Para Lucas, meu filho: interdição da melancolia
— Você gostaria de ouvir um verso?
— Eu não entendo nada de poesia. Só planto flores.
E a jovem morena sorriu para o homem velho que estava diante dela.
Ele estava muito doente. Iria morrer em breve. E conheceu Júlia, a morena, num lugar na periferia da cidade, onde se plantavam e vendiam rosas e outras flores. Não, não queria nada de grandioso ou napoleônico, como dizia, antes da “viagem definitiva”. Não tinha família, filhos, mulher, não precisava se preocupar com seguros ou pecúnia para descendentes.
Aspirava algo raro, até estranho para o comum dos mortais (de hoje): “tornar mais puras as palavras da tribo”, como dizia o poeta.
Seu nome era Jarbas, tinha 70 anos e queria apenas ler versos (não explica-los; ele sabia que isso era impossível).
Queria ler individualmente, nada de grupos ou multidões. Só acreditava nessas relações individuais, “pequenas”, como classificava.
Foi algo instantâneo. Não planejado, até mágico: os olhos penetrantes da moça, negros, fundos, que não se desviam do interlocutor, impressionaram Jarbas.
Queria plantar algumas rosas no quintal de seu sobrado, também no subúrbio. Morava sozinho.
Naquele momento crepuscular, “definitivo”, de sua vida, tão tardio, sentiu um indefinível tremor quando viu a moça. Algo que nunca tivera na vida, ele que sempre fora tão ponderado e racional.
Ela poderia ser sua neta. E nunca a havia visto. Ele ali, num lugar onde se plantavam e vendiam flores. E leu para Júlia:
“Coração oposto ao mundo,/Como a família é verdade!”
Leu e não olhou para ela. Ela tratava de duas rosas.
Não havia movimento na floricultura. Era manhã de Quarta-Feira de Cinzas, e o céu estava nublado.
A moça nada disse. Apenas sorriu.
Foi a vez dele sorrir.
Ela falou: “Não entendi”.
— Eu talvez não tenha entendido também. Mas achei os versos muito belos — Jarbas falou com ternura.
Ele queria ter falado para ela: “só quero sentir”.
Repetiu para si mesmo: “Coração oposto ao mundo,/ Como a família é verdade!”
Ele escolheu algumas rosas ainda frescas, pareciam cheias do sereno da madrugada, gotas de água escorrendo nas flores vermelhas.
Jarbas pegou um caderninho. Leu:
— “Às vezes ouço o passar do vento, e só de ouvir o vento passar vale a pena ter nascido.”
Júlia pediu que ele lesse de novo. Jarbas releu.
— Que bonito! — ela falou, e disse “que bonito!”, com enorme sentimento, algo de dentro com força entranhada.
Isso fez o velho se emocionar, este homem que talvez não tivesse mais que meio ano de vida.
Ele pegou um lenço vermelho e enxugou duas lágrimas. Só conseguiu dizer: “Lemos para saber que não estamos sós.”
Júlia percebeu sua emoção, não era moça culta, mas sensível, e sem que ele pedisse, tirou da garrafa térmica um chá e o ofereceu-lhe numa pequena xícara.
O velho cheirou: “É de jasmim”, descobriu e sorriu. A moça também sorriu.
— O senhor é poeta? — ela perguntou.
— Não, mas gosto muito de ler e de observar as pessoas.
Ela pediu que ele repetisse as palavras de Fernando Pessoa:
“Às vezes ouço o passar do vento, e só de ouvir o vento passar vale a pena ter nascido.”
— É verdade — ela disse, novamente com um sentimento tão forte que impressionou Jarbas. Ele não soube fazer mais nada senão beijar a testa da moça. E seus olhos estavam vermelhos. A manhã de Quarta-Feira de Cinzas estava entranhada no inconsciente coletivo como um tempo de tristeza, de final de festa, de ressacas físicas e morais.
Para ele não: triste era a alegria química, o sexo mercantilizado, a banalização dos sentimentos, a alegria “fingida”.
Aquela quarta-feira, que seria tão rotineira, tão igual às outras, adquiria uma voltagem emocional e afetiva tão intensa, um fervor tão raro e forte (como uma prece que fosse fundo, lá dentro da gente, um fervor tão raro e forte, e conseguisse provar que não se está só no mundo).
O acaso: ir comprar flores para o sítio e encontrar aquela moça, sentir essa emoção que chegava a doer no corpo.
Um momento como aquele valia uma existência toda.
Pensou nos gestos habituais: sair para ir ao médico, dar comida aos gatos, tomar remédios, orar, escutar o ronco dos caminhões, contemplar de longe a cidade grande, e viver essa vida só, cercado de livros e plantas.
O velho pensou na morte de todos os homens e na sua própria morte.
Lembrou-se do pensamento de José J. Veiga: “Do lado de lá ficamos expostos aos ventos do desconhecido. Exatamente como do lado de cá”.
— O senhor mora onde? — ela indagou.
— Do outro lado da estrada.
Não tinham muitas palavras. Mas se olhavam com imensa ternura e simpatia.
— Sua família mora aqui também? — a moça insistiu.
— Não tenho família.
Jarbas falou sem qualquer carga de tristeza ou autopiedade. Até sorriu, de maneira um tanto camuflada, mas perceptível para quem tivesse bom olhar.
Ele relia o Padre Vieira: “Levanta-se o pó com o vento da vida, e muito mais com o vento da fortuna; mas lembre-se o pó que o vento da fortuna não pode durar mais que o vento da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante”.
(“Sermão da Quarta-Feira de Cinza”)
Fez uma pausa, respirou: “Sois pó, e em pó vos haveis de converter”.
O velho preparou-se para o ritual da despedida.
Pagou a rosas, beijou a testa de Júlia. Ela pediu: “Volte sempre”, e o apelo não era algo estatutário, formal: vinha de dentro do seu coração. Ela queria que ele voltasse mesmo.
No final da vida, ele teve a percepção de que o amor não é o contrário da solidão: é a solidão dividida, habitada, iluminada pela solidão do outro.
Jarbas leu:
“O amor é sempre solidão, não porque toda solidão seja amante, mas porque todo amor é solitário. Ninguém pode amar em nosso lugar, nem como nós. Esse deserto em torno do objeto amado é o próprio amor.”
O velho já estava indo embora. Voltou-se. Queria dar um último beijo na testa da moça. Como seu pai sempre fazia quando ele chegava da escola, e quando ia dormir e pedia a bênção.
“Toma a minha bênção, filho”, o pai dizia.
E foi embora. Sabia: era a última vez que via a moça. Olharam-se. Ele “sentiu”, enquanto andava pela estrada deserta — aquela estrada cheia de poeira —, que ela estava olhando para ele; pensou como tivesse tido uma descoberta fundamental, seminal: ter tido aquela manhã, ter conhecido aquela moça, havia justificado uma vida inteira.
Como ter escutado o vento.