Certas respostas
Pelo prazer, pelo desprazer
para experimentar e doer
para de amor não morrer
pra ficar de bem comigo, pra ficar de mal comigo
pra ficar comigo
pela palavra céu, pela palavra flor, pela palavra terra
pela palavra pedra, pela palavra qualquer
pela palavra
por tudo que é certo e que medra
por tudo que é bom e se enterra
pela cor e pelo riso
para dar voz aos não-vivos
para espantar os fantasmas
por Letícia e por Isaura
por João e por Narciso
pelo aprendizado do homem, pelo aprendizado do pássaro
pela forma e pela fôrma
pelo mar da metáfora
pela aventura, pela desventura
pela desconstrução da morte, pela arquitetura da vida
pelo humano
pelo que está por trás do pano
pelo sagrado, pelo profano
por deus e o diabo-a-quatro
pelos santos sem pecado
pelo pecado
pelo absurdo, pelo susto
porque acredito no sexo e no parafuso
pela inútil beleza do nome
porque creio no pai, na mãe e no lobisomem
porque invento o que digo e inverto o que sinto
porque existe o osso e o paradoxo
porque tenho culpas ancestrais
porque acredito em Deus, e não
pela insônia
porque respiro o sono dos injustos
pela estultícia
pela agonia de sobreviver a tudo
porque sou funcionário público
pelas notícias do rádio
pelo concreto querer, pelo poder abstrato
pela explosão do desejo, pela intimidação do ego
por dinheiro, por sucesso
pela máquina que forja o que vomito e piro
porque suspiro
pelo que está à margem, na igreja, na prisão e no hospício
porque lírico
porque cínico
porque perverso
porque mar
porque deserto
por ser único
e ser primevo
porque escravo
porque liberto
escrevo
…
Linguagem
Eis o amor
flor enjaulada
pedra em sua textura
forjada
palavra cítrica
que lodo
em enganos se expira
sede de sal
em suas linhas
rio sem peixes
em seu escamoso
enfeite
folha da folha
que dos ramos
se descola e enredo
se faz pluma
peso
e avesso
mais que água
poço
mais que poço
fundo
mais que fundo
frio
mais que frio
medo
Eis o amor
tiro que cala
e sintaxe
mata ao que dispara
mais pássaro
que vôo
mais telhado
que teto
mais rede
que sombra
mais crinas
que cavalos
mais galos
que auroras
mais fome
que romãs
mais pomar
que amoras
Eis o amor
íntimo
áspero
devoto
missa de remorsos
ressoa em sua
solidão de ossos
…
O rio dentro de mim
Para João Cabral de Melo Neto, em memória
Não me interessa a paisagem,
Mas o que em mim, adormecido,
Espera o romper da imagem.
Aquilo o que em mim, despido,
Treme como o deserto e a miragem,
Notas de um som escandido.
Não me interessa a vã porfia
Que persiste à luz da cidade,
Mas o que, morto, em mim me espia.
Aquilo que, peixe, invade
O rio que, sob a pele, me guia
Ao fundo-fundo da claridade.
Não me interessa a carne viva
Que só se mostra escondida,
Como navios valsando à deriva.
Aquilo que é dor corrompida,
Osso servido aos convivas
Pelos que, vivos, matam a vida.
Só me interessa a poesia
Bendita a todos, mordida
Fruta que se faz dividida.
Aquilo que do ventre adia
A arquitetura da lâmina fria,
E que de sol e pão se faz vívida.
…
Sobre o mar
Dizem do mar: barulho
ondas, ressacas, marés, maremotos, marulho
Mas o mar que sei
são flores e peixes e brincos e brinquedos
e segredos e sol e seixos e ventos e cores
O mar tem alma doce de amada e pescadores
É verbo quieto
primevo
pegada de romeiros e santeiros
pouso dos olhos dos faroleiros
palavra
levando barcos a mundos que não podemos
É de adeus, o mar
de sedas, de sonhos e espelhos
Tem sabor de ar, o mar
de inventos, de estrelas e de lenços
Não é barulho, o mar
: é silêncio
…
Legado
O homem morreu
deixou
o cão/ o câncer/ o corpo/ o cofre/ os milhos
deixou
o hereditário ódio
para dividir entre
os filhos
…
Da esperança
Para que servem as palavras
a não ser construir enganos?
Por que a morte
com sua voz límpida e solitária
Feito um vigia cantando no farol
necessita do amor, de sua carne e sangue?
O medo faz a diferença
entre o oceano e o salto
E o coração determina
a luz do fogo que serve à morte
Sonho em desaprender a lucidez
que me atormenta
Não desejo a sensibilidade
dos sabres
Espero libertar os peixes
dos lençóis
E tal serpente deixando a pele
ofertar-me nos caminhos
As coisas, as plantas
e o lirismo do silêncio
Têm a dignidade
de nos ensinar a morrer
O Tempo não tem chão
Quero os amanheceres