Poemas de Mônica Menezes

Leia os poemas "linhagem", "vênus em peixes", "no domingo de páscoa", "confissão", e "pandemia"
Mônica Menezes, autora de “Estranhamentos”
01/06/2022

linhagem

no meu nascimento
não havia ninguém para fotografar o parto
fui criada para durar, viver
um tempo que não finda

às vezes, a história pede
apenas que estejamos vivas
esquecer é bom
é uma força plástica,
como escreveu o filósofo

quero o choro apenas quando
o mal for maior que a compreensão

uma vida de pouco enredo é do que preciso

vênus em peixes

perecerei de amor
e em silêncio
numa manhã chuvosa
anotando um poema

grafarão em minha lápide:
viveu em chamas

no domingo de páscoa

a moça do prédio ao lado saltou no vazio
não consegui salvar a moça
não consegui salvar meu irmão
“é preciso construir-lhes um túnel
— um túnel sem fim e sem saída”

confissão

queria convidá-lo à minha casa
para lhe mostrar as três árvores dispostas em triângulo à janela
a nesguinha de mar ao longe entre as paredes dos edifícios
a família de micos saltitando nos fios da telefonia
meus livros ilustrados
o ressoar do silêncio nas manhãs de domingo
o sinal entre meus seios

pandemia

uma nesga de mar é tanto
para quem se acostumou ao muro

no centésimo octogésimo quarto dia
a vizinha parou de tocar a ave maria
ao cair da tarde

manhãzinha,
fui à rua, vi o mar e chorei

uma moça
duas moças
três moças
quatro moças
tantas moças
todas negras
sobem apressadas
logo cedo
a ladeira do morro do gato
e descem ao final da tarde
exaustas
após servirem
homens e mulheres de bem
que defendem no twitter
o distanciamento social
e dormem tranquilos em suas camas king size
cobertas por lençóis de algodão egípcio 400

Mônica Menezes

Nasceu em Lagarto (SE) e vive em Salvador (BA). É professora de literatura brasileira da Universidade Federal da Bahia. Publicou os livros de poemas Estranhamentos (2010) e, juntamente com sua filha, Sarah Fernandes (fotógrafa), Pequeno álbum de silêncios (2021).

Rascunho