Oficina assassina
Quero compor um soneto sonso,
Mais novo que as ruínas de Kosovo,
Que tropece a cada metro como um bobo
E toda a gente leia e tenha nojo.
Que acenda a noite com seu fósforo,
E caia nesta folha sem esforço.
Que diga palavra com palavra, concisa,
Mas nem sempre diga coisa com coisa.
Soneto-estrupício, sem futuro, um ogro
(São só cartas marcadas neste jogo).
Que seja, não um mar, mas seu estojo,
Laboratório tosco onde me explodo.
Flor nascendo em meio ao lodo.
Uma viagem que se faz in loco
No centro de um círculo de fogo.
…
Quadrilha
A poetisa pop
cutuca com vara curta
o poeta influencer tiktoker
que posta no seu feed
uma crítica decolonial
contra um poeta neobeat
que não se abate e cancela
o trovador cabra da peste
que não dá o braço a torcer
e detona no Face a poeta trash.
Ninguém tem tempo para escrever
um poema que preste.
…
Tritina: um lugar
Me lembro bem quando cheguei a este lugar.
Já era negro, índio, queer, mulher e a fala
de todos os humanos antes de mim. A linguagem
me falava: eu, uma figura de linguagem
mutante, democrática, um devir, um lugar
e não um muro. Sala aberta onde a fala
é de todos, e todas, de todas as flores da fala.
Eu sou estas palavras, uma realidade de linguagem
engajada em ser outra, encontro, quase um não-lugar.
Meu lugar de fala é a linguagem.
…
Retrato falado
Teu rosto é um campo de refugiados,
uns traços toscos na neve,
o lado oculto da lua, quintal de vultos,
um tsunami avançando no litoral do Japão,
um estacionamento
deserto à meia-noite,
o pensamento de um monge,
rajada nas folhagens,
explosão numa galáxia desconhecida,
potro bravio, revoada de pássaros,
chuva que não vem e chave que não abre,
caverna secreta, miragem,
luz de agosto num lago,
portal pro teu corpo, um porto
que uma Armada de nuvens ataca,
Ítaca, um dia de sol em Londres,
teu rosto é uma invasão alienígena,
sequestro-relâmpago,
uma rua movimentada em Hong Kong,
notícia vinda de longe,
obra-prima num museu vazio,
uma lista esquecida num parque em Kiev,
bilhete para o Paraíso,
página sem leitor, crepúsculo
que nunca termina, uma música
que alguém assobia numa esquina, hoje
teu rosto é tudo que me foge.
…
As chuvas de inverno
As chuvas de inverno
devoram o som das ondas.
Ruído branco espanto.
Na linha d’água
na fina linha do horizonte
como da primeira vez
Relâmpagos
cortam o pulso do céu
nervos de luzes no breu.
Alguém assiste o mar como num filme
polissonoras frases de espuma
em câmera lenta
e suas quietas entrelinhas: quebram-se
onde menos se espera
enquanto nascem, morrem
legendas
no ecrã do crepúsculo
sussurram a velha profecia:
transmutar mudez em música.
Um palácio de fantasmas
esculpido em cristalina maresia.
O vento sul nas folhagens
acende a luz dos astros
Mas é a água que nos queima no sono
nos deixa nus e atônitos
e acende os refletores do sonho.
Velho mendigo
Solta gatos pretos
em noites brancas.
Nutre a madrugada
com seus passos lentos.
A natureza transformada em pensamento.
Uma febre muda
inunda nossos corpos,
dispersa o silêncio da bruma.
O estrondo da onda
na página da praia
nos acorda do sonho.