Poemas de Ronaldo Cagiano

Leia os poemas "No silêncio desta hora", "Pressuposto" e "Visita à casa"
Ronaldo Cagiano, autor de “Cartografia do abismo”
01/04/2022

No silêncio desta hora

Uma tal lei do inevitável,
um certo aparato de passivos,
a vida parece cair pelas beiradas
enterrando os amigos
sufocando os pulmões
adulterando a água dos mares
transplantando consciências

e um eclipse vigorando sobre as bibliotecas.

No artefato peçonhento
do vírus,
o magistério de um alfabeto às avessas:
os falsos profetas da hidroxicloroquina
cultuam suas mentiras,
a impunidade ganha o altar
e a desumanidade, tantas vezes
escondida,

impiedosamente se desvela.

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Pressuposto

Borges não toleraria enxergar
nesse tempo de absoluta claridade
do caos.

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Visita à casa

A casa.
Seiva de um tronco
por abrir.
André Osório

Almoxarifado de memórias,
o passado é ave de arribação
que pousa sobre nossos telhados
com suas garras e sua fome
e um vocabulário de espantos.

Como sedução
ou ferida
(e carbono 14 no bico),
rastreia a necrose que apodrece
as vísceras da casa.

O mofo obstinando
usurpando as paredes
é uma chaga
impondo sua caligrafia demolidora:

nos labirintos do alpendre
(refúgio de antigas aventuras),
uma próspera maternidade de insetos
torna estrangeira minha presença.

Sob o incontido assédio das lembranças,
escavo um sítio de palimpsestos,
albergue de fósseis
de velhos fantasmas.

Entre o ontem e o hoje,
a volúpia do calendário
atravessa a minha vida como uma cicatriz

Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases (MG). Formado em Direito, está atualmente radicado em Portugal. É autor de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), O mundo sem explicação (Poesia, Lisboa, 2018), Todos os desertos: e depois? (Contos, 2018) e Cartografia do abismo (Poesia, 2020), entre outros.

Rascunho