Procura do romance

Capítulo do romance inédito de Julián Fuks
Ilustração: Marco Jacobsen
01/04/2011

5.
Por meses, ou o tempo que é preciso passar para que um menino sinta que se passaram meses, sua mãe se manteve prostrada e inerme na cama amarfanhada. Já não lhe abria as persianas todas as manhãs, não lhe pousava sobre o torso a roupa que deveria usar, não lhe beijava a face antes de desaparecer enquanto durasse a luz do dia. Não ressurgia no despontar da noite, também, para lavar-lhe as orelhas que ele negligenciava de propósito na hora do banho, para obrigá-lo a comer e logo a escovar os dentes, para conduzi-lo pela mão ao quarto dele, deitá-lo, forçá-lo a fechar os olhos e entregar-lhe o lóbulo. Desabitara por completo, a mãe, tudo na casa que não fosse o próprio quarto.

O menino estava autorizado a render-lhe visitas diárias, desde que abrisse a porta silenciosamente e medisse o peso dos passos para não acordá-la. Para além das ressalvas e imposições, acautelado por hábito ou instinto, espiava antes de ingressar e se mantinha disposto a voltar atrás caso sua presença se mostrasse por demais indesejada, mas tal incidência jamais se registrou. E jamais chegou a encontrá-la adormecida: como as cortinas túmidas que permaneciam semicerradas e muniam a atmosfera de um caráter, sim, sombrio, as pálpebras dela haviam aderido a uma posição sempre intermediária entre a de olhos abertos e a de olhos fechados. Apagadas, também, além da televisão em cores, as cores do rosto dela, o rosado das bochechas tão mais pálido e os lábios que se embranqueciam até quase não se deixarem divisar. Interrompidos, abandonados, os livros que se empilhavam no criado-mudo e outros que se espalhavam pelo chão, todos com suas sucessões intermináveis de letras em uma mesma palavra e seus títulos que a custo se faziam legíveis, embora ainda incompreensíveis.

Ora de costas, ora virada para o lado direito, ora de costas, ora virada para o lado esquerdo, a mãe se entregava ao silêncio e à semi-escuridão enquanto esperava paciente que os pedreirinhos de suas entranhas reconstruíssem, um a um, os diversos andares de seu prédio interno particular, a tal coluna vertebral. Mas em algum momento tinham de descansar aqueles pedreirinhos, em algum momento mereciam um intervalo os homenzinhos interiores de sua mãe, e por isso ele não precisava sentir qualquer culpa em estar ali — como não precisava, seu pai havia dito, remorder-se com as recordações do ocorrido, algo que ele não havia entendido de todo por não se lembrar de qualquer ocasião em que tivesse se mordido. A mãe, por sua vez, fazia questão de demonstrar que ele não era um intruso com a máxima efusão que lhe era possível, estendendo o braço em sua direção assim que seu perfil franzino assomava na entrada. Complementava o gesto com um sorriso contido, de lábios fechados, que resultava numa aproximação pouco usual entre a maçã do rosto e os olhos, cujas extremidades externas se vertiam para baixo e, caso o conjunto todo ainda não incorresse em uma suficiente mensagem de boas-vindas, ela desprendia umas parcas palavras em voz rouca e fraquejante:

Vení, pasá, Seba, pichi.

Todo aquele esforço combinado para realizar uma boa recepção, apesar da incapacidade do menino de assimilá-lo por completo e, mais ainda, de destrinchá-lo parte a parte, era o que havia de mais triste naqueles dias. Que a mãe se desdobrasse em expressões impossíveis na tentativa vã de fazer do desalento traços de tranqüilidade e esperança ou, na compreensão do menino, que os adultos estivessem escondendo dele um não sei o quê que abalava os ânimos e escurecia o apartamento, tudo isso doía nele de uma forma nunca antes experimentada, nem mesmo na fatídica colisão contra a quina da mesa de mármore. Ele já não tinha, aliás, vontade alguma de empreender suas corridas pela casa e, quando mesmo assim o fazia, para preencher as horas agora mais longas, via-se logo a estirar-se esbaforido em algum sofá, incapaz que se tornara de encher o próprio peito de ar — algo muito estranho porque contradizia o vazio que sentia dentro de si e que lhe ocupava o corpo. Quando entrava naquele quarto, também ele tinha de disfarçar esse oco que o tomava, também ele tinha de forçar os cantos dos lábios para que apontassem para cima, como nos desenhos que fazia na escola, pois seu pai havia lhe pedido que fosse forte e agüentasse, e que procurasse poupar a mãe dessas preocupações menores do dia-a-dia. Como tampouco lhe eram autorizados os abraços mais fortes ou quaisquer outras coisas, incursões, que porventura sobressaltassem sua mãe em estado frágil, ele se limitava a dar a volta na cama e sentar em algum canto livre que encontrasse à beira.

Segurar a mão dela era sem dúvida uma redenção, e nisso também se assemelhavam. Cada um tratava de enredar a mão do outro como se fosse o condutor daquele gesto, em uma indefinição nova que a mãe parecia estranhar, mas que resultava prazenteira ao menino, pois retardava o estabelecimento da posição final dos dedos entrelaçados. Uma vez definida a escala dos ossos e acomodado cada um dos nós, podiam dedicar horas a essa pose, ou o tempo que é preciso dedicar para que um menino sinta que se passaram horas. Através desse contato, pensava o menino, quem sabe não agilizava o processo de cura emprestando a ela alguns de seus pedreirinhos particulares, perfeitamente prescindíveis desde que cuidaram de cicatrizar o talho em sua testa. É claro que não se veriam minúsculos homens trasladando-se pelos vãos das unhas, mas ele já entendera que o fato de seu pai chamá-los de pedreirinhos não significava necessariamente que fossem iguais aos pedreiros grandes, apenas menores. Já sabia que às vezes os adultos dizem as coisas com as palavras certas e às vezes inventam outras para que as crianças entendam (quando não para que adormeçam): já intuía que nem toda a verdade ficava comprometida por essa invenção.

Estava-se bem ali, quando de mãos dadas. A mãe não tinha nada para contar, pouco se valia das palavras sussurradas para ensinar-lhe qualquer lição, vez por outra atalhava um velho e descabido conselho que supostamente o auxiliaria nas amizades precárias que travava com os colegas, mas parecia mais disposta do que em outras ocasiões a ouvir as banalidades cotidianas que ele tinha para relatar — desde que não causassem a ela qualquer prenúncio de aflição, como ele sabia de antemão. Em algum sentido, ou para alguns dos sentidos do menino, era como se fosse ele quem estivesse a niná-la, impugnando o silêncio temerário com suas histórias que, de agudo, só o que tinham era o timbre da voz. Não cabia a ele destilar qualquer moral ou mesmo encaminhar os causos para algum final: como era nula a chance de embalá-la no sono, não fazia mal que os relatos transcorressem sem qualquer rumo, circunvoluíssem à mercê dos mais naturais impulsos e viessem a se interromper, tempos mais tarde, inconclusos. A tudo a mãe anuía, benevolente, e pode que não estivesse de fato escutando o que era dito, e sim acompanhando o movimento dos lábios e analisando, com a concentração possível, os tropeços e as nuances ocultas do monólogo de seu filho. Quanto ao menino, ele não podia precisar, mas, naqueles instantes preciosos e densos, algo mais que o silêncio parecia se dirimir.

Em uma tarde, no entanto, na tarde em que o mundo não queria deixá-los a sós e fustigava os vidros da janela com grossos e invasivos pingos d’água, e violentava os ouvidos deles com estrondos fortes como trovões e que, de fato, eram trovões, e maltratava os olhos de ambos com a luz eletrizante que, em intervalos quase regulares, irrompia súbita e dominava todo o ambiente, naquela tarde o menino sobrelevou os temores de sempre e não quis colher-lhe a mão. Tinha uma coisa para contar a ela e essa coisa parecia, ao menos naquele momento, preencher e anular o vazio que o vinha envolvendo nos últimos dias, dotando-o de uma estranha satisfação igualmente desconhecida — que alguém viria a classificar, mais tarde, com um tom que misturava galhofa e repreensão e que ele não alcançaria, como seu primeiro surto de orgulho e ambição. Tinha uma coisa para contar a ela e essa coisa merecia uma imediatez que, se não havia permitido uma aceleração no procedimento que deveria executar ao entrar no quarto, ao menos o tinha revestido de uma maior ansiedade e de uma primeira impaciência em relação a suas diversas etapas rituais.

— Hoje a professora falou que eu posso escrever livros, mãe — deve ter alardeado pouco depois de encontrar assento, para em seguida corrigir — Quer dizer, falou que eu tenho imaginação de escrevedor de livros.

A mão da mãe vasculhou o ar à procura da dele, logo passando a tatear a cama com o mesmo intuito e colidindo contra sua perna estática, “ah, ¿sí? Qué bien”, apertando-lhe a coxa de um modo débil demais para representar uma felicitação. O menino pensou em se desvencilhar, precisava de espaço e liberdade para executar a performance que planejara, mas um raio rasgou-lhe a vista e a intenção, paralisando-o por um segundo. Preferiu deixar que a mão dela ficasse ali até que se manifestasse a tonitruância que sabia decorrente e que geralmente lhe provocava um calafrio, de modo que foi apenas depois dessa ocorrência indesejada que ele apoiou o peso sobre os pés, a um só tempo liberando-se do toque alheio e alcançando, no bolso de trás, o papel dobrado em quatro que trazia.

Logo de anunciar o título, “Mis vacaciones”, e antes de gaguejar a primeira frase, o menino sentiu que daquele instante abria-se outro, como uma boneca que sai do ventre de outra boneca, com a diferença de que os instantes não eram idênticos e sim, quem sabe, completamente opostos. Desanuviava-se o tempo, silenciavam as gotas que já não escorriam pela janela, desaparecia a janela e se franqueava um amplo campo de pasto rasteiro, delimitado por um bosque remoto de árvores imponentes, cujo verde se deixava dourar pelo sol que as escaldava. Escorando seu corpo, não mais o acolchoado suave da cama, e sim o couro áspero de uma sela e, debaixo dela, o cavalo que lhe fora designado. Mal sabia montar, mas não se tratava de um sonho, em que o desafio lhe seria dado sem qualquer fundamento ou explicação, como se perpetrasse, e perpetrando, uma punição: desta vez estava ao seu lado, igualmente montado, o filho mais velho do administrador da fazenda, rapaz qualificado a acompanhá-lo no passeio.

Aí, nesse cenário plácido tão propício a situações prévias, tinha início sua aventurosa história, ritmada e progressiva, cronológica e direta, a tensão perfeita surgindo onde não era esperada e se exacerbando em direção ao clímax impecável. Ou era assim que o menino a sentia à medida que seus olhos percorriam a página rabiscada e iam se povoando de tão vivas memórias. A imprevista cumplicidade do pai, que a ele confiara seus segredos de montaria. A do cavalo que volteava o pescoço para observá-lo de soslaio e se unia a ele por um laço que não podia se limitar ao instrumento óbvio das rédeas (entre duas substâncias vivas, não era justo que uma sobrepujasse a outra; devia caber a ambas, mancomunadas, decidir o ritmo e a direção que seguiriam). A de seu companheiro de cavalgada que sorria malicioso e agregava à expressão uma piscadela. Um chicote que surgia do nada, serpenteava sob o céu e estabelecia o conflito. Os cavalos que se punham a patalear descoordenados enchendo o espaço de poeira, o medo crescente que percorreu suas entranhas quando começou a suspeitar que os freios de que dispunha não funcionavam, o desespero que o tomou quando teve certeza disso. O salto que empreendeu para fugir da árvore que se apresentou de chofre à frente, o animal a se desviar matuto e a revelar a tremenda idiotice que ele fizera.

O menino caído, descobrindo que o batuque que escutava já não era das patas do cavalo a colidir contra o chão, e sim dos batimentos descompassados que retumbavam em seu peito; engolindo os soluços que o atropelavam e recolhendo os cacos, não de seus ossos, mas das cumplicidades partidas: o desfecho perfeito. Tudo o que ocorria a partir daí era um epílogo nebuloso que arrefecia o empenho e estremecia os traços, à margem dos quais a professora tivera o rigor de tachar: “confuso”.

Titubeou um instante, gaguejou de novo, limpou a garganta e optou por prosseguir a leitura. Arremedos de imagens, comentários sem propósito, esclarecimentos que nada esclareciam, tudo se sobrepunha sem qualquer sucessão. A mãe montada no animal que o derrubara, sacolejando e dando voltas como se estivesse em um rodeio, a terra seca tapando a imagem e transformando a cena em miragem, o rapaz que arrevesava súbito por entre os demais e punha um cavalo a enfrentar o outro, a balbúrdia que se produzia e esmorecia até restar apenas a mãe, no chão, estirada. Alguém a denunciar a presença do menino incólume, apontando-o com o dedo. Outro alardeando o corte existente na boca do cavalo. Nada mais.

Quando o menino ergueu os olhos, não havia em seu rosto sequer um mínimo resquício do orgulho que antes o desfigurara. Pode que tivesse percebido quão impertinente era sua história, pode que ganhasse consciência do quanto essa impertinência corrompia e defraudava o relato. Compreendia então a fragilidade do elogio que recebera — se tudo, afinal, não passava de realidade, se nada se desprendera de seus dedos por livre exercício da criação — e pode que em sua mente a expressão da professora que lembrava complacente aos poucos se convertesse em algo que ele ainda não sabia definir como cinismo e mordacidade. Mas também essa metamorfose deu lugar a outra, o rosto da professora foi esvaecendo na névoa imaginária, e logo o menino pôde ver a face muito real da mãe singrada por dois traços quase transparentes, ambos tendo início em um ponto diferente do mesmo olho e se unindo até desaparecerem sob a risca do maxilar. O menino, a princípio, não quis entender o que acontecia e olhou a janela para averiguar se, numa remota possibilidade, aqueles traços não passavam de sombras no rosto alheio das gotas de chuva que escorriam pelos vidros. Depois voltou a baixar os olhos, procurou os dedos de outra mão para tentar entrelaçá-la e soube que a mãe, por fim, chorava.

Quando Sebastián ergue os olhos e os volta naquela mesma direção, nenhum rosto se apresenta à sua frente e a vista vai estalar, vazia, na parede amarelada. Está sentado à beira da mesma cama, mas esta não é uma tarde chuvosa e nenhuma gota parece iniciar seu percurso em qualquer superfície vítrea. Pior, o fluxo verbal de lágrimas que acaba de cogitar não termina de se constituir em imagem antes de ser descartado: secreções que se desprendem de pontos distintos do mesmo globo ocular e perfazem trajetórias convergentes devem ser tão impossíveis quanto são raras as ocasiões de choro que ele pôde testemunhar. Além disso, essa imagem que tanto o tocou, que deveria estar cravada em sua memória mas não se cravou, essa imagem perde grande parte de sua força se o leitor não está informado de que o menino nunca vira a mãe chorar, e nunca voltaria a ver.

Da mesma forma, de nada vale a reconstituição de uma situação dada se não se obtém acesso às verdadeiras e mais profundas sutilezas experimentadas por aquele que a viveu. As lembranças quiçá inventadas de um dedo rijo que apontava para ele, das regras estritas que o pai estabeleceu na casa ou mesmo da necessidade que o menino sentia de fazer algo pela recuperação de sua mãe não parecem indícios suficientes para matizar o sentimento de culpa de que sofria. Mas será que, de fato, se sentia culpado? Seriam dois os principais entraves a essa hipótese. Primeiro, que o menino não tivesse um grau de discernimento suficiente para concatenar a aventura que vivera com a tragédia subseqüente a não ser em termos cronológicos — a confusão do final de sua redação poderia ser tomada como prova disso. Segundo, que o menino soubesse que seu erro fora a causa do desastre da mãe, mas agregasse a essa consciência a noção de que jamais, não importando quantas vezes a cena se repetisse, poderia ter feito qualquer coisa de diferente — e tal noção inevitavelmente o absolvia.

Por meio do raciocínio lógico, Sebastián conclui, nunca conseguirá determinar a autêntica natureza dos sentimentos do menino. Convém que se valha, em vez disso, da análise das redivivas manifestações corporais de que parece ter sido vítima. Há pouco cismou que a criança estivesse vivenciando uma sensação de vazio, um oco no peito que atrapalhava suas brincadeiras de rotina. Também inferiu que tivesse dificuldades para sorrir e para respirar, mas disso deve desconfiar pois podem ser meras decorrências de uma tentativa sua de tornar nítidas as suposições anteriores. No mais, pensou em mencionar um suposto recolhimento afetivo que caracterizaria o menino nesse período, talvez conseqüência, sim, de um receio exagerado de proporcionar à mãe um novo mal. Seriam esses fatores suficientes para identificar a existência nele de um complexo de culpa? Ou ilustrariam apenas a compaixão natural do menino, ou, menos, a óbvia falta que qualquer criança sente quando sua mãe se afasta e confisca os hábitos, agravada pelo acúmulo dos dias?

Não, tampouco esse método há de conduzi-lo a qualquer constatação definitiva. Resta-lhe, Sebastián sabe há algum tempo, um derradeiro recurso: tentar reconhecer em si mesmo, no homem que agora é, algum resíduo renitente dessa possível sensação do menino. Sente-se, ele próprio, responsável pelo acidente da mãe? Ter guardado em algum recanto de seu cérebro tão numerosas e vívidas imagens de um momento tão longínquo, ter passado a última meia hora sentado na mesma cama e entregue a intermitentes rememorações, considerar essa sua insignificante redação de volta às aulas o início precoce de uma ainda inexistente carreira literária, serão esses elementos fortes o bastante para supor que se trate das minudências de uma obsessão?

Sebastián arremete o tronco para trás e sente as costas se ajustarem às molas desiguais do velho colchão. A longa expiração que acompanha todo esse movimento só cessa quando lhe parece não haver, em seus pulmões, mais nenhum centímetro cúbico de ar. Talvez sim. Talvez se sinta culpado. E, sendo assim, não pode senão aspirar mais alguns litros de decepção. Quanto de seu empenho não estaria ausente de qualquer intuito literário, reduzindo-se à mesquinha vontade de verter em palavras uma confissão inócua e extemporânea? Quantos milhares de quilômetros de bosques foram derrubados, árvore por árvore decepada com crueldade, milhões de páginas maculadas por quantas piscinas de tinta negra, tudo de uma inutilidade atroz quando empregado em irrelevantes e tão pessoais expiações de culpa?

Julián Fuks

É paulistano e nasceu em 1981. Escritor, crítico e jornalista, é autor de Histórias de literatura e cegueira, livro finalista dos prêmios Jabuti e Portugal Telecom. Procura do romance será lançado no segundo semestre pela Record.

Rascunho