Poemas de Sofia Perpétua

Leia os poemas "Flama" e "Ilhados por estrelas"
Sofia Perpétua, autora de “Tanque”
01/09/2025

Flama

Se tenho um coração,
é para que arda.
Silvina Ocampo

Fechar os olhos e desejar com tanta força que acontece
Fumo rasteiro ligeiro que entranha tempo e tecido
De todas as roupas compradas por pessoas que não eu
Eu fui só a que escreveu um personagem torto
Funâmbulo do caderno pautado
Difícil de prender entre as linhas
Quieto de medo no pavio que arde
Poeta mendigo despenteado triste
Queimei a folha quando aconteceu
Amassada chamuscada no chão
Condenada por ficção que quis real
Quando a realidade a engoliu
Eu escrevia ali na sala
Chamas à volta quente quente
Tão perto que acendo um cigarro
Pensei em gasolina e num fósforo
Mas ardia de dentro e tudo por dentro
Acendeu por veias e artérias e garganta
Quando “suas ideias não correspondem aos fatos”
Cazuza na rádio da vizinha de cima
Brindo às labaredas com Saint-Apollinaire
Fumo que vinga vinganças da vingança
Tens de aprender a vestir mentiras
Aquelas que dançam por aí nuas e soltas
Entrelaçadas na seda e no fumo do meu cigarro
Em contraluz de fim de tarde
Olhos fechados cegas de orgulho
Arrastei os móveis da sala só por elas
Vidros da janela no chão só por mim
O plástico queimado é pele nas minhas mãos
Organizaste a festa de aniversário do ano da morte
Parabéns pelas velas no bolo alimentar em brasa
Que derretidas te prendem os passos
Aguardas que os teus órgãos se transformem em cera
E sigam em romaria a igrejas e altares
Santuários onde se deseja com muita força
Que destino ou castigo se altere
E se repetem orações e ladainhas
As vozes que ouves no silêncio
Desta vez quando saí fechei a porta
Da mansão do Hades que arrendas
Vi o azulejo deslocado no instante
Junto ao peito cadernos e garrafas de vinho
A vida é minha e eu escrevo o que quiser
Junta pinhas, palha, jornais velhos, os livros delas
Aguardo que do carvão surjam diamantes
Milénios não me custam a passar
Enquanto rio dos teus tornozelos
Jogo às escondidas com Cronos
E pago com safiras azuis incandescentes
Que deslumbram, refletem, rasgam
As mãos do barqueiro que pergunta por ti.

Ilhados por estrelas

Se te chamasses Susan e eu Emily
Dizia-te que somos as únicas poetas e todos os outros são prosa
Dirias que as estrelas são recortes de papel
O tempo de entre nós escolheria a má e a vilã
Trocaríamos cartas por mais de um quarto de século
Um quarto de cartas por acontecer
Vemo-nos pela primeira vez
Ilhados por estrelas do tempo sem tempo
Para a melancolia sideral
Convocados nós e a lua
Girem outras constelações em volta
Contraluz de candeeiro do Cais
Rara a escuridão
Olhos ainda vivos
De possibilidade
De coisas por escrever
Como suster a respiração
Enquanto seguro o pulso e a aorta
Sentir-me por perto em silêncio
Ou a descrever um vestido meu ou esta
Fantasia de um Carnaval sem sorrisos assim
Fomos aqui deixados pelas Fúrias
Em sonhos que de manhã esquecemos
Voltámos uma e dez vezes
Menos uma noite na contagem dos dias que nos são permitidos
Despe-se a Via Láctea da Terra e do oceano
Luzimos de solidão prateada.

Sofia Perpétua

Nasceu em Lisboa (Portugal) É jornalista e escritora. Mestre em Jornalismo pela City University of New York, trabalhou nas redações do The New York Times, NBC e CNN, em Nova York. Em 2023, venceu o Prémio de Nova Dramaturgia de Autoria Feminina e foi finalista da primeira parceria MotelX/Guiões. Em 2024, foi semifinalista do Prêmio Oceanos com Tanque.

Rascunho