Poemas de Paula Meehan

Leia os poemas traduzidos "Fonte", "O enterro da criança", "Fruta", "Dharmakaya" e "Meu pai percebido como uma visão de São Francisco"
Paula Meehan, poeta e dramaturga irlandesa
01/08/2023

Well

I know this path by magic not by sight.
Behind me on the hillside the cottage light
is like a star that’s gone astray. The moon
is waning fast, each blade of grass a rune
inscribed by hoarfrost. This path’s well worn.
I lug a bucket by bramble and blossoming blackthorn.
I know this path by magic not by sight.
Next morning when I come home quite unkempt
I cannot tell what happened at the well.
You spurn my explanation of a sex spell
cast by the spirit who guards the source
that boils deep in the belly of the earth,
even when I show you what lies strewn
in my bucket—a golden waning moon,
seven silver stars, our own porch light,
your face at the window staring into the dark.

Fonte

Conheço este caminho por mágica não por vista.
Atrás de mim na colina, a luz do chalé
parece uma estrela perdida. A lua
míngua depressa, cada folha de relva uma runa
marcada pela geada. É caminho bem desgastado.
Carrego um balde entre amoreiras e ameixeiras em flor.
Conheço este caminho por mágica não por vista.
Na manhã seguinte, ao chegar descabelada em casa
não me lembro do que houve na fonte.
Você rejeita a explicação de que sofri um feitiço
sexual lançado pelo espírito que cuida da fonte
que ferve no fundo do ventre da terra,
mesmo quando eu lhe mostro o que tenho
em meu balde — uma dourada lua minguante,
sete estrelas prateadas, a luz da nossa varanda,
e seu rosto na janela, encarando a escuridão.

Child burial

Your coffin looked unreal,
fancy as a wedding cake.

I chose your grave clothes with care,
your favorite stripey shirt,

your blue cotton trousers.
They smelt of woodsmoke, of October,

your own smell there too.
I chose a gansy of handspun wool,

warm and fleecy for you. It is
so cold down in the dark.

No light can reach you and teach you
the paths of wild birds,

the names of the flowers,
the fishes, the creatures.

Ignorant you must remain
of the sun and its work,

my lamb, my calf, my eaglet,
my cub, my kid, my nestling,

my suckling, my colt. I would spin
time back, take you again

within my womb, your amniotic lair,
and further spin you back

through nine waxing months
to the split seeding moment

you chose to be made flesh,
word within me.

I’d cancel the love feast
the hot night of your making.

I would travel alone
to a quiet mossy place,

you would spill from me into the earth
drop by bright red drop.

O enterro da criança

Seu caixão parecia irreal,
bonito como um bolo de casamento.

Escolhi suas roupas com cuidado
sua camisa listrada favorita,

suas calças azuis de algodão.
Cheirando a lenha queimada, a outubro,

seu próprio aroma ali também.
Escolhi uma malha de lã tricotada à mão,

quente e felpuda para você. É tão
frio lá embaixo, no escuro.

Nenhuma luz te alcançará para poder mostrar
os voos dos pássaros selvagens,

os nomes das flores,
dos peixes, das criaturas.

Você nada saberá
do sol e do que ele faz,

meu cordeiro, meu bezerro, minha aguiazinha
meu filho, meu filhote, minha cria,

meu bebê, meu potrinho. Eu voltaria
no tempo, trazendo-o de volta

para o meu útero, sua toca amniótica,
e o levaria ainda mais para trás

através de nove acalentados meses
para o momento da compartilhada semeadura

em que você decidiu se fazer carne,
promessa dentro de mim.

Eu cancelaria a celebração do amor
a noite quente de sua criação.

Eu viajaria sozinha
para um lugar tranquilo coberto de musgo,

e você transbordaria de mim para a terra
gota por gota brilhante vermelha.

Fruit

Alone in the room
with the statue of Venus
I couldn’t resist
cupping her breast.

It was cool
and heavy in my hand
like an apple.

Fruta

A sós no salão
com a estátua de Vênus
não pude evitar
e segurei seu peito.

Ele estava fresco
e pesou em minha mão
como uma maçã.

Dharmakaya

for Thomas McGinty

When you step out into death
with a deep breath,
the last you’ll ever take
in this shape,

remember the first step on the street—
the footfall and the shadow
of its fall—into silence. Breathe
slow-

ly out before the foot finds solid earth again,
before the city rain
has washed all trace
of your step away.

Remember a time in the woods, a path
you walked so gently

no twig snapped
no bird startled.

Between breath and no breath
your hands cupped your own death,
a gift, a bowl of grace
you brought home to us—

become a still pool
in the anarchic flow, the street’s
unceasing carnival
of haunted and redeemed.

Dharmakaya

para Thomas McGinty[1]

Ao caminhar para a morte
com um suspiro profundo,
o derradeiro que dará
neste corpo,

lembre-se de seus primeiros passos na rua —
os passos e a sombra
da queda deles — para o silêncio. Respire
lenta-

-mente antes que o pé encontre novamente a terra sólida,
antes que a chuva na cidade
tenha lavado qualquer traço
de suas pegadas.

Lembre-se de quando na mata, numa trilha
pela qual você caminhou sereno

nenhum galho quebrado
nenhum pássaro assustado.

Entre o respirar e o não-respirar
as mãos envolvendo a própria morte,
um presente, uma tigela da graça
que você trouxe para casa, para nós —

tornam-se um lago tranquilo
em meio à correnteza anárquica, o carnaval
incessante das ruas
dos sofredores, dos redimidos.

My father perceived as a vision of St Francis

For Brendan Kennelly

It was the piebald horse in next door’s garden
frightened me out of a dream
with her dawn whinny. I was back
in the boxroom of the house,
my brother’s room now,
full of ties and sweaters and secrets.
Bottles chinked on the doorstep,
the first bus pulled up to the stop.
The rest of the house slept

except for my father. I heard
him rake the ash from the grate,
plug in the kettle, hum a snatch of a tune.
Then he unlocked the back door
and stepped out into the garden.

Autumn was nearly done, the first frost
whitened the slates of the estate.
He was older than I had reckoned,
his hair completely silver,
and for the first time I saw the stoop
of his shoulder, saw that
his leg was stiff. What’s he at?
So early and still stars in the west?

They came then: birds
of every size, shape, colour; they came
from the hedges and shrubs,
from eaves and garden sheds,
from the industrial estate, outlying fields,
from Dubber Cross they came
and the ditches of the North Road.

The garden was a pandemonium
when my father threw up his hands
and tossed the crumbs to the air. The sun

cleared O’Reilly’s chimney
and was suddenly radiant,
a perfect vision of St Francis,
made whole, made young again,
in a Finglas garden.

Meu pai percebido como uma visão de São Francisco

para Brendan Kennelly

Foi a égua malhada na porta do quintal ao lado
a me arrancar assustada de um sonho
com seu relincho madrugador. Eu estava de volta
ao quarto de despejo,
agora o quarto de meu irmão
repleto de gravatas e agasalhos e segredos.
Garrafas tilintavam na soleira da porta,
o primeiro ônibus parou no ponto.
A casa toda dormindo

exceto por meu pai. Eu o ouvi
recolher as cinzas da grelha,
ligar a chaleira, cantarolar um trecho de música.
Ele então destrancou a porta dos fundos
e saiu para o quintal.

Outono perto do fim, a primeira geada
deixou brancas as ardósias do terreno.
Ele estava mais velho do que eu pensava,
seu cabelo totalmente prateado,
e pela primeira vez eu vi seus ombros
arqueados, vi que sua perna
estava rija. O que estava fazendo?
Tão cedo, com estrelas ainda no Oeste?

Então vieram: pássaros
de todos os tamanhos, formas, cores; vieram
das sebes e dos arbustos,
dos beirais e das estufas,
das áreas industriais, dos campos em volta,
de Dubber Cross eles vieram
e das valas da North Road.

O jardim virou um pandemônio
quando meu pai ergueu as mãos
jogando as migalhas para o ar. O sol

clareou a chaminé dos O’Reilly
e subitamente brilhou,
uma perfeita imagem de São Francisco,
inteiro e novamente jovem
num jardim de Finglas[2].

Notas

[1] Thom McGinty (1952-1995), homenageado neste poema, foi uma figura icônica na Irlanda. Mímico, artista de rua, ativista pelos direitos das minorias, morreu de AIDS aos 42 anos.

[2] Finglas é um antigo bairro de Dublin.

Paula Meehan
Nasceu em Dublin (Irlanda), em 1955. Com uma poesia que transita livremente entre o real e o mágico, entre a elegia e o luto, é considerada uma das mais importantes poetas irlandesas em atividade.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho