Poemas de Nuno Rau

Leia os poemas "Marambaia", "Um artefato acende os edifícios da praça quando explode" e "Carne de pescoço"
Nuno Rau, autor de “Mecânica aplicada”
01/07/2022

Marambaia

extensa língua de areia mar adentro, restinga,
vista num dia claro como este
em que, sentado no bar, você conversa
com os barcos que imploram pelos cardumes
desaparecidos enquanto âncoras
arriscam grafismos na areia percorrida por correntes
que logo os apagam enquanto penteiam
algas, a faixa de areia clara
que se estende mar adentro não passa
de uma falha do continente, erro
das eras acumuladas enviando marés
que se propagaram carreando sedimentos
até o estuário dos dias Eles se elevam
como ondas e se deprimem no baixio
das horas diante da agitação
do desejo Extensa língua de areia mar
afora, talvez ninguém tenha pensado
que o desvio dos séculos e a loucura
da terra armaram dentro do erro um dispositivo
da beleza, com toda
paciência e toda
fúria

Um artefato acende os edifícios da praça quando explode

tudo parecia indicar que era uma outra estação
de metrô Você viaja incógnito e sobe as escadas
em direção à luz Um terrível equívoco nos dias
corrói as telas e você se sente o Grande Outro diante
do mundo que não escuta além das motosserras
e da explosão dos motores movidos a combustíveis
fósseis enquanto você traz
no bolso um enigma na forma de circuito
impresso indeterminado e sem alvo preferencial
nem tutorial para compreensão imediata que
possibilite desativar em seus mínimos
filamentos o nanoimpulso elétrico que vai detonar
a bomba e quando você abraça
o estranho e coloca o poema em seu bolso
sem que ele entenda ou perceba
tudo parece explodir Não: não parece Tudo
explode e voam estilhaços que são facas no céu
das suas certezas Sim, agora você já pode se perder
de si pela cidade – essa antologia
infinita, sem fronteiras
nem bunkers

Carne de pescoço

me ancoro na Virtude, amo o Vício
e o Caminho já não me captura
Perdi o senso e ainda que sentisse
o mal na pele ao largo da Ventura,
contra a Natura e em franco desespero
barganharia um tácito armistício
Largo a Fortuna, a previsão, o esmero,
e ando sorrindo aos cravos do suplício
De fato, em nada mais eu acredito,
e aqui destilo em gotas a ironia
— quer no sentido lato, quer no estrito —,
recolho as armas ponho o meu pijama
e vou sonhar com a Musa, esta vadia
que [há muito tempo já] não mais me engana

Nuno Rau

Tem poemas publicados nas antologias Desvio para o vermelho (Centro Cultural São Paulo), Escriptonita, que coorganizou, 29 de Abril: o verso da violência, e Jumento com faixa – deboches e antiodes ao fascismo, entre outras. Publicou o livro Mecânica aplicada (2017), poemas, finalista do Prêmio Jabuti e do Prêmio Rio de Literatura. Publicará em breve A prosa da paisagem (poemas). É coeditor da revista digital Mallarmargens e ministra oficinas de poesia no Instituto Estação das Letras.

Rascunho