Portão eletrônico

Conto inédito de Jorge Ialanji Filholini
Ilustração: Carolina Vigna
27/07/2016

Deus tem conta bancária? Por que o Senhor necessita de dinheiro? Qual a quantia que vale uma prece? Só recebe a graça quem está com o carnê em dia? Não consigo entender o motivo do aumento do valor que o pastor Inácio me pediu para depositar.

Não serei atendida se deixar de pagar o dízimo até terça-feira. Precisa investir na fé. Irmão Caio que me disse. Ele colocou a maior parte de seu salário na igreja. Hoje não tem dívidas. Desfila de Pajero. Mármores na parede da garagem. Balcão de acrílico. Fogão e geladeira do tamanho de uma espaçonave. E um enorme portão eletrônico.

Sabe, Deus, meu sonho é ter um portão eletrônico. Aquele dez por trinta. Cobre toda a frente da casa. Pintado de bronze. Controle para levantar e abaixar do lugar em que eu estiver. Firmar e depositar um pouco mais do valor que já colaboro que o portão virá. Ah, se virá, irmã.

Mas o dinheiro do depósito eu posso investir em um portão. Deus, sei que me escuta, só não entendo essa conta de louvor financeiro que preciso alcançar. Na rua Colômbia todos fecham os seus portões. O da Janaina tem traços redondos no meio. Pintado de vermelho. Já o do Paulão é azul e tem madeiramento nos cantos. O maior de todos da Nova Estância é o do vereador Antunes. Elegante até na base. É verde esmeralda, combinando com o branco do piso do quintal. Vereador Antunes soube escolher muito bem. Ou foi Deus que lhe deu?

Rezar e rezar e rezar. A vida é um tormento. Frustração. O tamanho das minhas orações já toca o céu. E nada de nome limpo. O muro no reboco. O chão trincado. A janela enferrujada. Pia do banheiro rachada. O box de plástico. O chuveiro de ferro. E a frente sem portão. O passado não está na fotografia de nosso primeiro momento dentro de casa. Trinta anos, a mesma imagem cinza da garagem.

Deus está no comando. Ele sabe o que faz. Sua hora chegará. Pastor Inácio insiste. Na igreja, na tv, no rádio. Na leitura da bíblia em quatro CDs. Promoção de vinte nove e noventa.

Jesus está aqui. Mas não na minha casa. Minhas orações atravessam os cômodos. Deus não escuta. Deus precisa é de dinheiro. Uma ajudinha monetária.

Passei na serralheria do Sebastião. Havia um portão imenso. Do tamanho do meu sonho. No meio tinha um desenho. O brasão de uma família. Namorei aquela imagem. Imaginei o portão no meu portão. Abrindo e fechando. A boca sorridente da casa. Este não é para você. Quando tiver a quantia, quem sabe. Quem sabe é Deus, e Ele precisa de dinheiro. Ir ao banco. Bradesco. Conta e agência decoradas de tanto o pastor gritar no culto. Mas Deus saca grana? Paga conta? Para quê tanto dinheiro, meu Senhor?

Meu marido vai me matar. Nossa poupança na compra da lágrima de Cristo. Na chave do céu. No grão das terras de Jerusalém. Terreno na nuvem. Escritura e garantia em mãos. Ele tem de concordar com o investimento. Matar é pecado. O sorriso do pastor Inácio ao receber uma parte da grana me dava segurança. Benção. Seu chamado será transmitido. Levante a mão, sinta o toque Dele. Quero mesmo é tocar o meu portão eletrônico. Alisar a superfície. Escolher a tinta. Chamar o Aguinaldo, pintor daqui do bairro. Ele tem aquele revólver de pintura. Vai deixar o meu portão iluminado. O maridão vai gostar. Agradecerá o dinheiro investido na fé. O Senhor abençoa o seu rebanho.

A vista da casa com um buraco do tamanho de uma caverna. Não vou me tornar uma moradora da pré-história. Mas o portão não vem. A reza cobrada. O sonho custa caro. Deus cobra alto os seus favores. E eu não tenho a quantia que Ele pede.

A crise complicou as orações. Cortaram a linha de acesso ao céu. Deus dança conforme a bolsa. Com a igreja em bancarrota, o seu portão eletrônico não será uma realidade. Pastor Inácio não facilita. Tenha fé e dinheiro que tudo virá. E veio. A conta no vermelho. O cartão quebrado. Casas Bahia telefonando todos os dias. Maridão desempregado. Crianças sem lápis para colorir. Portão eletrônico só na fresta do muro da serralheria do Sebastião.

Se Deus voltar, que me traga um portão. Pastor Inácio convidou o grupo de oração para um café na sua casa. Mesa posta. Bolos, torradas, pão de forma integral, chás, achocolatados, pipoca. A crise em cima da mesa. Deus dá aos certos terras para a boa colheita. E nada de brotar um portão no meu quintal.

Não era justo. O Justo não me ouvia. Orar. Levantar as mãos. Clemência. Louvor. Dívida de gratidão. Penhorar. Ter a graça em dor. Tudo financiado na mesa de café do Pastor Inácio.

Ter cabelos no coração. Não há entidade que me faça de otária. Desforra. Pastorzinho filho de uma puta. Arrancou a minha pele com notas de Real. Vou tirar a minha a limpo.

O ódio é uma atitude humana onde Deus não tem imunidade.

Pastor Inácio tinha um belo portão eletrônico. Todo branco. Com colunas douradas. A porta do céu. Adulado pelos fiéis. O missionário era exemplo de lutar e conquistar o desejado. Pedi para tocar o seu portal de honradez. Integridade. Brio. Decência. Oração eterna de magnanimidade. Uma bela bosta de mau caráter. Bandido. Ladrão. Pegou o controle e nos guiou até a garagem. O grupo aplaudia. Dava graça.

Eu quero o meu portão. Igualzinho. Brincaria com o controle dia e noite. Nos momentos de tédio. Subir e descer. Também vou fazer a minha graça.

O tempo fecha. O céu cinza tapa o sol no ferro dourado. A chuva avisa ao som dos trovões. Raios assustam o grupo. Pastor Inácio não se intimida. Alisa o portão. A luta de tê-lo, um sermão de conquista. O escravo de Deus que foi atendido. Apoia as mãos. Avisa: foi Ele que me concedeu forças para…

Um raio corta Pastor Inácio ao meio. Começou no portão e atravessou a sua mão direita. Membros do grupo tentaram acudi-lo. Receberam a mesma descarga. Morreram grudados.

Se Deus não atendeu ao meu pedido, faço pacto com o Diabo.

O portão levanta e sobe no meu comando. Falta pintar. Coisa básica. Agora eu tenho o dente que faltava na minha casa. Nem dormi na véspera para instalá-lo. Alinhá-lo. Construído pelo Sebastião. Fiz questão de chamar Janaina, Paulão e o vereador Antunes para um café. Eles tinham de contemplar a minha imensa graça recebida. Aleluia, irmã! Aleluia!

Mas o que vou fazer com o portão sem um carro na garagem?

Jorge Ialanji Filholini

É autor de Somos mais limpos pela manhã (Demônio Negro, 2016), finalista do Prêmio Jabuti, e Somente nos cinemas (Ateliê Editorial, 2019).

Rascunho