Prato de acaçá doce para meu pai

Conto de Alexandre Staut
Ilustração: Fabiano Vianna
01/10/2024

Aos treze anos, meu paizinho Itamar saiu da Paraíba para morar no Rio de Janeiro com tio Raminho. Logo que chegou, o tio-pai-de-santo jogou búzios para o moleque, descobrindo que ali estava um típico filho de Oxóssi… namorador, leviano.

Meu pai passou a frequentar o terreiro da vizinhança e, certo dia, durante um xirê, apaixonou-se por uma mulher que incorporava Maria Padilha. O moleque enlouqueceu, essas coisas de paixão à primeira vista… mas ela não deu a mínima.

Ele vivia atrás dela. Ela gargalhava. “O erê se apaixonou por uma entidade do além, não pela mulher de carne e osso”, ela falava e ria.

Itamar insistiu, até que a fulana cedeu. Combinaram de ir juntos ao carnaval, na Praça 11, para os desfiles das escolas de samba. Itamar usava uma fantasia de folhagens, um Oxóssi-erê. Ela se vestida de Maria Padilha, com saia rodada vermelha e adornos dourados.

No meio da folia, a multidão começou a gritar o nome de Luz del Fuego, que passava pelada num carro alegórico. Itamar falou para a acompanhante: “Vou ali espiar a moça das cobras”, deixando a namoradinha furiosa. “Vou cuspir no chão. Se no tempo de o cuspe secar, você não estiver de volta, nunca mais me verá”, ela respondeu.

Dito e feito. Ele numa mais a viu. A moça desapareceu igualmente do terreiro. Ele a procurou por dias, inclusive no salão de beleza em que ela trabalhava. “Fulana pediu demissão e sumiu no mundo sem deixar rastro”, disseram.

Em 1969, ano de meus longínquos nove anos… Meu pai já voltara à Paraíba, iniciava-me nas coisas do candomblé. Ele me balançava numa rede, no terraço de casa, cantando uma canção de santo. “Lua nova de Ogum, que brilha no céu cravejada de ouro, é maxum bembê, é maxum bembê…” Eu tinha medo, morria de medo, e depois acabava dormindo. Ele tinha o pensamento distante. Talvez pensasse no paradeiro da cabelereira carioca. Posso ouvir até hoje, nos meus ouvidos, a música que entoava enquanto me fazia dormir.

Pouco depois, em nossa casa, no bairro Mandacaru, João Pessoa, minha mãe contratou duas empregadas domésticas: Creusa e Penha. Não é que elas frequentavam um terreiro de macumba na vizinhança? Dei um jeito de me enfiar numa das festas da casa. Da primeira vez que fui, fiquei besta. Encontrei um barracão enfeitado de bandeirinhas do Volpi, um ambiente festivo. Mas o que gostei mesmo foi da comida, da mesa farta… bala puxa-puxa, cocada, sonho recheado de creme, que lá a gente chama de “filhoses”. Ali descobri o meu espírito glutão.

Passei a visitar assiduamente o terreiro com Creusa e Penha. Eu era um erê-problema, comia a mesa de doces inteira. Numa das festas, comi tanto, mas tanto, que fui parar no hospital. Convulsão alimentar.

Minha mãe, católica fervorosa, não tinha a mínima ideia do que tinha acontecido e ficou desesperada ao ver o filho entre a vida e a morte; chegou a chamar dona Lisete, a benzedeira da rua para um passe.

Ao acordar do coma, na maca do hospital, vi a vizinha ao meu lado… Limpei os olhos e falei: “Hoje é dia de festa! Vamos para a festa?”. Dona Lisete tremeu nas bases. Ela era macumbeira e reconheceu na hora o erê à sua frente.

O tempo passou e eu virei cozinheiro. Meu pai se tornou católico praticante. Fui iniciado na igreja batista, passei pelo catolicismo, virei mórmon, fui hare krishina. Até que, certo dia, no Museu de Arte Afro de São Paulo, vi o livro Banquete sagrado, tese de doutorado do professor da Universidade da Bahia Vilson Caetano de Souza Júnior. O livro traz a relação da religião com culinária. Fiquei maluco quando li que orixás comem o que os homens comem, e que recebem, a seus pés, nos terreiros, comida, palavras de fó (encantamento), ádúrà (rezas), oriki (evocações) e orin (cantigas), tudo ligado a itan (histórias sagradas) e a elementos essenciais para a transmissão do axé.

Escrevi para o Vilson no mesmo dia. Jamais esperava retorno de um homem culto, um intelectual… Não é que ele respondeu horas depois? Ficamos amigos e, sem demoras, passei a frequentar o terreiro Oba L’Oke, em Lauro de Freitas (BA), onde ele é babalorixá (pai de santo).

Voo o tempo todo de São Paulo, onde moro hoje, para a Bahia, para as festas da casa. E elas são sempre cheias de comida, como no terreiro que visitava com a Creusa e a Penha. Fui me aproximando da cozinha e hoje ajudo na preparação dos pratos servidos em datas comemorativas. A festa de Oxalá, por exemplo, vara a noite. O café da manhã é disputado.

Mas cozinha de um terreiro é coisa séria. É cheia de segredos. As oferendas são feitas exclusivamente pelo pai de santo. Oxalá, por exemplo, exige que todas as panelas em que são feitos os seus quitutes sejam usadas exclusivamente para os seus pratos. Há rituais o tempo todo. Sacrifícios de animais, por exemplo, são rituais. Galinha morta em terreiro serve para alimentar o povo. Não é matança pela matança, como muita gente acha que é. Aliás, o frango na bandejinha que a gente compra no supermercado é fruto de sacrifício para alimentação da humanidade, não é?

A questão do candomblé/comida entrou na minha vida mais efetivamente quando abri o restaurante Na Cozinha, na capital paulista, uns anos atrás. Há três festas religiosas que se tornaram parte do calendário da casa: em setembro, durante os anos em que o restaurante funcionou, servia caruru para Cosme e Damião; em dezembro, acarajé e caruru para Iansã; e, em fevereiro, caldinho de frutos do mar, moqueca e manjar branco para Iemanjá. Além disso, tinha doze pratos do cardápio finalizados com dendê, todos inspirados no receituário oral da “comida de santo”. Como devoto e filho de Xangô, vivo para a religião… e para a comida, para alimentar as pessoas.

Todas as segundas-feiras, ao iniciar as atividades do restaurante, oferecia um pratinho para Exu, que é comilão e abre caminhos. E nessa minha caminhada pela gastronomia e pelo mundo dos orixás, descobri que tudo é uma festa só… e um grande banquete sagrado.

Acontece que, ultimamente, com a partida do meu pai, fiquei triste… “Carlos, você que adora um ebozinho, faça algo para se libertar do sofrimento que a morte dele lhe causou”, orientou pai Vilson. “Faça acaçá doce. Leva o despacho, de madrugadinha, aos pés de um bambuzal, no meio do mato.”

Eis que marquei um dia da semana. Acordei cedinho para finalizar a receita. Tomei banho, e, como bom filho de santo, passei parte do acaçá no corpo, nos braços, nas pernas… fiz minhas orações, entrei num táxi e coloquei o prato com o quitute num cantinho do parque Ibirapuera.

O dia nascia esplendoroso. O bambuzal balançava criando uma melodia que ecoava pelas alamedas locais. Pedi agô (licença). O aroma do acaçá doce tomou conta do lugar, assim que retirei as folhas de bananeira que o embalavam. Elas representam a pele humana e o acaçá branquinho, no interior, a carne, os órgãos. Levei também acarajés redondinhos e crocantes e farofa de bola. Tudo para saudar meu pai. Fechei os olhos. Respirei fundo e, ao voltar do meu quase transe, observei passarinhos se aproximarem para bicar a comida. Comiam tranquilos e alheios ao meu sofrimento. Senti alívio imediato do peso e da dor que tomavam conta de m’alma. Limpei as lágrimas dos olhos. E agradeci ao homem que me apresentou essa religião, certo dia, enquanto me balançava numa rede, cantando um lindo ponto, num tempo perdido, há quase cinquenta anos.

NOTA
O conto Prato de acaçá doce para meu pai pertence ao livro O caldeirão da Velha Chica e outras histórias brasileiras, a ser lançado em novembro pela Folhas de Relva.

Alexandre Staut

É jornalista, escritor e editor de livros. Autor de Paris-Brest (prêmio Best French Cuisine Book, pelo Gourmand World Cookbooks Awards; finalista do Jabuti e do prêmio Prazeres da Mesa), entre outros livros. É idealizador da São Paulo Review e da Folhas de Relva Edições.

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