Poemas de Tanussi Cardoso

Os poemas selecionados para publicação no Rascunho pertencem ao livro inédito “Quase parábola”, finalista (Menção Honrosa) do Prêmio Cidade de Juiz de Fora 2003, a ser editado ainda este ano.
Ilustração: João Rodrigues
01/06/2004

Certas respostas

Pelo prazer, pelo desprazer
para experimentar e doer
para de amor não morrer

pra ficar de bem comigo, pra ficar de mal comigo
pra ficar comigo

pela palavra céu, pela palavra flor, pela palavra terra
pela palavra pedra, pela palavra qualquer
pela palavra

por tudo que é certo e que medra
por tudo que é bom e se enterra

pela cor e pelo riso
para dar voz aos não-vivos
para espantar os fantasmas
por Letícia e por Isaura
por João e por Narciso

pelo aprendizado do homem, pelo aprendizado do pássaro
pela forma e pela fôrma
pelo mar da metáfora

pela aventura, pela desventura
pela desconstrução da morte, pela arquitetura da vida

pelo humano
pelo que está por trás do pano
pelo sagrado, pelo profano
por deus e o diabo-a-quatro
pelos santos sem pecado
pelo pecado

pelo absurdo, pelo susto
porque acredito no sexo e no parafuso

pela inútil beleza do nome
porque creio no pai, na mãe e no lobisomem

porque invento o que digo e inverto o que sinto
porque existe o osso e o paradoxo

porque tenho culpas ancestrais
porque acredito em Deus, e não

pela insônia
porque respiro o sono dos injustos

pela estultícia
pela agonia de sobreviver a tudo
porque sou funcionário público

pelas notícias do rádio
pelo concreto querer, pelo poder abstrato

pela explosão do desejo, pela intimidação do ego
por dinheiro, por sucesso
pela máquina que forja o que vomito e piro
porque suspiro
pelo que está à margem, na igreja, na prisão e no hospício

porque lírico
porque cínico
porque perverso

porque mar
porque deserto

por ser único
e ser primevo

porque escravo
porque liberto

escrevo

Linguagem

Eis o amor

flor enjaulada
pedra em sua textura
forjada

palavra cítrica
que lodo
em enganos se expira

sede de sal
em suas linhas

rio sem peixes
em seu escamoso
enfeite

folha da folha
que dos ramos
se descola e enredo
se faz pluma
peso
e avesso

mais que água
poço
mais que poço
fundo
mais que fundo
frio
mais que frio
medo

Eis o amor

tiro que cala
e sintaxe
mata ao que dispara
mais pássaro
que vôo
mais telhado
que teto
mais rede
que sombra
mais crinas
que cavalos
mais galos
que auroras
mais fome
que romãs
mais pomar
que amoras

Eis o amor

íntimo
áspero
devoto

missa de remorsos
ressoa em sua
solidão de ossos

O rio dentro de mim
Para João Cabral de Melo Neto, em memória

Não me interessa a paisagem,
Mas o que em mim, adormecido,
Espera o romper da imagem.
Aquilo o que em mim, despido,
Treme como o deserto e a miragem,
Notas de um som escandido.

Não me interessa a vã porfia
Que persiste à luz da cidade,
Mas o que, morto, em mim me espia.
Aquilo que, peixe, invade
O rio que, sob a pele, me guia
Ao fundo-fundo da claridade.

Não me interessa a carne viva
Que só se mostra escondida,
Como navios valsando à deriva.
Aquilo que é dor corrompida,
Osso servido aos convivas
Pelos que, vivos, matam a vida.

Só me interessa a poesia
Bendita a todos, mordida
Fruta que se faz dividida.
Aquilo que do ventre adia
A arquitetura da lâmina fria,
E que de sol e pão se faz vívida.

Sobre o mar

Dizem do mar: barulho
ondas, ressacas, marés, maremotos, marulho
Mas o mar que sei
são flores e peixes e brincos e brinquedos
e segredos e sol e seixos e ventos e cores
O mar tem alma doce de amada e pescadores
É verbo quieto
primevo
pegada de romeiros e santeiros
pouso dos olhos dos faroleiros
palavra
levando barcos a mundos que não podemos
É de adeus, o mar
de sedas, de sonhos e espelhos
Tem sabor de ar, o mar
de inventos, de estrelas e de lenços
Não é barulho, o mar
: é silêncio

Legado

O homem morreu

deixou
o cão/ o câncer/ o corpo/ o cofre/ os milhos

deixou
o hereditário ódio

para dividir entre
os filhos

Da esperança

Para que servem as palavras
a não ser construir enganos?

Por que a morte
com sua voz límpida e solitária

Feito um vigia cantando no farol
necessita do amor, de sua carne e sangue?

O medo faz a diferença
entre o oceano e o salto

E o coração determina
a luz do fogo que serve à morte

Sonho em desaprender a lucidez
que me atormenta

Não desejo a sensibilidade
dos sabres

Espero libertar os peixes
dos lençóis

E tal serpente deixando a pele
ofertar-me nos caminhos

As coisas, as plantas
e o lirismo do silêncio

Têm a dignidade
de nos ensinar a morrer

O Tempo não tem chão

Quero os amanheceres

Tanussi Cardoso

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). Membro do Pen-Clube, tem 13 livros de poesia, sendo os mais recentes: Eu e outras consequências (2017) — Prêmio Manuel Bandeira, da UBE-RJ, e Ejercicio de la mirada/Exercício do olhar, bilíngue (2020), publicado em Lima, Peru, pela Amotape Libros, tradução ao espanhol do poeta peruano Óscar Limache.

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