínimo que podia fazer. Juntar peças e fazer conexões o ajudaria, pelo menos, a sair do torpor.

Aqui, disse Rosa uma manhã, entregando-lhe algo. Esticou a mão e segurou o objeto. De formato oval, parecia feito de prata, talvez chumbo. A peça apresenta as dimen­sões de uma concha e quando segura nas mãos sente o metal frio. Prata, sem dúvida, provavelmente uma joia de família, na certa um relógio, mas não, as partes em con­cha, abertas, mostram duas fotografias antigas. Um me­nino e uma mulher. Ela está de chapéu enfeitado por uma pena e traz a pele de algum animal enrolada no pescoço. Deve ter trinta anos, sorri e posa descontraída para a câ­mera. O menino não tem mais de seis anos, é magro, está de pé e encara desconfiado o fotógrafo. Usa uma espécie de sapa­tilha e o par de meias brancas encontra a bainha da calça ou bermuda pouco abaixo do joelho. Olhando as fotos, não consegue evitar a sensação de estar vendo os dois pela primeira vez.

Além do porta-retratos, naquele dia, não encon­tram mais nada, nem cartas nem fotografias. Há gente que não se deixa fotografar. Rosa está can­sada, diz que não tem mais onde procurar.

Além disso, está quase na minha hora, e ainda preciso arrumar essa bagunça.

Continuou segurando o porta-retratos, Rosa foi arrumar a bagunça e quando saiu, ele estava dormindo.

Não saiu do quarto. Não devia, havia o risco de uma lesão na coluna cervical. Ficou na cama, e naquela primeira semana sua rotina se resumia a dormir e comer. Comer pouco. Não gosta de comer. Não sabe se sempre foi assim. A julgar pelo físico, sim. De todo modo não gosta de comer. Não é nada com a comida da empregada. É uma comida como qualquer outra. Ape­nas isso. Não gosta de comer. Pronto. Mas no primeiro dia que resolveu deixar o quarto, ele o fez depois de sentir o cheiro de café que vinha da cozinha.

Tomou o café na cozinha. Rosa fazendo que lavava a louça, atenta ao patrão.

Sua casa é grande, com muitos quartos e mais ba­nheiros do que vai precisar. Os móveis são rústicos, al­guns estão velhos. Imprestáveis. Também existem cômo­dos vazios de paredes descascadas. A julgar por tanta austeridade, não sabe o que vem fazendo com a apo­sentadoria da Universidade. É, foi professor um dia, mas já faz tempo, segundo os papéis que achou dentro da profissional — ao que parece, seu único docu­mento —, que provavelmente conserva no criado-mudo, onde também encontrou recibos de pagamentos dos servi­ços de abaste­cimento de água e energia elétrica.

Mais do que os móveis rústicos e aquela quanti­dade escandalosa de banheiros, o que chamou sua aten­ção foi a estante empilhada de livros. Montes e montes de livros, ocupando es­paço e servindo de ambiente favorável ao aparecimento de inse­tos. Uma herança indesejada de família — pegou-se pen­sando —, que permaneceu ali durante anos por causa da superstição do herdeiro? Ele não sabia e se surpreendia — entre tantas que não teve — aquela inquie­tação.

Uma grossa camada de poeira recobria os livros na tarde em que resolveu sondar a estante e procurar, tam­bém ali, alguma coisa que o ajudasse a lembrar. Pegou ale­atoriamente um livro e leu seu título. Aquele livro não lhe disse nada, mas o mesmo não aconte­ceu com o se­guinte. O título, desta vez, bem como o nome do autor, pareceram-lhe familiares.

Não se lembra? O senhor passa muito tempo lendo, diria Rosa mais tarde.

Era seu primeiro progresso desde que acordou. Segurou outro livro e a memória não falhou e outro e mais outro. Os livros que não lhe diziam nada eram, decerto, aqueles ainda não lidos, e esta lógica lhe pareceu boa.

Uma hora depois, Rosa retornou trazendo chá e biscoitos, e teve quase uma coisa, ao ver a biblioteca no chão.

A estante ocupa uma parede inteira e foi feita sob medida: seis metros de largura por dois de altura. O am­biente é arejado por duas janelas que dão para o quintal repleto de árvores. Além da estante, uma poltrona e mesa tipo birô são os únicos móveis do cô­modo. Rosa deixou a bandeja sobre a mesa. Ele não a viu entrar. Afun­dado na poltrona, estava absorto na leitura. Desde que descobriu a estante, algumas semanas atrás, voltou a ocu­par a maior parte do tempo entre os li­vros.

Rosa é gorda, usa vestidos longos e está sempre descalça. Não sabe quais as circunstâncias que o fizeram contratá-la. Às vezes acha que foi forçado a isso. Afinal, não é todo mundo que aceita se empregar na casa de um velho solteiro. Os modos grosseiros dela, sua mania de rir alto e macaquear as cantigas do rádio foram quase moti­vos de demissão. Mas não conseguiu ir adiante, alguma coisa como pudor o impedia. Tapava os ouvidos e sentia raiva, mas com o tempo, passou. Não sabe dizer como aconteceu. Um dia incomo­dava e no outro — quando? — deixaram de ser motivo de incômodo.

Também havia o café. Adora o café que ela faz e passou a gostar das histórias que ela conta. São histórias de gente pobre, que vive na pior. E, no entanto, contadas por ela, fazem a gente rir.

Um dia, Rosa não veio, teve de levar um dos filhos ao hospital, foi sua primeira falta. Alguém ligou para avi­sar, ele nunca soube quem, uma vizinha, talvez. Tomou o maior susto com o aparelho tocando.

Sua vida, entre a leitura de um livro e outro, são pá­ginas em branco, eventos que não se realizaram, festas a que não compareceu, reuniões de família onde esteve ausente. Isso é possível? Sentia vontade de perguntar a Rosa, mas ela não saberia responder: pior ainda, podia desconfiar dele, achar que mais do que a memória o Dr. Alípio perdera a razão.

O médico estava certo, a memória voltaria aos poucos. Cada dia se surpreendia com uma nova lem­brança. Mas isso não foi motivo de entusiasmo, na ver­dade ele não tinha nada o que se lembrar além de nomes que, no momento, só servem para indicar túmulos no cemité­rio. Sobreviver aos outros não é uma vantagem, a gente fica com a sensação de que nos passaram a perna. Não é que tenha escapado de um holocausto, nada disso, mas não teve filhos e se arrepende dessa escolha, que durante muito tempo lhe pareceu prudência, por isso não pode se lem­brar do filho que não teve, ele agora é só mais um fan­tasma que o incomoda.

O menino do porta-retratos não é ele. Não pode ser. O menino é um perso­nagem de ro­mance lido há muito tempo e de quem se recorda como de um sonho. Ele é outro. Tem pele enrugada, sofre de amné­sia, tem uma biblioteca e ren­dimentos de aposentado que lhe permitem pagar os servi­ços de Rosa.

Ontem à noite, bisbilhotava na estante. Estava an­sioso, sofrendo de impaciência. É claro que não queria ler nada. Fazia um trabalho manual, como Rosa, queria po­der não pensar em nada, livrar-se daquela agonia: por isso pegava o livro, qualquer um, folheava e desistia dele. Nessa ordem, sem interrupção. Alguns minutos depois, cansado, sentou-se com os poemas de Mário de Sá-Carneiro. Mas não foi capaz de ler e o devolveu a seu lugar, ao lado de uma novela do Hemingway. Não sabe qual foi o critério de arrumação dos livros de que se valeu, provavelmente ne­nhum. Deve ser um desses caras desorganizados, por isso não se casou, não teve filhos e a maioria das coisas que fez, como ficar velho, não dependeu dele. O Diário de Pa­vese estava naquela mesma prateleira, e não sabe se foi na hora que o descobriu ou quando folheava suas páginas que teve mais um dos estalos da memória.

É de manhã quando escuta a empregada chegar. Está deitado na cama, pensando nas lembranças da noite passada. Tem na mão uma caneta, e vem lhe tirando e recolo­cando a tampa desde que acordou. Não saberia res­ponder quantas vezes repetiu o movimento de encaixe. Os passos de Rosa se aproximam. Pode entrar. Ela abre a porta e o encontra com a mesma roupa de ontem.

O senhor quer que eu sirva o café aqui?

Não. Pode deixar.

Rosa divide um cubículo com o marido a quem sustenta e de quem leva uma surra de vez em quando. Teve seis filhos e o último deles, que ela não queria e por isso se entupiu de um chá de folha miúda e amarga, nas­ceu aleijado. Certa vez, disse ao patrão que o aleijão do filho foi cas­tigo.

Quando ela deixou o quarto, ele se pôs a procurar o telefone de um advogado, que não sabe se ainda advoga: já era idoso naquela época. Em todo caso, é alguém que pode ajudar. Afinal, não deve ser difícil preparar a papelada. Só não sabe o que fazer dos livros. Talvez uma biblioteca pú­blica. Ele pede a Rosa que o ajude a procurar o tele­fone, depois vai até a janela, atraído pelo barulho da chuva grossa, exatamente igual àquela que caía no dia em que tentou pela pri­meira vez.

Nivaldo Tenório

Nasceu em Garanhuns (PE), em 1970. Formado em Letras, é autor de A grande torre (2002) e Dias de febre na cabeça, pela u-Carbureto, com segunda edição pela Confraria do Vento prevista para este ano.

Rascunho