Profissão de fé
deus:
eu já não lhe creio
mas continuo a escrever poemas
ainda capino a terra
sento-me diante da semente
e choro
ainda entro nos bosques
e canto
e louvo na tua ausência
os que remendam estradas
ainda admiro as mãos
que se recolhem na noite
a tatear um coração
é possível que estejas
fora do que dizem de vós
dói tanto a linguagem
tu sabes
há tanto sertão no mundo
tanto silêncio
se fôssemos botar reparo
diríamos que o teu deserto
nunca terminou
deus
eu já não rezo
só permaneço no mundo
e aceito ser terra
sou essa viola que chama
e dança.
…..
Conselhos
Para João, meu pai.
Ao cair da tarde voltar à casa,
Meu filho, levemos a enxada.
Dela se há de necessitar
quando o pasto maior que o jardim
convulsionar o sonho.
Estar ao rio à beira do tempo
entre o desejo do regresso
e o início da partida.
Essa manhã é apenas prelúdio,
toda canção dói na despedida!
Vede os movimentos da corredeira,
são tão fortes, são tão leves!
Bote atenção no que eu falo
é um evangelho esse rio descendo.
Pergunte pras lavadeiras,
só elas sabem decifrar seus versos.
Escute bem as coisas do nada
coloque nelas o seu coração.
Não se entupa de lagartas,
espere com calma a borboleta.
Meu filho, morrer é lento,
bote reparo no que eu falo.
Dependure seus olhos no tempo
Coloque devagar as sandálias.
Sob a memória estenda o corpo
descalce sem medo o tempo.
Deixe os passos caminharem
não se importe com as estradas.
Há de ter um modo de decocar
pra remendar essa falta.
Meu filho, é essa a tua sina:
cavoucar a linguagem.
Eu nada entendo de poesia
só sei que o adeus é faca.
Não sei modo de salvar palavra
não sei costurar lamento.
Em minhas mãos estão
o boi, o cavalo, a rédea, o freio.
Igual a você também não encontro
maneira de estancar o tempo.
É por isso que eu te digo
levemos a enxada
dela se há de necessitar
quando esburacada ficar a canoa
pra sempre no meio d’água.