Pra me livrar da prisão

Conto de Marcio Renato dos Santos
Marcio Renato dos Santos, autor de “Minda-au”
01/11/2003

Nesta cidade quase nada é confiável. Muito menos o tempo. Ninguém sabe o momento da garoa ou do calor. Agora, piso na Presidente Faria com meus sapatos novos; calça jeans e camiseta bastante usadas. O moletom e a jaqueta provocam suor, mas não tiro as peças que me causam desconforto. Afinal, daqui a no máximo dez minutos, se nenhum inesperado me atrasar, estarei bem, muito bem acomodado.

Contorno o Passeio Público fumando esse que deveria ser meu último cigarro. Mas não é. Nem será. Preciso deles pra atravessar a noite.

Não conheço ninguém no bar. Sei quem as pessoas são. Elas me ignoram, mas devem perceber que sou aquele que fica sempre sozinho no mesmo canto. Falo apenas com os garçons. Uma ou outra pessoa me pede fogo, pro cigarro. Até cigarro pedem. Outros pedem licença. Alguns sorriem. Mas aqui ninguém nunca trocou nenhuma palavra comigo.

Freqüento o lugar por causa da música. Sou fascinado pelo repertório da banda. Eles tocam as mesmas canções, na mesma seqüência, desde a primeira noite em que entrei aqui.

E foi por acaso.

Numas vinte e duas horas e alguns minutos de um passado distante, entediado, saí do apartamento. Entrei num táxi e pedi pro motorista seguir. Sim, por ali. À direita. Não, tem de tocar pela via rápida. Alegando não lembrar o nome da rua, garanti ter noção de como chegar ao destino. Voltamos pro centro pela mesma rua em que havíamos ido até outro bairro. De repente, o sinal fechou e vi esse bar aberto. Era ali mesmo.

Me acostumei a chegar antes dos outros. Assim, posso escolher onde ficar. Mas fico sempre no mesmo lugar. A mesa do canto esquerdo. Inicio a noite com a cadeira em que sento e outras três, que serão deslocadas para outras mesas.

E, mal me sento, sem que eu peça, um dos garçons já traz a primeira cerveja. Mais de quarenta cigarros e não mais que quinze garrafas me separam do dia seguinte.

Mas, antes disto, algo se passa.

Mais do que a presença física, é o ruído que as pessoas emitem que preenche o ambiente. Mistura de falas, restos de risadas e silêncios — eis o que toca antes da banda.

Aqui, atrás da fumaça e das garrafas, ninguém me vê. Mas posso ver tudo que acontece. Não chamo atenção. Mas também não incomodo. Talvez eu devesse perturbar os outros, de repente, com piadas. Mas calo.

Olho o vai-e-vem de mulheres. São tantas. Desconfio que nenhuma me vê, nem mesmo aquela que senta com o namorado sempre na mesma mesa. Seremos amantes daqui a dois anos. Num final de outono, ela dirá que suspeitava que era observada no bar. Viveremos algumas estações, até ela sair da minha vida. Pra nunca mais.

De repente, a banda entra em cena.

Canções norte-americanas e inglesas da época em que tudo parecia possível. Sempre lamentei não ter sido jovem naquele período. Restou a opção de ouvir, insistentemente, a trilha sonora.

Numa noite, choveu tudo que podia pra impedir que as pessoas saíssem de casa. O bar estava quase vazio. E foi nessa ocasião que o vocalista anunciou que a banda iria tocar uma canção própria. Ruim não era. Lembro apenas que imediatamente após o último acorde, alguém disse que “palma de bêbado não vale”, referindo-se à minha manifestação espontânea e solitária.

No mais, toda noite o repertório é o mesmo. E, em um determinado momento, o quinteto emenda uma seqüência apresentando Ventura highway, Coccaine, Vooddo Chile, Everybody’s talking, Bennie & the jets, I shot the sheriff, All along the watchtower, Come together. Não entendo o que as letras dizem. Compreender a sonoridade é suficiente. E todos gostam.

Gosto também.

Daqui a pouco, a cidade volta a funcionar plenamente.

E é por esta razão que preciso sair.

Que bom se a cidade fosse sempre assim, igual ela é antes das sete da manhã.

O céu azul promete, mas o cinza dos prédios não vai cumprir.

Tudo parece possível entre a Santos Andrade e a Osório, mas nada acontece.

Se eu cair, levam carteira, cartões, cigarros, relógio, calça, camiseta, moletom, jaqueta, sapato e cueca até. E nem uma vela acendem pra mim.

Nessas próximas oito horas, os inoperantes vão tentar me passar a perna. O tempo todo.

Mas não tenho outra saída.

Ou tenho?

Tudo parece rodar agora.

Cai a garoa.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho