Poemas de Otto Leopoldo Winck

Leia os poemas "Contemplação do morto", "O tédio de deus", "Sinal", "Viuvez" e "Persistência"
Otto Leopoldo Winck, autor de “Cosmogonias”
01/01/2004

Contemplação do morto

Observo o morto.
Ainda ontem ele pegava ônibus
pagava contas, fazia planos:
férias no campo, carro novo
ou talvez um outro amor.
Observo o morto. Os olhos que tanto
se moviam, irrequietos
estão parados
atrás das pálpebras. Enxergam o quê?
Os ouvidos até há pouco
curiosos, estão agora surdos
escutam o nada ou, quem sabe, sinfonias.
A língua, outrora tão falante
emudeceu. Sentirá qual sabor?
As mãos, vejam as mãos. Enormes, brancas, paradas.
Postas no peito, já não apalpam seios
já não podem apertar
outras mãos, ou bater no filho
desobediente, que assustado
pouco chora. Os pés, reparem
os pés, que tanto caminharam
correram para pegar banco aberto
fugir da chuva ou se encontrarem
furtivamente com outros pés. Os pés
imóveis dentro dos sapatos novos
agora já não dançam, já não podem dançar.
Observo o morto
absorto. O rosto.
Até esses dias este rosto
me sorria, me contava anedotas
me falava de mulher, futebol, da vida
que precisava dar um jeito, ai, precisava.
Observo o morto. No rosto
subitamente máscara um quase esboço
de sorriso. A morte é desconfortável
não para ele, mas para nós, os vivos.
Observo o morto. Ele até que está bem
dentro do terno, dos sapatos, dentro
do caixão — melhor, imagino, do que quando criança
no berço. (A criança quer sair
do berço. O morto não.)
Observo o morto.
Não as flores, as velas, os parentes, os amigos
as conversas sussurradas.
A vida não me interessa agora. Me interessa
somente o morto. Observo-o
absorto. Será que de algum lugar
ele me observa também?

O tédio de deus

Reforjando nuvens
no rarefeito ar das cordilheiras
onde dormem os incas
insepultos
Deus pensa e pesa e vagueia
e descontenta-se
e repensa o homem
(esse ser criado sem querer de um barro infecto).
Séculos secam-se.
E Deus prossegue pensando
aborrecido
e desenhando nuvens inverossímeis nos céus barrocos.

Sinal

Há um mar
revolto
que ressoa em volta
e aqui dentro
um oceano
insone
no qual
entre insignificados
desencontrado
me estranho.

Há um barco inerme
em qualquer parte
uma rota incerta
um princípio de canto
não de pássaro
ou sereia
mas de espanto
diante do sinal
da lua cheia.

Viuvez

Assim como eu colho a água
deste tanque de pedra
com minhas mãos em concha
e o que me sobra dela
no exato instante em que
súbito, as ergo em pânico
ante um pressentimento
(teu rosto? tua voz?
o cheiro do teu corpo?)
são somente estas palmas
trêmulas e banhadas
assim, de nossa história
dos risos, beijos, gestos
dádivas generosas
de um tempo já distante
o que fica é a memória
— pálida urna mortuária —
que secará um dia
como secou você.

Persistência

A minha voz
— folha seca, passarinho —
voando na voragem vã do vento
quer repouso
quer silêncio.

A minha voz quer ser pedra
(no meio de todos os caminhos)
quer ser bronze, raiz, altar, cimento
mesmo sendo tolice
mesmo sabendo que será pó do mesmo jeito.

É por isso que ela
cansada no ar
no vento
e no céu
cai
de
boca
e
sangra
— na superfície branca do papel.

Otto Leopoldo Winck

nasceu no Rio de Janeiro (RJ), radicado em Curitiba (PR). Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFPR, foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia, em 2006, com o romance Jaboc. Autor do ensaio Minha pátria é minha língua: identidade e sistema literário na Galiza (2017), do livro de poemas Cosmogonias (2018) e do romance Que fim levaram todas as flores (2019). Neste ano, lançou Périplo, um poema-livro.

Rascunho