Poemas de Valério Magrelli

Leia os poemas traduzidos "Etimologia", "O turista da vida", “Metade de mim é um cão”
Valerio Magrelli, poeta italiano
01/05/2022

Tradução e seleção: Patricia Peterle

Valerio Magrelli nasceu em Roma (Itália), em 1957. É uma das vozes mais atentas do panorama italiano contemporâneo. No final de 2021, publicou seu livro mais recente, Exfanzia, pela famosa coleção Bianca, da Einaudi. Os sete poemas aqui traduzidos foram retirados desse livro. Exfanzia não trata da infância, nada de nostalgias ou sentimentalismos. O que está em jogo é uma expulsão da infância e, portanto, ganham espaço a velhice e a proximidade com a morte. Tudo lido pelo crivo de muita ironia, sarcasmo, ao lado de um refinamento literário, que se esconde atrás da aparente e enganadora simplicidade. Uma poesia que aposta em materiais que escapam ao lirismo e perseguem o rastro do antipoético. Um exemplo é o poema Etimologia. Nesses versos, a poesia é o resultado de uma inflamação, poesia, diz Magrelli, “vem de pus”. No Brasil, está traduzida a antologia 66 poemas (Rafael Copetti Editor).

Che sorrisone faccio, nella foto!
Sta per iniziare la gita
e scherzo con gli amicix.
Tra mezz’ora, cadendo,
mi romperò una spalla
e poi sarò operato per due volte.
Ma che sorriso faccio, nella foto!
Arreso, felice, imbecille.
Perché, se stiamo bene,
abbiamo sempre l’aria da imbecilli.
Una foto qualsiasi, una storia qualsiasi.
Tendini come versi, lunghi e fragili.
Siamo fatti di vetro soffiato:
l’unica cosa buona sta nel soffio.

Que grande sorriso faço, na foto!
logo vai iniciar o passeio
e brinco com os amigos.
Daqui a meia hora, caindo,
vou quebrar um ombro
e operado vou ser depois duas vezes.
Mas que sorriso revelo, na foto!
Rendido, feliz, imbecil.
Porque, se estamos bem,
sempre ficamos com o ar de imbecis.
Uma foto qualquer, uma história qualquer.
Tendões como versos, longos e frágeis.
Somos feitos de vidro soprado:
a única coisa boa está no sopro.

Etimologia

“Poesia” viene da pus:
non te l’aspettavi?
E quanto ci hai messo, ad accorgertene!
Poetare-suppurare-suppoetare,
tipica infiammazione del linguaggio.
“Ascesi, flemmoni, osteomieliti, ecc.:
per eliminare la suppurazione,
la piaga è stata disinfettata con cura”

Etimologia

“Poesia” vem de pus:
isso te surpreende?
E quanto tempo passou, até cair a ficha!
Poetar-supurar-supoetar,
típica inflamação da linguagem.
“Asceses, fleimões, osteomielite, etc.:
Para eliminar a supuração,
a chaga foi desinfetada com cuidado”

Dorme in un sacco a pelo
sopra la scalinata di una chiesa.
Le birre, tutto intorno,
Fanno da candelabri.
Ho sempre il terrore di essere io.

Num saco de dormir fica
em cima da escadaria de uma igreja,
as cervejas, em torno,
parecem candelabros.
Tenho sempre o terror de ser eu.

Diceva un vecchio amico: “Vorrei essere
morto, ma non si può avere tutto nella vita”

Io, quando morirò, penserò, a te:

operaio che mi montasti la cucina lasciando in mezzo alla
strada le scatole d’imballaggio col mio nome, ragion
per cui ricevetti una multa di duecento mila lire;
ottico al quale chiesi di pulirmi le lenti, e che quelle
stesse lenti mi fondesti, procurandomi un danno di
cinquecento euro;
meccanico n.1, che eseguisti malamente la riparazione
della cinghia di trasmissione, lasciandomi in auto-
strada con l’aiuto in fiamme e mille euro di spese;
meccanico n.2, che mi montasti un carburatore
sbagliato, facendomi percorrere seicento chilometri
in oltre ventidue ore;
ortopedico che in una banale operazione riuscisti a
paralizzarmi un dito per sempre.

Penserò a voi, a voi tutti e ai vostri simili,
da cui la mi vita è stata avvelenata
per errore.
Penserò a voi, quando dovrò morire,
non ai miei cari:
solamente a voi.
Vorrò essere allegro il più possibile,
perché la mia dipartita sia più lieve.
Vi penserò col cuore
Traboccante di gioia:
almeno, non dovrò incontrarvi più.

Dizia um velho amigo: “Gostaria de estar
Morto, mas não é possível ter tudo na vida”

Eu, quando morrer, vou pensar em você:

operário que me montou a cozinha deixando no meio da
rua as caixas da embalagem com meu nome, razão
pela qual recebi uma multa de duzentas mil liras;
ótico pra quem pedi para limpar as lentes, e que aquelas
mesmas lentes me fundiu, me causando um dano de
quinhentos euros;
mecânico n.1, que executou muito mal o conserto
da correia de transmissão, deixando-me na
rodovia com o carro em chamas e mil euros de gasto;
mecânico n. 2, que me montou um carburador
errado, e me fez percorrer seiscentos quilômetros
em mais de vinte e duas horas;
ortopédico que numa banal operação conseguiu
paralisar meu dedo para sempre;

Pensarei em vocês, em todos vocês e em seus semelhantes,
que a minha vida envenenaram
por erro.
Pensarei em vocês, quando terei de morrer,
não nos meus caros:
somente em vocês.
Vou querer estar o mais alegre possível,
para que a minha partida seja mais leve.
Pensarei em vocês com o coração
transbordante de alegria:
pelo menos, não terei de encontrá-los mais.

Il turista della vita

Ma quante scale avete fatto mai,
zampette mie?, mi chiedo
mentre attacco quest’altra, nuova rampa.
Torri, tante — piramidi,
fortezze, campanili,
e sempre con quell’ansia di chi vuole

vedere ancora e ancora…
Sei contento?, mi ripeto ogni volta
che arrivo in cima.
Fino a che arriverà l’ultima volta,
l’ultima cima.
E qui lo dico con quasi sollievo.

O turista da vida

Mas quantos degraus vocês já fizeram
minhas pernas?, me pergunto
enquanto ataco essa outra, nova rampa.
Torres, muitas — pirâmides,
fortes, campanários,
e sempre com aquela ânsia de quem quer

ver mais e mais…
Está feliz?, repito pra mim a cada vez
que chego no topo
Até que chegará a última vez,
o último topo.
E aqui digo isso com quase alívio.

È il QR code del tuo viso
che mi fa sussultare, ogni mattina,
quando scatta l’allineamento
delle barre a matrice
e io, lettore ottico, ti vedo,
vedo che cosa sei, cosa per me,
mentre i sensori avvampano
nel flash
del riconoscimento.
È un punto incandescente
il luogo in cui si forma dentro me
la tua identità, la nostra storia
sotto forma di vita.

É o QR code do teu rosto
que faz com que eu pule, toda manhã,
quando inicia o alinhamento
das barras de matriz
e eu, leitor ótico, te vejo,
vejo o que és, o que és pra mim,
enquanto os sensores inflamam
no flash
do reconhecimento.
É um ponto incandescente
o lugar em que se forma em mim
a tua identidade, a nossa história
sob forma de vida.

“Mezzo me è un cane”
(scritto sul retro dei racconti di Lucia Berlin)

Il cane sono io
Alberto Giacometti

Mezzo me è un cane.
Risponde muovendo le gambe,
come se fossero coda.
Lascia che il corpo parli,
da sé, tutto da solo.
Perché mezzo me è un cane.

“Metade de mim é um cão”
(escrito atrás dos contos de Lucia Berlin)

O cão sou eu
Alberto Giacometti

Metade de mim é um cão.
Responde mexendo as pernas,
como se fossem rabo.
Deixe o corpo falar,
por si, todo ele sozinho.
Porque metade de mim é um cão

Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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