Poemas de Óssip Mandelstam

Leia os poemas traduzidos "sem título", "Caminhante", "Leningrado"
Óssip Mandelstam, poeta russo
01/06/2022

Tradução: Astier Basílio

Дано мне тело — что мне делать с ним,
Таким единым и таким моим?

За радость тихую дышать и жить
Кого, скажите, мне благодарить?

Я и садовник, я же и цветок,
В темнице мира я не одинок.

На стекла вечности уже легло
Мое дыхание, мое тепло.

Запечатлеется на нем узор,
Неузнаваемый с недавних пор.

Пускай мгновения стекает муть
Узора милого не зачеркнуть.
[1909 г.]

Um corpo me foi dado — e o que fazer assim
Com ele que é tão único, algo tão de mim.

Pela alegria calma em respirar, viver,
Me diga então a quem eu devo agradecer?

Eu cuido do jardim e a flor eu também sou.
No cárcere do mundo sozinho eu não estou.

Nos vidros do eterno se deitaram já
Minha respiração e o quente que em mim há.

E há de ser impresso nele um arabesco,
que é irreconhecível, feito agora, fresco.

Deixemos que o instante jorre a borra ao lado —
E o arabesco lindo não será riscado.
[1909]

NOTA
Foi com este poema que Óssip Mandelstam estreou em publicações. O verso inicial tinha uma outra redação, “Имею тело…” (“Eu tenho um corpo”). O texto saiu no décimo número da revista literária Apollon, veículo de cultura que circulou de 1909 a 1918. Foi onde também estreou Anna Akhmátova. A publicação abrigava colaborações das mais diversas tendências, exceto da extrema esquerda, dando, até 1913, acolhida preferencial aos simbolistas. Depois disso, tornou-se, então, trincheira de seus rivais, os acmeístas. O poema teve uma excelente repercussão entre os leitores. Contemporâneo de Mandelstam, o poeta Georgy Ivanov (1894-1958), quando leu o poema disse: “Porque não fui eu que o escrevi?”.


Пешеход

Я чувствую непобедимый страх
В присутствии таинственных высот.
Я ласточкой доволен в небесах,
И колокольни я люблю полет!
И, кажется, старинный пешеход,
Над пропастью, на гнущихся мостках,
Я слушаю, как снежный ком растет
И вечность бьет на каменных часах.
Когда бы так! Но я не путник тот,
Мелькающий на выцветших листах,
И подлинно во мне печаль поет;
Действительно, лавина есть в горах!
И вся моя душа — в колоколах,
Но музыка от бездны не спасет!
[1912]

Caminhante

Este medo que sinto é insuperável
Ante alturas que são misteriosas.
A andorinha nos ares me compraz
E o voo da torre da igreja adoro.
Caminhante antiquado, o que me soa,
Ao penhasco, na ponte que se dobra,
Cresce a bola de neve, eu ouço e bate
No relógio de pedra a eternidade.
Ah se fosse. Errante assim não sou,
Cintilante nas desbotadas folhas,
Canta em mim, de verdade, e dentro, a dor.
Há, é certo, avalanche nas montanhas.
E é nos sinos que está toda a minh’alma
Mas de abismos a música não salva.
[1912]

Бессонница. Гомер. Тугие паруса.
Я список кораблей прочел до середины:
Сей длинный выводок, сей поезд журавлиный,
Что над Элладою когда-то поднялся.

Как журавлиный клин в чужие рубежи—
На головах царей божественная пена—
Куда плывете вы? Когда бы не Елена,
Что Троя вам одна, ахейские мужи?

И море, и Гомер — всё движется любовью.
Кого же слушать мне? И вот Гомер молчит,
И море черное, витийствуя, шумит
И с тяжким грохотом подходит к изголовью.
[1915 г]

Insônia. Homero. Apertadas velas.
A lista dos navios eu li até o meio:
Comboios de grous, tantos filhotes, ei-los
A erguer-se alguma vez por sobre a Hélade.

Como grous em pinça na fronteira alheia —
É divina a espuma nas reais cabeças.
Onde vão? Não fosse Helena, pra vocês
O que seria Troia sozinha, aqueus?

Move-se tudo no amor: o mar e Homero.
Alguém me ouve? Homero então se cala,
Ruge o mar negro, enfeitando, com pesada
Pancada a se aproximar da cabeceira
[1915]

NOTA
Poema escrito no verão de 1915, na casa do poeta Maksimilian Voloshin (1877-1932), que hospedou Mandelstam em sua residência no distrito de Koktebel, na Crimeia. Lá conheceu Marina Tsvetáeva, por quem viria se apaixonar no ano seguinte. Menciona-se que a inspiração para o poema veio após Mandelstam avistar um navio medieval nas imediações de onde estava hospedado. À época, o poeta estava mergulhado nos estudos da literatura clássica.


Ленинград

Я вернулся в мой город, знакомый до слез,
До прожилок, до детских припухлых желез.

Ты вернулся сюда, — так глотай же скорей
Рыбий жир ленинградских речных фонарей.

Узнавай же скорее декабрьский денек,
Где к зловещему дегтю подмешан желток.

Петербург, я еще не хочу умирать:
У тебя телефонов моих номера.

Петербург, у меня еще есть адреса,
По которым найду мертвецов голоса.

Я на лестнице черной живу, и в висок
Ударяет мне вырванный с мясом звонок.

И всю ночь напролет жду гостей дорогих,
Шевеля кандалами цепочек дверных.
[1930 г.]

Leningrado

Voltei pra minha cidade, que chorei de tão conhecida,
De seus feixes, da infância com inchaço na amígdala

Tu voltaste para cá, então, engula bem rápido
Banha de peixe dos postes dos rios de Leningrado.

Mais rápido saiba que há um dia curto em dezembro
Onde o sinistro alcatrão misturou-se a uma gema

Petersburgo, ainda não estou querendo morrer,
Meus números de telefone estão aí com você.

Petersburgo, estão comigo ainda tais endereços
Pelos quais vou procurando as vozes dos que morreram

Vivo eu na escada escura e na altura da têmpora
A campainha extraída com carne um golpe me acerta

A noite inteira sem trégua espero os queridos hóspedes,
A mexer com as correntes que há no trinco das portas
[1930]

Если б меня наши враги взяли
И перестали со мной говорить люди,
Если б лишили меня всего в мире:
Права дышать и открывать двери
И утверждать, что бытие будет
И что народ, как судия, судит, —
Если б меня смели держать зверем,
Пищу мою на пол кидать стали б, —
Я не смолчу, не заглушу боли,
Но начерчу то, что чертить волен,
И, раскачав колокол стен голый
И разбудив вражеской тьмы угол,
Я запрягу десять волов в голос
И поведу руку во тьме плугом —
И в глубине сторожевой ночи
Чернорабочей вспыхнут земле очи,
И — в легион братских очей сжатый —
Я упаду тяжестью всей жатвы,
Сжатостью всей рвущейся вдаль клятвы —
И налетит пламенных лет стая,
Прошелестит спелой грозой Ленин,
И на земле, что избежит тленья,
Будет будить разум и жизнь Сталин.
[февраля — начало марта 1937]

Se os inimigos nossos me pegarem
E o povo ao me encontrar, não me saúde,
Se de tudo no mundo me excluírem:
De respirar, de abrir a maçaneta
E de afirmar o que já é e surge
E a nação se faz juiz e julga, —
Se acaso ousarem me tomar por fera,
Meu pão ao chão jogado ali se instale, —
Mas não me calo e nem sufoco a dor,
Pois traçarei o que traçar se pode,
Tocando o sino na nudez do muro
A despertar na rival treva um ângulo,
Vou atrelar à minha voz dez touros
Na escuridão com a mão conduzo o arado —
E na calada desta noite insone,
Peões luzindo a terra com seus olhos,
— na legião de irmãos de olhos pisados —
Cairei com o peso que virá da safra,
Com rigidez rasgam-se ao longe pactos —
Rebanho de anos ardoroso cai,
Vai sussurrar trovões maduros Lenin,
O decompor da terra irá correndo,
Vida e razão despertará Stálin.
[Fevereiro – começo de março de 1937]

Óssip Mandelstam
Nasceu em Varsóvia, então parte do Império Russo, em 1891. Admirado por nomes como Joseph Brodsky e Paul Celan, é considerado um dos principais poetas do século 20. Estreou com os versos do livro Pedra, de 1913, e publicou títulos em outros gêneros — prosa memorialística, relato de viagem e novela. Após satirizar Stálin em uma leitura para amigos, foi preso e banido de São Petersburgo, onde vivia desde a infância. Em 1938, é preso pela segunda. Morreu a caminho de um gulag, em dezembro do mesmo ano.
Astier Basílio

É poeta e dramaturgo. Atualmente, mora em Moscou (Rússia). Mestre em literatura russa pelo Instituto Estatal Pushkin e doutorando em literatura russa no Instituto de Literatura Maksim Gorki.

Rascunho