Durante toda semana, remédios de alergia, rinite.
Esse calor não é de Curitiba. Ando pela sala do apartamento com o telefone entre a orelha esquerda e o ombro, já me escorre água salgada pela testa. A camiseta cheira como a noite dormida a cigarros. Enquanto falo com ela, procuro lançar Bom Ar para espantar o mofo. A mesma discussão do tempo que nunca me é suficiente. Já está na hora do almoço, mas não sinto nenhum sinal de fome. Vou até a cozinha para buscar um copo de água, na boca um gosto de guarda-chuva amassado, bafo do sono. Sempre que acordo tarde assim, sinto um pingo de culpa por não ter feito nada pela manhã. Chateio-me com o copo maior que o espaço do garrafão da Ouro Fino, prefiro o guaraná light que está na porta da geladeira. Com um único gole vou até o fim da primeira refeição do dia. Ela me pergunta por onde andei a noite toda. Fiquei lendo, ouvindo música. Sim, estou indo lá agora. Ao lado do sofá, as bitucas jogadas no chão de carpete. Pigarros de narguilé. Como suei essa noite debaixo das cobertas! Olhando para a patente, acompanho o risco de mijo que vai de encontro ao azulejo. Durante a madrugada, não sei como, acordei entre a patente e a parede. Meu joelho lateja um vermelho esquisito que não estava aqui quando me deitei. Vejo um resto de vômito quando levanto o short. Mais um pouco de Bom Ar que se mistura com o alvejante do banheiro. Meu estômago está embrulhado. Não consigo ir adiante com a conversa ao telefone, desligo. Deixo a água do chuveiro cair como nunca fosse acabar.
Na portaria cumprimento Seu Ari sempre sorridente cuidando das plantas. Pelo espelho da entrada, percebo que estou com uma cara horrível. Visto meus óculos de sol e saio pela Silva Jardim. A dorzinha no joelho me incomoda um pouco, mas mesmo assim vou a pé. Cruzo pelo Shopping Curitiba, o mesmo cheiro de sempre, paro por alguns instantes no Old Bar, tomo meu expresso e continuo pela Visconde de Guarapuava. Debaixo do braço, alguns livros, recortes de jornal, CDs. Não reconheço essa Curitiba com o sol queimando por dentro da camiseta. Tropeço em algumas pessoas que andam apressadamente na direção oposta e mantenho as pernas firmes pela calçada, desviando dos buracos — sempre dos outros. Suor. No sinaleiro começo a gostar do calor, uma mulher de saia branca espera pelos carros. Com o canto dos olhos, percebo uma calcinha minúscula perdida entre as pernas. Aperto meu sexo instintivamente. Isso por aqui é novidade. Desço a Brigadeiro Franco cantarolando a parceria do poeta com o boêmio. Isso ainda me faz querer essa cidade. Musa em desuso. Rio sozinho pelas esquinas até a Praça Osório. No chafariz, dezenas de meninos e meninas despreocupados com o movimento ao redor, água neles todos. Ignoram a cerca e o recado da prefeitura que não os deixam estar ali. Estariam onde, então? Muitos passos perdidos, indo para todas as direções da praça. As bolsas debaixo do braço ainda carregam os guarda-chuvas, não se pode descuidar nem por um segundo. Borboletas no estômago. Sempre a mesma voz dizendo que não deveria ter entrado nessa, mas é preciso. Mestrado na Federal. Voltar a enfrentar os leões carcomidos, os donos do grande Palácio de Gelo. Fui convencido a me inscrever, não sabia o que esperar. Mas passar pela prova de que consigo estar ali novamente me foi tentador. De longe, começo a sentir o cheiro da Reitoria, a gordura da cantina já em meu nariz. As escadarias com alunos jogando bola no pátio, conversando sobre serem os próximos de Curitiba, lançando fumaças ao vento. Não reconheço nenhuma sombra estacionada ali. Paro diante do primeiro lance e hesito em subir. Ninguém parece notar essa presença, passam cortando minha frente e se distribuem pelo prédio. Respiro fundo e chego ao elevador. Inevitáveis comparações de épocas, o porteiro ainda é o mesmo, a cor mais pálida das paredes, a mais descascada. Lá se foram alguns anos. Décimo andar, por favor. Repito o mesmo movimento de sempre, viro-me para o espelho a fim de ajeitar as cãs, olheiras da noite mal-dormida. Ao meu lado, conversam sobre os novos professores. Novos? Sei de todos os nomes, também devem estar preocupados com os cabelos que não têm mais: Os gênios das ciências humanas. No andar, alguns rostos procuram seus nomes pela lista no edital. Encontro um espaço. A primeira porta fechada. Lógico, por que ainda insisto nisso? A certeza era clara. Mestrado aqui, não senhor, qual o direito que tens de pisar por essas plagas, amigo-que-nada-significa? Somos os donos do trono, a rainha leão, o rei alemão e a princesa dos e-mails, só entra quem dissermos para entrar, e tu, naturalmente, não és bem-vindo com essas idéias fracas de um projeto inacabado. Ponha-te para fora, volta para o colo de tua mãe. Ou ainda acha que sabes andar sozinho? Um tapa na cara, revoadas de pássaros no estômago. Atordoado com a fala dos professores-mais-esclarecidos-entre-todas-as-universidades-federais-desse-país, cambaleio pela Amintas de Barros. Talvez, se eu batesse na porta daquela casa, poderia sentar-me para tomar café com o proprietário. Conversar sobre o tempo que não é de nenhuma Curitiba — esse suor na cara não é normal — de repente, talvez, até falar que tenho uma cachorrinha chamada Fifi, a mesma voz de sempre, clichês. Mas me acostumo. Nada disso, deixo a fala apenas na vontade. Ainda teimo em deixar os livros debaixo do braço. Dou a volta no quarteirão e volto pela Rua XV. Pela vitrine das Livrarias, cumprimento o amigo livreiro, de tantas boas conversas, e nem vejo quando chego em frente ao jornal. Muitos conhecidos. Preparo um envelope e o deixo na portaria, apenas uma notinha no canto esquerdo da última página do último caderno de segunda-feira — pode ser o de classificados — já me seria agradável. Migalhas. Mas nem isso. Nada, nadica de nada. Em quase um ano de tentativas apenas um muito obrigado por ter deixado o livro conosco. Encontrei a segunda porta fechada. Na edição desse domingo, página inteira dedicada ao jovem escritor do Rio de Janeiro, filho da ilustríssima atriz da novela das oito! Maravilha, é desse tipo de apoio que preciso. Amasso os retalhos de jornal. Muito calor. Procuro uma pequena nuvem no céu, mas só azul. Quem sabe com os CDs dou sorte? Caminho apressado para a Fundação. A sala do gerente é aquela à esquerda. Dois guardiões do feudo na terceira porta. Não abrem nem com reza braba. Saravá! Se esticasse minhas mãos no meio da rua para pedir esmolas, seria muito mais fácil. Curitiba, não me desampare assim, também sou seu filho! Quem sabe se voltasse à terra vermelha? Se levanto a camiseta ainda vejo marcas londrinas. Devo pedir emprego de caseiro na chácara pelegrina? Ou me mudo para os campos gerais, já que sou neto de tropeiros? Continuo cantarolando, mas agora a canção do poeta polaco. São Paulo pode me receber como em Alice no País das Maravilhas? Todas as vozes ardem por aqui. Sou cada um deles. Parei na frente de um passante: amigo, sabe que estou prenho de palavras? Devo ter feito uma cara muito estranha, porque esse cidadão me desdenhou com um sopro qualquer. No orelhão da Senador Alencar, procuro-a. Daqui a quinze minutos passo em sua casa, depois te conto o que me aconteceu. Tenho saudades do suco de Cupuaçu. Calor. A rinite alérgica me cansa. Sento-me na Praça Osório para amarrar o cadarço. Nessa época do ano, a noite chega mais rápido e quando me levanto do banco percebo que estou sozinho na praça. Olho para todos os lados e nem sinal de pessoas. Corro para um dos cantos, mas não consigo ir adiante. Curitiba? Começo a perdê-la: colocaram grade na Osório. Em todos os finais não há como passar. Os olhos chegam na Reitoria, em frente ao jornal, na livraria da Rua XV. Escuto apenas o barulho do chafariz jogando água para dentro. Me lembrei que durante todo o dia não bebi um copo d’água sequer. Coloco as mãos em forma de concha e encho-a com o suor dos meninos de hoje à tarde. Lavo o rosto com o que sobrou. Bebo-a. Mesmo com o joelho ardendo da caminhada consigo chegar ao centro do chafariz. Escalo-o até o topo. Agora é só me ajeitar para ver se pego no sono.
Pela manhã devo me apressar, a previsão do tempo diz que será o dia mais quente do ano.