Sobre a ordem dos mícrones
Todos os dias eu sinto vontade de descobrir do que são feitas as pequenas casas dos insetos,
com que força as formigas carregam seus mortos depois que pisamos neles ou
quando interrompemos sua enorme carreata;
por que o besouro se joga em direção à parede, um suicídio, por que o besouro
prefere morrer?
Eu acho que as abelhas devem ter um ritual de silenciamento noturno, quando se
recolhem e observam nos homens o momento da angústia;
que as rainhas pedem calma e organizam a contemplação como se estivessem em
uma aula anti-humana.
Às vezes, eu me levanto para beber água e fico imaginando como fazem as aranhas
quando encontram uma poça de sangue pelo caminho,
será que desviam enojadas, será
que mergulham afrontosas e vingativas.
Nesta manhã, pensei ter sonhado com uma lagarta metamorfoseando uma barbárie
inteira dentro de mim enquanto ria,
sozinha e debochada,
da bagunça que eu iria encontrar assim que eu acordasse e me desse conta
de que as noites são reservadas para que um bicho, um monstro,
uma espécie em extinção
se explique ao universo
usando as pequenas frestas entre as minhas costelas.
…..
Babilônia
Estou na casa do sempre
quando abres teu peito e crias imagens que reconheço profanas
desde tempos
atrás,
o tempo do retrovisor, um pretérito,
outras formas de vida, suor,
uma arfada,
gametas e cigarros,
de memórias hieroglíficas,
dos símbolos: uma palavra é desenho com som.
Agora faz de conta que somos fluentes; que deciframos
a linguagem das caixas torácicas. Faz de conta
que já pronunciamos todas as
falas que dominam os gestos; que já percorremos
todos os traços feitos por meus dedos em teu corpo.
Depois saltamos — juntos e destemidos —
na grande fornalha de fogo
que é teu coração-babilônia pulsando exposto.
…..
As rezas que inauguram o dia
Há algum tempo eu me convenci de que poemas estão no início e no fim.
Então me levanto pela manhã com metáforas enroladas na língua; com visões
plenas de abismos.
Não respondo um bom dia sequer,
mas já repeti dois ou três versos em silêncio, um ritmo mental,
a incandescência do dia.
O poema do início, uma fundação.
Quando as lutas se acalmam e se abaixam as espadas,
eu volto ao poema em busca do fôlego, o fim da fadiga.
Abro os vãos da casa e avisto um descampado,
infinito campo de unguento.
O poema que é fim de tudo,
o impronunciável: um soluço que interrompe a lágrima.