Quatro minicontos

Leia os minicontos "os nomes do cão", "o vendedor de lugares", "a merda em todos nós" e "o corvo impossível"
Ilustração: Eduardo Mussi
01/09/2022

os nomes do cão
a velha hasteia o galho, há no semblante uma combinação de justiça e repulsa, os ramos de arruda descem violentamente a um palmo do focinho de lúcifer e principiam um balé de bênçãos e outras dissimulações, ela batiza o cachorro: nomeio-te emanuel!, tu não és mais o tinhoso: é admirável uma analfabeta se expressar com essa solenidade, o dobermann arregaça a boca, os dentes ferroam a brincadeira, jamais aportariam na carne desusada da benzedeira, que repete emanuel emanuel e o animal interpreta algum comando naquele vocábulo, alguma determinação para saltitar, para se divertir, eu acompanho essa nova investida de mamãe, enquanto manejo uma pequena bola: lúcifer, chamo, e o bicho dispara até meus braços e lambe minha mão.

Ilustração: Eduardo Mussi

o vendedor de lugares
quatro pessoas e tão cedo!, parece gente comum, comprador mesmo, no início da madrugada cogitou retardar o inevitável, afinal merecia continuar um pouco mais sob os cobertores, mas a consciência é uma nuvem pardacenta em um dia ensolarado, acordou e estava quinze minutos atrasado: uma quinta posição na fila não é o apocalipse, ainda assim uma comoção acutilava o entusiasmo: e aquele outro quarto de hora bajulando a gula?, ah, também o refogado, quem?, como suportar sem ele, sem o trago revigorante arranhando a gargata?, agora é barganhar, que profissão injusta!, é vender o lugar por um valor menor, é torcer para algum desesperado atracar por ali, alguém interessado em sobras da liquidação, um desinformado a aceitar metade do que normalmente cobra quando está em primeiro.

Ilustração: Eduardo Mussi

a merda em todos nós
jamais li a obra completa de machado de assis ou a de guimarães rosa ou a de murilo rubião ou a de faulkner ou proust ou, principalmente, de julio cortázar, assim, não suspeitei que aquela narrativa pudesse ser do guru argentino: o texto era ruim, uma vergonha podre talvez resgatada, por acidente ou má-fé, das voragens do cesto de lixo, ainda bem, porque, se fosse bom, eu, membro da comissão julgadora do concurso, teria de indicá-lo ao prêmio — meus colegas tampouco reconheceram o golpe: algum engraçadinho aspirante a intelectual testando qualquer despropósito semiótico: o inepto, após o resultado, entregou, numa mensagem objetiva: o conto assinado com pseudônimo zé das couves é de autoria de julio cortázar, vocês eliminaram o trabalho de um gênio, e, óbvio, que um e-mail não prova coisa alguma, de maneira que recorri a um amigo especialista e à vasta biblioteca que ele possuía, com resultados desanimadores: fui a inúmeras bibliotecas, consultei um sem-número de coletâneas e nada, foi um acaso a resolver a questão: a prateleira da megalivraria exibia uma edição em espanhol e, na seção intitulada “avulsos” (tradução minha), em meio a várias ficções de qualidade incerta, o danado: “goterones cuajados”, me deu vontade de divulgar a sujeira, revelar o ardil, abrir um processo, fazer barulho, marketing de guerrilha mesmo, mas já pensaram na decepção dos fãs, quando tudo se tornasse público e esclarecido?, o que seria dos adoradores de cortázar ao descobrirem que ele produziu tamanha merda?

Ilustração: Eduardo Mussi

o corvo impossível
vinte e quatro meses depois, sai, contorna inquieto a primeira esquina, passos precários cravam o susto pela calçada, e foi se animando com as cores das vidas, a marcha apruma, naquele momento nem a morte da companheira ameaça a liberdade, quando o neon assoma, quase o suga para a visita, não titubeia: o dia chegou, quer o corvo, explica, de poe, uma jovem se adianta, deixa comigo, conversam, ela apresenta um esboço, é isso!, ele se senta, espicha o braço e aí tudo desmorona: aquela flacidez, aquela degeneração, a tatuagem pode se deformar, alerta, um desenho não fica bom nesta pele, a tinta vai borrar, ela cogita, que tal letras?, as iniciais do seu nome?, na sua idade até é melhor, um corvo é um negócio meio agourento, né?, ele concorda, pede caracteres góticos: e. t. h.: está feliz.

Whisner Fraga

Nasceu em Ituiutaba (MG), em 1971. É autor de As espirais de outubro (2007), Abismo poente (2009), O que devíamos ter feito (2019), entre outros. Tem contos traduzidos para o inglês, o alemão e o árabe. É responsável pelo canal Acontece nos livros (YouTube), em que fala sobre obras da literatura contemporânea.

Rascunho