Poemas de Renato Rezende

Leia os poemas "O espelho", "Deconstrução da amada", "Sem amarras", "Foto", "Cego, surdo e mudo", "Ímpar" e "Novo"
Renato Rezende: “A poesia é uma puta que dá para qualquer um, para quem quiser”
01/05/2002

O espelho

Vindo, no caminho, estão
todas as coisas deste mundo, tudo
o que toco,
sinto
e vejo:
frutos do meu próprio pensamento.
Deles, um a um, me despeço
com um íntimo,
último beijo.
Dentro de mim existe
a sombra de tudo, lago
límpido, espelho
do céu e das nuvens
que passam,
do qual limpo
as imagens que turvam o fundo
e que me unem ao mundo
pelo desejo.
Assim, continuo
cada vez mais puro, e aos poucos
também desapareço
da superfície, sem deixar vestígios,
enquanto subo.

Deconstrução da amada

O corpo da amada
não parece ser carne
como os outros;
e mesmo o que ela come e caga
está impregnado
por uma aura sagrada
como se fosse tudo olhos
amorosos, e alma.

Mas passa.

Uma vez morta e enterrada
a amada é esse punhado
de ossos e dentes
na minha palma.

Não adianta nada
comer com calma
as medulas que restam.
No entanto, todos os dias
chupo os dentes e suas cáries.

Já não têm o gosto
ácido da boca
e sua saliva, sua língua
angústias e histórias;
cada um deles é uma coisa

como qualquer outra coisa.

Sem amarras

O amor se faz, entre lágrimas e beijos, mas o gozo
muito intenso surpreende, tem tal força
que é bem mais que a triunfante satisfação
da expectativa dos nossos desejos, dispensa
paradoxalmente a presença da amada, o rosto
delicado e adorado, o corpo com suas bocas
adoradas, olhos, membros, beijos e abraços.
Eu não acreditava, mas agora
ela deixa de ser, estou só, e o amor voa solto
finalmente sem asas ou amarras.

Foto

Ele gostava de colecionar selos e moedas. Depois parou.
Gostava de conquistar mulheres. Enjoou.
Quis ser pintor, escrever versos, ser poeta, depois achou
esta ambição patética. Até mesmo a arte, que pensava
ser um salto de liberdade, revelou-se
uma coisa muito mais prática e concreta. Dele sobrou
o enigmático sorriso que dou
para mim mesmo no espelho.

Cego, surdo e mudo

Ver outra vez com os mesmos olhos
o mil vezes visto e revisto?
Por que
caminhar sem fim na planície,
ouvir com os antigos ouvidos
os mesmos ruídos e vozes
sem respostas, as velhas melodias tristes,
falar com novas palavras e versos
o mil vezes dito
e sempre mal compreendido, e enfim
por quê buscar o corpo do outro
para um amor sem muito sentido
ou um gozo breve e tosco?
Não quero nada disso, quero o vazio
que traga o novo.

Ímpar

Um dia tudo isso vai passar.

Saio da sala,
desço a escada
entro na rua
lá fora:

cascata
de luz e acidente.

A vida pulsa
e passa.

(Existe um fogo em mim
que é uma espécie de paixão, sim, uma paixão
sem par, não há
nada
aqui
que a apague ou cale).

Novo

Partindo do princípio, eu desisto
dos meus pés, e subindo
eu desisto das minhas pernas.

Elas latejam e me fazem sentir vivo,
mas eu não quero mais sentir-me vivo.

Ao cortar o pinto, prender nele uma pedra
até que penda para sempre, eu só penso
nos olhos de todas aquelas mulheres.

Eu entrego
ao fogo o mel dos olhos.

Os sentimentos,
eu desisto deles todos, o coração limpo
ou não, eu desisto do coração, do umbigo
que me ligou à minha mãe, eu desisto da minha mãe

E de todas as palavras que eu usei
quando compreendi que era só, desisto de ser alguém

Do estado da poesia, do estado da graça,
da hora da morte

Do vento no rosto

Eu desisto de novo.

Renato Rezende

É poeta, autor de Passeio (2001), Ímpar (2005, prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional) e Noiva (2008).

Rascunho