Apresentação e tradução: Bruna Dantas Lobato
Tracy K. Smith, nascida em 1972 em Massachusetts, é uma das poetas norte-americanas mais importantes de sua geração. Formada pelas universidades Harvard e Colúmbia, Smith é autora de três coletâneas de poemas e um livro de memórias. Ganhou, entre outros, o prêmio Cave Canem de poesia afro-americana em 2002 e o prêmio Pulitzer de melhor poesia em 2012 pelo seu terceiro livro, Life on Mars. Atualmente, é professora de criação literária da Universidade de Princeton.
Ambos os poemas aqui traduzidos pela primeira vez para o português foram originalmente publicados em Life on Mars. Neste livro, o território da ciência não é tão diferente do território da criação. Deus toma a forma de uma estrela do pop, um ser cósmico, uma alma que atravessa o céu, um astronauta. Esses poemas lançam personagens para o espaço sideral, de onde se consegue admirar a Terra à distância. Os movimentos das vidas terrenas são característicos de nossos tempos, tempos esses de dúvida e curiosidade, violência urbana, proezas tecnológicas, referências à cultura pop e questionamentos sobre os limites do corpo humano.
Smith é uma escritora de variedade e ambição extraordinárias, e também de grande precisão e rigor técnico. Escolhi dois poemas longos, mas de estilos e temas diferentes: o primeiro cheio de expectativa e brilho e o segundo mais íntimo e vulnerável, carregado com a dor da perda.
Don’t you wonder, sometimes?
1.
After dark, stars glisten like ice, and the distance they span
Hides something elemental. Not God, exactly. More like
Some thin-hipped glittering Bowie-being—a Starman
Or cosmic ace hovering, swaying, aching to make us see.
And what would we do, you and I, if we could know for sure
That someone was there squinting through the dust,
Saying nothing is lost, that everything lives on waiting only
To be wanted back badly enough? Would you go then,
Even for a few nights, into that other life where you
And that first she loved, blind to the future once, and happy?
Would I put on my coat and return to the kitchen where my
Mother and father sit waiting, dinner keeping warm on the stove?
Bowie will never die. Nothing will come for him in his sleep
Or charging through his veins. And he’ll never grow old,
Just like the woman you lost, who will always be dark-haired
And flush-faced, running toward an electronic screen
That clocks the minutes, the miles left to go. Just like the life
In which I’m forever a child looking out my window at the night sky
Thinking one day I’ll touch the world with bare hands
Even if it burns.
2.
He leaves no tracks. Slips past, quick as a cat. That’s Bowie
For you: the Pope of Pop, coy as Christ. Like a play
Within a play, he’s trademarked twice. The hours
Plink past like water from a window A/C. We sweat it out,
Teach ourselves to wait. Silently, lazily, collapse happens.
But not for Bowie. He cocks his head, grins that wicked grin.
Time never stops, but does it end? And how many lives
Before take-off, before we find ourselves
Beyond ourselves, all glam-glow, all twinkle and gold?
The future isn’t what it used to be. Even Bowie thirsts
For something good and cold. Jets blink across the sky
Like migratory souls.
3.
Bowie is among us. Right here
In New York City. In a baseball cap
And expensive jeans. Ducking into
A deli. Flashing all those teeth
At the doorman on his way back up.
Or he’s hailing a taxi on Lafayette
As the sky clouds over at dusk.
He’s in no rush. Doesn’t feel
The way you’d think he feels.
Doesn’t strut or gloat. Tells jokes.
I’ve lived here all these years
And never seen him. Like not knowing
A comet from a shooting star.
But I’ll bet he burns bright,
Dragging a tail of white-hot matter
The way some of us track tissue
Back from the toilet stall. He’s got
The whole world under his foot,
And we are small alongside,
Though there are occasions
When a man his size can meet
Your eyes for just a blip of time
And send a thought like SHINE
SHINE SHINE SHINE SHINE
Straight to your mind. Bowie,
I want to believe you. Want to feel
Your will like the wind before rain.
The kind everything simply obeys,
Swept up in that hypnotic dance
As if something with the power to do so
Had looked its way and said:
Go ahead.
Você não se pergunta, às vezes?
1.
Ao cair da noite, estrelas cintilam como gelo e a distância que elas cobrem
Oculta algo elementar. Não Deus, exatamente. Mais como
Um ser estreito, magrelo, com o espírito reluzente de Bowie — um Starman
Ou craque cósmico pairando, se remexendo, se doendo para que possamos ver.
E o que faríamos, você e eu, se pudéssemos saber com certeza
Que alguém estava ali espiando através da poeira
Dizendo que nada está perdido, que tudo vive apenas da espera
Para voltar a ser querido o suficiente? Você iria, então,
Mesmo que por algumas noites, para esta outra vida em que você
E aquele primeiro que ela amou, uma vez cegos para o futuro, e felizes?
Quem sabe eu colocaria meu casaco e retornaria à cozinha, onde minha
Mãe e pai esperam sentados, jantar esquentando no fogão?
Bowie nunca morrerá. Nada vai o acometer em seu sono
Ou se apressar por suas veias. E ele nunca vai envelhecer,
Assim como a mulher que você perdeu, que sempre terá cabelos castanhos
E cara corada, correndo em direção a uma tela eletrônica
Que conta os minutos, as milhas que falta seguir. Assim como a vida
Em que sou sempre uma criança olhando pela minha janela para o céu noturno
Pensando que um dia tocarei o mundo com minhas próprias mãos
Mesmo que queime.
2.
Não deixa rastros. Desliza, rápido como um gato. Isto é Bowie
Para você: o Papa do Pop, recatado como Cristo. Como uma peça
Dentro de uma peça, duas vezes marca registrada. As horas
Pingam como água do ar condicionado. Nos aturamos com suor,
Nos ensinamos a esperar. Silenciosamente, preguiçosamente, acontece o colapso.
Mas não para Bowie. Ele apruma a cabeça, sorri aquele sorriso perverso.
O tempo nunca para, mas ele acaba? E quantas vidas
Antes da decolagem, antes de nos encontrarmos
Além de nós mesmos, todos glamour de glitter, todos faísca e ouro?
O futuro não é o que costumava ser. Até mesmo Bowie tem sede
De algo bom e gelado. Jatos piscam no céu
Como almas migratórias.
3.
Bowie está entre nós. Bem aqui
Em Nova York. De boné de beisebol
E jeans caros. Se enfiando em
Uma deli. Deslumbrando com todos aqueles dentes
O porteiro ao retornar.
Ou ele está chamando um táxi na Lafayette
À medida que o céu se nubla no crepúsculo.
Não tem a menor pressa. Não se sente
Como você acha que ele se sente.
Não se empertiga ou se exalta. Conta piadas.
Morei aqui durante todos esses anos
E nunca o vi. Como não saber distinguir
Um cometa de uma estrela cadente.
Mas aposto que ele brilha incandescente,
Arrastando uma cauda de matéria quente e branca
Do jeito que alguns de nós criam rastros de papel
da privada. Ele tem
O mundo inteiro sob seus pés,
Ao seu lado, somos pequenos,
Ainda que haja ocasiões
Quando um homem desse tamanho pode encontrar
Seu olhar por somente um bipe de instante
E enviar um pensamento: SHINE
SHINE SHINE SHINE SHINE
Diretamente para a sua mente. Bowie,
Quero acreditar em você. Quero sentir
Sua vontade como vento antes da chuva.
Do tipo que tudo simplesmente obedece,
Embalado naquela dança hipnótica
Como se algo com o poder de fazê-lo
Tivesse olhado na sua direção e dito:
Vá em frente.
…..
The speed of belief
In memoriam, Floyd William Smith 1935-2008
I didn’t want to wait on my knees
In a room made quiet by waiting.
A room where we’d listen for the rise
Of breath, the burble in his throat.
I didn’t want the orchids or the trays
Of food meant to fortify that silence,
Or to pray for him to stay or to go then
Finally toward that ecstatic light.
I didn’t want to believe
What we believe in those rooms:
That we are blessed, letting go,
Letting someone, anyone,
Drag open the drapes and heave us
Back into our blinding, bright lives.
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When your own sweet father died
You woke before first light
And ate half a plate of eggs and grits,
And drank a glass of milk.
After you’d left, I sat in your place
And finished the toast bits with jam
And the cold eggs, the thick bacon
Flanged in fat, savoring the taste.
Then I slept, too young to know how narrow
And grave the road before you seemed —
All the houses zipped tight, the night’s
Few clouds muddy as cold coffee.
You stayed gone a week, and who were we
Without your clean profile nicking away
At anything that made us afraid?
One neighbor sent a cake. We ate
The baked chickens, the honeyed hams.
We bowed our heads and prayed
You’d come back safe,
Knowing you would.
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What does the storm set free? Spirits stripped of flesh on their slow walk.
The poor in cities learn: when there is no place to lie down, walk.
At night, the streets are minefields. Only sirens drown out the cries.
If you’re being followed, hang onto yourself and run—no—walk.
I wandered through evenings of lit windows, laughter inside walls.
The sole steps amid streetlamps, errant stars. Nothing else below walked.
When we believed in the underworld, we buried fortunes for our dead.
Low country of dogs and servants, where ghosts in gold-stitched robes walk.
Old loves turn up in dreams, still livid at every slight. Show them out,
The bed is full. Our limbs tangle in sleep, but our shadows walk.
Perhaps one day it will be enough to live a few seasons and return to ash.
No children to carry our names. No grief. Life will be a brief, hollow walk.
My father won’t lie still, though his legs are buried in trousers and socks.
But where does all he knew — and all he must now know — walk?
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Probably he spun out of himself
And landed squarely in that there, his new
Body capable, lean, vibrating at the speed
Of belief. She was probably waiting
In the light everyone describes,
Gesturing for him to come. Surely they
Spent the whole first day together, walking
Past the city and out into the orchards
Where perfect figs and plums ripen
Without fear. They told us not to go
Tipping tables looking for them. Not even
To visit their bodies in the ground. They are
Sometimes maybe what calls out
To people stuck in some impossible hell.
The ones who later recall, “I heard a voice
Saying Go and finally, as if by magic, I was abl
Simply to go.”
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What happens when the body goes slack?
When what anchors us just drifts off toward.…
What that is ours will remain intact?
When I was young, my father was lord
Of a small kingdom: a wife, a garden,
Kids for whom his word was Word.
It took years for my view to harden,
To shrink him to human size
And realize the door leading out was open.
I walked through, and my eyes
Swallowed everything, no matter
How it cut. To bleed was my prize:
I was free, nobody’s daughter,
Perfecting an easy weightless laugher.
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Of all the original tribes, the Javan has walked into the dappled green light.
Also, the Bali, flicking his tail as the last clouds in the world dissolved at his back.
And the Caspian, with his famous winter mane, has lain down finally for good.
Or so we believe. And so I imagine you must be even more alone now,
The only heat of your kind for miles. A solitary country. At dawn, you listen
Past the birds rutting the trees, past even the fish at their mischief. You listen
The way a woman listens to the apparatus of her body. And it reaches you,
My own wish, like a scent, a rag on the wind. It’ll do no good to coax you back
From that heaven of leaves, of cool earth and nothing to fear. How far.
How lush your bed. How heavy your prey. Day arrives. You gorge, sleep,
Wade the stream. Night kneels at your feet like a gypsy glistening with jewels.
You raise your head and the great mouth yawns. You swallow the light.
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You stepped out of the body.
Unzipped it like a coat.
And will it drag you back
As flesh, voice, scent?
What heat burns without touch,
And what does it become?
What are they that move
Through these rooms without even
The encumbrance of shadows?
If you are one of them, I praise
The god of all gods, who is
Nothing and nowhere, a law,
Immutable proof. And if you are bound
By habit or will to be one of us
Again, I pray you are what waits
To break back into the world
Through me.
A velocidade da crença
In memoriam, Floyd William Smith 1935-2008
Eu não queria esperar de joelhos
Em uma sala calada pela espera.
Uma sala onde ouvíamos a respiração
que incha, o chiado na sua garganta.
Não queria as orquídeas nem as bandejas
De comida destinadas a fortificar esse silêncio,
Nem rezar para ele ficar ou ir
Finalmente em direção àquela luz extática.
Não queria acreditar
No que acreditamos nessas salas:
Que somos abençoados, deixando partir,
Deixando alguém, qualquer alguém
Escancarar as cortinas e nos elevar
De volta para nossas claras e ofuscantes vidas.
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Quando o seu doce pai morreu
Você acordou antes dos primeiros raios
E comeu meio prato de ovos e mingau,
E bebeu um copo de leite.
Depois de sua partida, me sentei no seu lugar
E terminei os pedaços de torrada com geleia
E os ovos frios, o bacon espesso
Colado com gordura, saboreando o gosto.
Aí fui dormir, muito jovem para saber quão estreita
E sombria era a estrada à sua frente —
Todas as casas fechadas à zíper, as nuvens
escassas da noite turvas como café frio.
Você ficou sumido por uma semana, e quem éramos nós
Sem seu perfil claro espantando
Tudo que nos metia medo?
Um vizinho nos mandou um bolo. Nós comemos
Os frangos assados e presuntos doces.
Baixamos nossas cabeças e rezamos
Para que você voltasse para casa são e salvo,
Sabendo que o faria.
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O que a tormenta liberta? Espíritos despidos de carne nas suas lentas caminhadas.
O pobre nas cidades aprende: quando não há um lugar para se deitar, caminha.
À noite, as ruas são campos minados. Apenas sirenes abafam os gritos.
Se estiver sendo seguido, se segure e corra—não—caminhe.
Eu vaguei por noites de janelas acesas, risada dentro de paredes.
Os únicos passos entre postes, estrelas errantes. Abaixo, nada mais caminha.
Quando acreditávamos no submundo, enterramos tesouros para nossos mortos.
País de cães e criados, onde fantasmas com mantos costurados com ouro caminham.
Amores antigos aparecem em sonhos, ainda lívidos com cada desfeita. Mostre-os a saída,
A cama está cheia. Nossos membros se enredam no sono, mas nossas sombras caminham.
Talvez um dia será suficiente viver algumas estações e regressar às cinzas.
Sem filhos para levar nossos nomes. Sem pena. A vida será uma breve, oca caminhada.
Meu pai não vai repousar, embora suas pernas estejam enterradas em meias e calças.
Para onde tudo o que ele sabia — e tudo que deve saber agora — caminha?
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Provavelmente ele perdeu controle de si mesmo
E caiu em cheio naquilo ali, seu novo
Corpo capaz, esguio, vibrando na velocidade
Da crença. Ela provavelmente esperava
Na luz que todos descrevem,
Acenando para fazê-lo vir. Certamente eles
Passaram todo o primeiro dia juntos, caminhando
Além da cidade, até os pomares
Onde perfeitos figos e ameixas amadurecem
Sem medo. Eles nos disseram para não vir
Girando mesas para encontrá-los. Nem sequer
Visitar seus corpos debaixo da terra. Eles são
Talvez o que às vezes chama
Pessoas presas em algum inferno impossível.
Aquelas que depois se recordam, “Ouvi uma voz
dizendo Vá e finalmente, feito mágica, fui capaz
De simplesmente ir.”
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O que acontece quando o corpo cede?
Quando o que nos ancora vai à deriva para.…
O que do que era nosso permanecerá ileso?
Quando eu era jovem, meu pai era senhor
De um pequeno reino: uma esposa, um jardim,
Filhos para quem sua palavra era Palavra.
Demorou anos para a minha vista se agravar,
Para encolhê-lo à estatura humana
E perceber que a porta para fora estava aberta.
Passei por ela, e meus olhos
Devoraram tudo, sem ligar
Como cortava. Sangrar era a minha recompensa:
Eu estava livre, filha de ninguém,
Aperfeiçoando uma risada fácil e leve.
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De todas as tribos originárias, a Java havia caminhado para o facho verde de luz.
E também a Bali, sacudindo seu rabo até as últimas nuvens do mundo se dissolverem nas suas costas.
E a Cáspia, com sua famosa cabeleira hibernal, havia se recostado de vez.
Ou assim acreditamos. Assim como imagino que você esteja ainda mais sozinho agora,
O único calor de sua espécie por quilômetros. Um país solitário. Ao amanhecer, você ouve
Além dos pássaros berrando nas árvores, além até dos peixes em suas traquinagens. Você ouve
Do jeito que uma mulher ouve o aparato de seu corpo. E chega até você,
Meu próprio desejo, como um cheiro, um trapo no vento. Não servirá de nada te adular de volta
Do céu de folhas, de terra fresca e nada a temer. Que distante.
Que viçosa a sua cama. Que pesada a sua presa. O dia chega. Você devora, dorme,
Caminha pelo córrego. A noite se ajoelha aos seus pés como uma cigana cintilando com joias.
Você levanta a cabeça e a grande boca boceja. Você engole a luz.
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Você pisou fora do corpo.
Abriu o zíper como um casaco.
E ele vai lhe arrastar de volta
Em carne, voz, cheiro?
Que calor queima sem toque,
E no que se torna?
O que são eles que se movem
Por essas salas sem nem mesmo
O estorvo das sombras?
Se você é um deles, eu louvo
O deus de todos os deuses, que é
Nada e invisível, uma lei,
Prova imutável. E se você está preso
Ao hábito ou vontade de ser um de nós
De novo, eu rezo que você seja o que espera
Para irromper de volta ao mundo
Através de mim.
Nota
Tracy K. Smith, “Don’t You Wonder, Sometimes?” and “The Speed of Belief” from Life on Mars. Copyright © 2011 by Tracy K. Smith. Reprinted with the permission of The Permissions Company, Inc. on behalf of Graywolf Press, Minneapolis, Minnesota, www.graywolfpress.org.