Se tão longe eu caminhasse
até o ponto de não retorno
para a dita ilha sem nome
levaria comigo as vigas
de minha cabana de palha.
Meus gatos e suas savanas
o sol domesticado onde lembram
de seus tempos de presas e caçadas
e ronronam ao meu gesto, soberanos
em seus tronos de almofadas.
Na mala, meu aniversário de seis anos
o riso de Maria Lucia, um tear de pregos
e o terceiro beijo, aquele,
de quando descobri amar José
sem deixar de amar João.
Meia dúzia de galinhas chocas
um galo de peito rubro
um isqueiro
e quatro poses de yoga
que jamais alcançarei.
Um punhado de terra fértil
esperança o quanto baste
o calendário lunar do tio Zeca
e sementes em minhas tranças
como as das meninas Nagô.
Todo poema que sei de cor
o caderno de receitas, um altar vazio
(as culpas jogarei no mar)
e um livro inteiro em branco
a ser escrito antes do fim.
…
Pudesse, teria um rio
a meio caminho, ao alcance,
com seixos e peixes de prata,
margens de areia encorpada,
um pescador renitente,
sapo,
regaço,
mormaço,
corredeira de pedras, calmaria,
a ensinar que a vida pode ser isso ou aquilo,
mas não deixa de passar.
Pudesse, seria um rio,
e me faria nascente, potável,
à espreita
do desejo dos meninos
em dias de verão.
…
Engulo os cacos afiados
das notícias que me chegam
meu pai avisa que morre
um pouco a cada dia.
Tento odiá-lo às terças e quintas
para que a semana prossiga
sublinhar seus enganos, tropeços,
mas tão pouco adianta este falso desgosto
com hora marcada.
E logo o afeto inunda novamente o cadinho
calcina os resíduos minerais do tempo
e a brasa
se aviva na espiral amorosa
dos mistérios.
Meu pai, pai, palavra antiga
em mim terra, pátria, memória
bem menina perguntei:
afinal, qual é a verdade?
Tantas quantas forem as versões
respondeu, sem subestimar minha infância
ou ceder àquela momentânea urgência
de simplicidade.
Engulo os cacos afiados
de todas as plurais verdades
vítrea
realidade em pontiagudos pedaços
caem do teto como pingentes
e se quebram no piso de pedra
em estalos.