Poemas de Natália Agra

Leia os poemas "Mesteños", "Facebook (realismo capitalista)" e "Uma caneca de café num dia para se guardar na memória"
Ilustração: Leonor Décourt, foi feita especialmente para o poema “Mesteños”, de Natália Agra
02/01/2021

Mesteños 

para o Lobo 

Pela grande campina deserta passam os cavalos a galope.
Aonde vão eles?
Murilo Mendes

mesteños
: palavra mistério
já estive nesta mesma trilha
os cavalos e eu na mesma
trilha indomada

mesteños
: retirantes exilados selvagens
pelo caminho
cruzamos o deserto,
vertemos o mar,
o passeio
do universo
passa por nós

estremece

na ponta da garupa
no aperto do garrote

é preciso parar                                     ouço
na vida sou passageiro
sou bagageiro
das             saudades           de            lá

mesteños
: palavra castanhola
olhal e sombreros
debaixo do sol
nos seixos de sal

mesteños
: quando dizemos mãe
também dizemos mar
quando rezamos o mar
das                 saudades        de          lá
é que a mãe nos abraça
passa por nós
a cantiga da cavalaria
de São Jorge
em romaria

mesteños
: mustangues nascidos no mangue
seguindo em frente
queimando                     las pestañas
(en esta absurda            (no túmulo
carrera de caballos)      de meu pai)

mesteños
: corcéis de batalha
ustengos sem pátria
mátria no brasão do peito
galope
um campo arrasado
o mundo inteiro

mistério algum

…..

Facebook (realismo capitalista)

hoje não há lembranças

…..

Uma caneca de café num dia para se guardar na memória 

para o Leo Marona

faltavam 15 minutos para o meio-dia
aprecio a cena
talvez um pai e seu filho no colo
o filho aponta para tudo que vê
o pai parece responder
continuam andando
uma folha despenca do 11° andar
um dia você vai cair e chorar
então vai entender tudo
todas as coisas
o pai continua descrevendo para o filho o que ele aponta
o filho enxerga árvores, o pai as sombras
um pouco à frente deles, num cortiço
uma mãe lava roupas no tanque
seus filhos tomam banho de mangueira
naquele instante de improviso
o caos relativo
congelado pelo sal do meio-dia
a chuva no arco-íris
a felicidade contemplada na crise
o pai senta e passa algo em sua cabeça
passa a mão na cabeça do filho
aprecio a cena
sei o que o pai vê:
o futuro de seu filho
uma folha caindo
no sol do meio-dia

Natália Agra

É poeta e editora. Nasceu em Maceió (al) em 1987. Publicou os livros de poesia De repente a chuva (2017), fotogramas [o silêncio possível] (2019) e Noite de São João (2020). Edita, ao lado de Fabiano Calixto, Rodrigo Lobo Damasceno e Tiago Pinheiro, a revista de poesia Meteöro.

Rascunho